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Após a vitória coreana sobre a Alemanha, nesta quarta-feira, o Facebook foi tomado por uma enxurrada de memes comparando a goleada com a derrota alemã na II Guerra Mundial. A maior parte dessas mensagens trazia a figura de Joseph Stalin. A piada é boa. Como sempre, funciona quando contada pela primeira vez; a repetição tira-lhe a graça. Por isso, acabei não compartilhando.
O que poderia parar por aí, tornou-se mote para se retomar uma velha discussão sobre o stalinismo. Pois Stalin não demanda muita conversa. É o comandante de grandes derrotas, assassino frio, tipo desequilibrado e coveiro do socialismo.
Pena que a História não seja simples assim. Vejam só este parágrafo sobre a trajetória da antiga URSS:
“A estrutura material de produção, que por volta de 1930 ainda era inferior à de qualquer nação europeia de dimensão média, expandiu-se tão poderosa e rapidamente que a Rússia, hoje [1948], é a primeira potência industrial europeia e a segunda do mundo. Em pouco mais de uma década, o número de cidades e outros centros urbanos dobrou e a população urbana cresceu em cerca de 30 milhões de pessoas. O número de escolas de todos os níveis se multiplicou de modo significativo. Toda a nação foi enviada aos bancos escolares e seu espírito despertou de tal forma que dificilmente pode voltar a ser adormecido. A avidez de conhecimento, de ciência e de arte foi estimulada pelo governo de Stálin a ponto de se tornar insaciável e embaraçosa”.
Quem escreve isso não é um fanático stalinista, mas um de seus maiores críticos. Trata-se do historiador polonês Isaac Deutscher (1907-67), simpatizante e biógrafo de León Trotsky. O trecho foi retirado de seu “Stalin, uma biografia política”, uma das melhores radiografias da URSS nos anos 1920-40.
Outro ácido crítico de Stalin, o intelectual comunista húngaro György Lukács, em sua “Carta sobre o stalinismo” (1963) alerta que “Mesmo a crítica mais severa não deve jamais fazer esquecer que Stálin foi uma figura política de primeira ordem”.
O dirigente soviético foi impiedoso na perseguição de seus objetivos. “Stalin propôs-se a livrar a Rússia da barbárie por meios bárbaros”, assinala Deutscher.
Curioso é que a mesma qualificação não é endereçada a Abraham Lincoln (1809-65). Assim como o georgiano, ele também se colocou diante da tarefa de erigir o Estado nacional como meta principal. Objetivo como esse em nenhum lugar ou tempo da História foi obtido na base do consenso ou da conversa. Lincoln rompeu qualquer tipo de acordo com a oligarquia latifundiária do Sul e foi à guerra para expandir o mercado interno, quebrar a espinha dorsal do latifúndio e – embora não fosse sua meta – impor o trabalho livre. Com isso criou condições para que seu país, na virada para o século XX, despontasse como a principal potência industrial do mundo.
Um milhão de estadunidenses morreram no conflito, centenas de milhares foram desalojados de suas moradias e dezenas de milhares ficaram mutilados em uma população de 34 milhões de habitantes. Por que Lincoln não entrou para a História como um carniceiro?
Falo de Lincoln, mas poderia citar Churchill, ou Leopoldo II, da Bélgica, ambos autores de genocídios coloniais. E o que dizer de Napoleão? De Harry Truman, o das bombas atômicas sobre o Japão, do indefensável bombardeio de Dresden e dos campos de concentração na Califórnia?
Sim, claro, não se aliviam os crimes de Stálin mostrando que outros foram tão ou mais brutais. Mas sobre os ombros de Stálin e da direção soviética pesa a derrota do nazismo na Europa e um prestígio espetacular no imediato pós-Guerra em todo o mundo. A máquina de destruição de reputações do Ocidente tratou de acionar suas motoniveladoras comunicacionais para destruir o dirigente no terreno das narrativas, como se fala modernamente.
É preciso deixar de demonizar Stalin para estudá-lo de forma objetiva, como vem fazendo o historiador estadunidense Stephen Kotkin, autor da trilogia “Stálin”, catataus de 1.200 páginas cada um, fruto de investigações de mais de uma década em arquivos russos e de países envolvidos direta ou indiretamente com a extinta URSS. Com toda sua obsessiva busca pela objetividade, Kotkin admite, logo no início do primeiro volume (o único até agora publicado no Brasil) que “Mais do que a de qualquer outra figura histórica, até mesmo Gandhi ou Churchill, uma biografia de Stálin (...) acaba por se aproximar de uma História do mundo”.
Ao mesmo tempo, como já lembrou José Paulo Netto, não se pode idolatrar Stalin. Em primeiro lugar porque, se analisarmos honestamente, o stalinismo é um fenômeno datado e localizado historicamente. As condições que o geraram são especialíssimas, em meio à estabilização de um poder frágil, de um país atrasado, de impiedosas agressões externas, de fome, de analfabetismo e da imperiosa necessidade de dar curso a um projeto estatal de desenvolvimento com distribuição de renda e riqueza. Em segundo lugar, por não ser possível ser stalinista nos dias de hoje sem resvalar para o perigoso terreno da caricatura.
Para um post de Facebook, este texto já está meio longo. Paro por aqui.
No mais, os memes sobre o 2 X 0 da Coreia do Sul são bacaninhas. Mas não é preciso repetir tanto, porque eu já entendi a piada.