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Quando o nome do cardeal argentino Jorge Mario Bergoglio foi anunciado como o 266º Papa da Igreja Católica, naquele chuvoso e friorento 13 de março de 2013, fiéis e espectadores, tanto na Praça São Pedro quanto no mundo todo se surpreenderam. Seu nome não constava na lista dos favoritos, que incluíam entre outros o brasileiro Dom Odilo Scherer e o italiano Angelo Scola.
Este foi, no entanto, apenas o primeiro espanto causado por aquele homem tímido, de hábitos austeros e sólida formação intelectual, que imediatamente adotara o nome de Francisco sem o numeral, em homenagem a São Francisco de Assis, e entraria para a história como o primeiro não europeu, latino-americano e jesuíta a assumir o papado.
O seu desfiar de ineditismos não parava por ai. Bergoglio assumia o comando do Vaticano em circunstâncias especiais. Seu antecessor, o Papa Emérito Bento XVI, ainda é vivo. Sob a alegação de que não tinha mais forças para exercer o mandato, o alemão Joseph Aloisius Ratzinger, que trazia a mácula de ter pertencido à juventude hitlerista, deixava para trás, naquele momento, junto com o papado, um sem fim de crises, entre elas inúmeras acusações de pedofilia e acobertamento de abusos contra menores pairando sobre a igreja, vazamentos de documentos confidenciais por um mordomo do Vaticano, que ficou conhecido como “Vatileaks”, entre outros desgastes.
Entrava assim, em cena, o Papa Francisco. Pelo menos para o mundo, pois na Argentina já era um velho conhecido. Bergoglio foi Arcebispo de Buenos Aires e primado da Argentina.
Bergoglio e a ditadura argentina
Artigo publicado pela BBC Brasil, em 14 de março de 2013, dia seguinte ao anúncio do seu nome, dá conta que, de acordo com matéria do jornal Pagina 12, Bergoglio teria, conforme testemunhas, "retirado a proteção" da Igreja dos sacerdotes jesuítas Orlando Yorio e Francisco Jalics, que faziam trabalho social com comunidades carentes de Buenos Aires, em plena ditadura argentina, em 1976. Os sacerdotes terminaram sendo sequestrados e torturados.
As mesmas acusações são mencionadas também nos livros Iglesia y Dictadura, de Emílio Mignone, publicado em 1986, e em O Silêncio, de 2005, escrito pelo jornalista investigativo e ex-guerrilheiro argentino Horacio Verbitsky.
A coisa, no entanto, não para por aí. Em outro episódio, ainda conforme a BBC Brasil, o atual Papa Francisco foi chamado a testemunhar quando era arcebispo de Buenos Aires, à pedido da Promotoria do país e da organização Avós da Praça de Maio - formada pelas avós de crianças sequestradas pela ditadura. O caso desta vez era sobre cartas enviadas a Bergoglio pelo avô de Ana, nas quais ele pedia ajuda para encontrar a neta e a filha, Elena - que desapareceu quando estava grávida de 5 meses.
Com base nessas cartas, Estela, irmã de Elena, acusa o novo papa de mentir ao dizer que apenas nos últimos 10 anos começou a tomar conhecimento sobre o sequestro de bebês por militares argentinos e de não fazer tudo o que estava a seu alcance para colaborar com os julgamentos sobre os abusos da ditadura.
O Papa sempre negou todas estas acusações. O biógrafo e defensor de Bergoglio, Sergio Rubin, afirmou sobre o assunto que toda a Igreja Católica falhou ao não confrontar direta e abertamente a ditadura argentina e seria injusto culpar apenas Bergoglio por esse erro. O próprio Jalics, no entanto, tratou de inocentar o pontífice, ao divulgar em nota: “Estes são os fatos: o padre Bergoglio não denunciou a Orlando Yorio nem a mim”.
Entre os membros da cúpula eclesiástica que tiveram acesso aos arquivos da ditadura argentina abertos em 2016, todos disseram não ter visto nada que citasse expressamente o atual Papa. “Houve um julgamento em Buenos Aires sobre esse assunto e ficou resolvido”, acrescentou na ocasião o presidente da Conferência Episcopal, José María Arancedo.
“Os comunistas têm roubado a nossa bandeira”
Mesmo que tenha se omitido em algum momento da ditadura argentina, o que é improvável diante dos vários depoimentos, um fato é inegável e vários argentinos garantem. Há uma grande transformação entre o arcebispo de Buenos Aires, tido na época como peronista de direita, de perfil conservador, para o atual Papa, visto pelo mundo de maneira geral como progressista, um grande reformador da Igreja Católica. O próprio, ao ser indagado sobre isto responde em tom de piada: “É que é muito melhor ser Papa do que Arcebispo de Buenos Aires”.
Há os que acreditam ainda que a mudança se deve à necessidade de sobrevivência da própria igreja, exaurida por sua visão extremamente conservadora em temas vitais como a homossexualidade, o aborto, divórcio entre outras.
Para além das questões morais, o fato de vir do “fim do mundo”, como ele mesmo declarou em seu primeiro discurso, talvez tenha colocado na boca de Bergoglio e consequentemente, pela primeira vez na de um Papa, um discurso muito mais crítico e contundente contra o capitalismo internacional.
Várias dessas críticas já o levaram a ser rotulado de “marxista”. Em uma entrevista ao Il Messaggero, jornal de Roma, em junho de 2014, o Papa disse, em seu tom de galhofa com que tem acostumado o mundo: “Eu só posso dizer que os comunistas têm roubado a nossa bandeira. A bandeira dos pobres é cristã. A pobreza está no centro do Evangelho", disse.
Frases e atitudes como estas têm entusiasmado até Adolfo Pérez Esquivel, prêmio Nobel da Paz em 1980. Ele afirmou emocionado ao El País, em 2015, que Bergoglio, “antes, como chefe da Igreja argentina, representava muita gente, e também os mais conservadores. Agora pode dizer como papa o que antes guardava para si. Além disso, o mundo muda, a igreja muda, e o Papa também. Ele fez isso pela via da espiritualidade. Está causando uma grande surpresa para todos. Provocou uma esperança que há muito tempo não se via na igreja universal”, exaltou.
Horacio González, diretor da Biblioteca Nacional e líder da Carta Aberta, um grupo de intelectuais kirchneristas e ferrenho opositor de Bergoglio enquanto Arcebispo de Buenos Aires, vê uma grande mudança no Papa, em depoimento publicado na mesma matéria do jornal espanhol: “agora Francisco está próximo à teologia da libertação que Bergoglio combateu. Mudei minha avaliação sobre ele com uma certa dor pessoal; agora estou de alguma forma pensando contra minha própria convicção. Mas não acredito que a transmutação de Bergoglio seja uma mudança tática. O mundo mudou, e ele faz a leitura do abismo que se abre diante da enorme crise ética da humanidade”.
Um Papa Diplomata
A história ainda está por ser escrita. No entanto, a expectativa que se apresenta é que a maior de todas as conquistas do Papa Francisco seja mesmo no campo da diplomacia. É nesta área onde, de acordo com inúmeros especialistas, Bergoglio faz o Vaticano ressuscitar para o mundo. Ele tem viajado aos quatro cantos, feitos pronunciamentos sobre conflitos. Falou sobre a Palestina e Israel, fez uma viagem a Lesbos, quando retornou com três famílias sírias compostas por 12 pessoas que acolheu no Vaticano. Na ocasião, afirmou que aquela é a “maior tragédia humanitária desde a II Guerra Mundial”. Pode parecer óbvio, mas é algo inédito um Papa deslocar a sua atenção para a periferia do mundo.
Francisco e o Brasil
Com relação ao seu maior vizinho, o Papa não tem sido indiferente. Em março deste ano, por exemplo, Francisco telefonou para a mãe de Marielle Franco para prestar solidariedade e dizer que estava rezando por ela, pouco antes da missa de sétimo dia da vereadora assassinada.
Em abril de 2017, através de uma carta, recusou convite para visitar o Brasil e cobrou o presidente Michel Temer para evitar medidas que agravem a situação da população carente no País. A correspondência foi uma resposta a outra enviada por Temer no fim de 2016, na qual o líder da Igreja Católica era convidado formalmente para as celebrações dos 300 anos da aparição de Nossa Senhora Aparecida, comemorados em 2017.
Finalmente, em um trecho de homilia proferida durante missa em abril, na Casa Santa Marta, no Vaticano, intitulado “Intrigar: um método usado também hoje”, o Papa parece ter se dirigido ao Brasil. De acordo com transcrição literal do site Vatican News, a fala de Francisco parece ter endereço certo: “‘Criam-se condições obscuras’ para condenar a pessoa, explicou o Papa, e depois a unidade se desfaz. Um método com o qual perseguiram Jesus, Paulo, Estevão e todos os mártires e muito usado ainda hoje. E Francisco citou como exemplo ‘a vida civil, a vida política, quando se quer fazer um golpe de Estado’: ‘a mídia começa a falar mal das pessoas, dos dirigentes, e com a calúnia e a difamação essas pessoas ficam manchadas’. Depois chega a justiça, ‘as condena e, no final, se faz um golpe de Estado’. Uma perseguição que se vê também quando as pessoas no circo gritavam para ver a luta entre os mártires ou os gladiadores.
“O Papa te ama assim”
Certo ou errado, o Papa Francisco tem a maior das virtudes do ser humano, que é a capacidade de errar, reconhecer o erro e corrigir a rota. Já demonstrou isso em inúmeros momentos de sua existência e, sobretudo, em visita recente que fez ao Chile, agora em maio. Ao se dirigir a Juan Carlos Cruz, uma das vítimas do padre Fernando Karadima, condenado pelo Vaticano por ter cometido abusos sexuais no Chile na década de 1980, Francisco disse: “O fato de ser gay não interessa. Deus te fez assim, te ama assim e eu não quero saber. O papa te ama assim. Tem de ser feliz como é”. Um grande passo com relação à sua declaração de 2013, quando perguntado sobre o assunto: “Quem sou eu para julgar?”.
O gesto, a despeito de ter sido a maior demonstração de tolerância de um pontífice com relação à sexualidade, teve também o mérito de ser um pedido de perdão. Na sua passagem pelo Chile, em janeiro deste ano, o papa definiu como “calúnias” as acusações contra o bispo Juan Barros, que teria encobrido os abusos sexuais praticados por Karadima durante décadas. Desta vez, se redimiu: “O drama dos abusados é tremendo. O que é que sentem as vítimas? Tenho de pedir-lhes desculpa, porque a palavra ‘prova’ feriu. A minha expressão não foi feliz. Peço desculpa se as feri, sem me aperceber, sem o querer. Dói-me muito”.
A que parece, Francisco parece decidido a tirar o peso do pecado das costas de seu rebanho e, por outro lado, entregar a autoridade do seu papado ao conforto da raça humana. Com isto, talvez consiga reconduzir a sua igreja aos desígnios do Evangelho de Cristo.