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Por Rodolfo Beltrán* | Tradução: Diana Gómez | Revisão: Ana Fiori
Durante a Décima Conferência Nacional Guerrilheira[1] das FARC-EP, Rodolfo Beltrán conversou longamente sobre arte e literatura com Zeuxis Pausias Hernández – Jesús Santrich[2], músico, artista plástico e escritor. Na entrevista discorreram sobre questões pontuais sobre sua obra. Santrich, como era de se esperar, explicou extensamente suas convicções políticas e a visão da guerrilha mais antiga do planeta sobre o processo de paz que está se desenvolvendo[3] com o governo do presidente Juan Manuel Santos.
R.B.: Na sua obra literária podemos encontrar termos emblemáticos que desenham um rumo: indígenas, tayronas, camponeses, a pobreza e a paz.... Você concorda comigo que essas palavras podem ser consideradas símbolos a partir dos quais inicia sua obra?
J.S.: Claramente são a essência da realidade do nosso país, com a particularidade de que falam das vozes dos silenciados. Aos povos raizal[4], os povos étnicos, como eles mesmos se denominam, foi-lhes imposta a pobreza. E com isso lhes foi negada sua cosmovisão, sua sabedoria, o direito de expor seus desejos e seus anseios e, inclusive, sua crença no futuro.
Então esta literatura nasce como a expressão de sentimentos e daquilo que brota do coração a cada momento, quando se vive com comunidades excluídas da sua própria realidade. Com essas palavras procurei visibilizar o interior e a consciência daqueles setores marginalizados do povo, sendo que a pretensão não é apenas de transmitir um conteúdo mental ou querer adentrar no cenário elitista da arte.
R.B.: Utilizando conceitos de Mircea Eliade para desentranhar os pontos-chave da sua obra, é necessário conhecer o Centro do Mundo. Estou me referindo aos domínios, os espaços construídos na sua literatura. Vamos começar por entrar na memória dos povos indígenas.
J.S.: As palavras que surgem e se escrevem em um papel têm uma gênese. Para os povos originários é a natureza. A relação com o cosmos – que é sagrado –, se dá pela correspondência dessas comunidades com a mãe terra e a simbologia, como você dizia, que emerge de uma realidade especial, sublime, para eles sagrada; se expressa com dificuldade nos meus escritos, porque não existe uma melhor maneira de fazê-lo que conhecer diretamente suas vidas e ouvir a voz dos progenitores.
Me inspirei na poesia de Pablo Neruda para fazer uma homenagem, na mentalidade da kankurua que se manifesta por trás da fumaça dos fogões, também na palavra dos velhos Mamos sabedores e no conjunto dessas comunidades que têm tanto para ensinar e para apresentar ao mundo. Mas nós, às vezes nos negamos a observar, ouvir e experimentar.
Me parece que é o momento de se irmanar com aquilo que faz parte da nossa visão de mundo, como dizia Bolívar: “o macrocosmo da raça humana”, isto é, os elementos essenciais da indianidade e da americanidade. Também temos que nos identificar com as negritudes, a mistura dos povos, raças e ideias e o sincretismo que é a própria mestiçagem. Este deve ser um propósito se queremos construir a Nova Colômbia a partir de uma mentalidade, uma cultura, um presente e um futuro diferentes.
R.B.: O ‘indigenismo’ parece como sinônimo de orgulho e identidade, mas vejo outros significados, por exemplo, uma alusão à infância.
J.S.: A infância é sagrada em qualquer comunidade. Para os povos indígenas é a semente da sua construção. Dentre as narrações que escrevi existe um conto muito particular: “Las aventuras del pequeño Dugunabi”. É sobre um deus rebelde e brincalhão que sempre está buscando o desconhecido. Nas suas viagens ao redor do sol ele comete muitas travessuras como roubar o tambor de Macuque, deus dos trovões, por isso ele é condenado a ficar semeado nas praias da Pocigueica.
Para além da própria punição se torna um dever do deus entregar as riquezas e os alimentos à sua comunidade. Está é precisamente a expressão do respeito à infância, à sua inocência e à sua maneira de entender o universo. A criança adquire elementos do entorno e constrói uma pessoalidade própria. A maneira em que os povos originários constroem a mentalidade e a espiritualidade das crianças é um grande exemplo para todo mundo.
R.B.: Poesia engajada, um estilo próprio de rebeldia. Falemos daqueles poemas que você tem dedicado aos seus contraditores.
J.S.: Um verso muito curto diz “os traidores fedem” e não diz mais nada. No geral os oponentes, se são confrontados no plano das ideias e no plano militar – isto nos foi imposto – devem ter um caminho, um espaço para chegar no entendimento. Agora vivemos tempos de paz e de reconciliação. Portanto, convidamos não só a quem concorda com nossas perspectivas, mas a quem é adverso. De fato, o acordo final é um ponto de convergência, de consenso a respeito da solução às necessidades básicas que a maioria da população do país tem que afrontar.
Neste sentido, temos nos aproximado de um setor dos oponentes, não do jeito que gostaríamos, mas temos dado um grande passo. É necessário aproximar os setores que nos confrontam de maneira radical, inclusive o uribismo. De alguma forma, devemos encontrar pontos de reconciliação ou, pelo menos de convivência pacífica se queremos fazer da Colômbia um país mais justo, onde os recursos cheguem realmente à população e nossa nação siga um rumo de desenvolvimento com justiça social. Escrevi muito contra os inimigos, mas acredito que agora não é o momento de lembrar do discurso da guerra é o momento de construir a paz.
R.B.: Os lampejos da lua são festejados pela noite... As palavras têm servido como refúgio na cegueira?
J.S.: As palavras são o som do universo, as que trazem o pensamento positivo ou negativo da humanidade. A palavra é o ponto de contato com o mundo. Digamos que a palavra além de transmitir o que acontece no pensamento, é também a forma de comunicar o que está no fundo dos próprios sentimentos. As palavras, na escuridão, são luzes na vereda que temos que percorrer.
R.B.: Em um poema seu, você afirma: “Cuando llegue la paz / sospecho que amaremos diferente: / habremos desarraigado el rencor / y en las fértiles parcelas / de los corazones / de los hombres libres del egoísmo / haremos la siembra nueva / del amor genuino / que da por frutos / libertad que no marchita” [Quando chegar a paz/ suspeito que amaremos diferente: / teremos desarraigado o rancor / e nas parcelas férteis / dos corações / dos homens livres do egoísmo / faremos a nova semeadura / do amor genuíno / que tem por frutos / a liberdade que não murcha]. Qual é a importância para as FARC da criação literária e, inclusive, das outras expressões artísticas?
J.S.: Tem sido muito difícil no decorrer de uma guerra de mais de meio século dedicar tempo às artes e ao entretenimento. De qualquer jeito as FARC em toda unidade guerrilheira, em todos os cantos do país, exceto em circunstancias excepcionais, abrem um espaço para a hora cultural. Normalmente, todos os dias depois das 18 horas, é dedicado um tempo ao estudo das notícias e da realidade nacional. Mas também abrimos um espaço para a cultura onde a ‘guerrilherada’ escreve seus versos, cria suas próprias músicas e interpreta o folclore nacional ou de qualquer cultura do mundo.
Nas FARC existe muita criatividade e engajamento, como no caso de Inti Maleywa que é uma pintora extraordinária. No seu surrealismo tem a maior dose de realismo que nosso país tem. Expressa a natureza e a violência com todas as suas cores. Sobretudo, existe um quê de otimismo em cada uma de suas representações
A maior contribuição é a inspiração que pode gerar este gesto heroico de mulheres e homens que estão dispostos – e o tem feito – para entregar suas vidas pela Nova Colômbia. Mas, particularmente tem escritores. Com certeza você conhece as novelas de Gabriel Angel, um guerrilheiro do Magdalena Medio, ou as músicas de profundo conteúdo literário de Julián Conrado, de Lucas Iguarán, de Cristian Pérez ou de Jaime Nevado. Existem muitos cantores que, além de interpretar as músicas, escrevem verdadeiras poesias que são expressões da arte ‘fariana’, sem esquecer quem cultiva a escultura, a dança, o teatro e a criação audiovisual.
Nesta ordem de ideias, tenho um ensaio intitulado “De Beethoven a Marulanda”. Ali tento elucidar o impacto do romanticismo no marxismo fariano, fundamentalmente na questão da cultura. Nesse ensaio dedico uma boa parte à música: uma descrição específica da Nona Sinfonia a qual eu considero ser uma das sinfonias mais revolucionarias da história.
Em “Poesía para buscar”, reflito a modo de diálogo e de intercâmbio epistolar sobre a teoria literária. Enfim, existem muitos escritos que, desafortunadamente, têm sido impossíveis de difundir. Alguns estão na internet e outros tem tido edições limitadas de dois ou três mil exemplares. Teríamos, nesta época de paz, a tarefa de percorrer os esconderijos e fazer a colheita de todos esses textos que ficaram guardados entre papeis desbotados e úmidos. Acontece da mesma maneira com os cadernos dos nossos combatentes. Encontra-se ali, eu acredito, um grande aporte à criação literária do nosso país.
R.B.: Gabriel Celaya diz: “Maldigo la poesía concebida como un lujo / cultural por los neutrales / que, lavándose las manos, se desentienden y evaden. / Maldigo la poesía de quien no toma Partido… Partido hasta mancharse (…)” [“vou maldizer a poesia concebida como luxo / cultural pelos neutrais / que lavando as mãos, se desentendem e evadem. / Vou maldizer a poesia de quem não tem um Partido... Partido até o momento de ir embora”] “el artista y la organización política”. Como construir esta relação?
J.S.: Nós temos tido sempre esta ideia. Simplesmente nossa situação clandestina e a perseguição pelo regime do terror colocava restrições e perigos para quem queria se aproximar a nós com o objetivo de fazer esse tipo de construção. De fato, nas propostas que levamos à mesa de Havana, insistimos muito na questão da cultura. Infortunadamente o governo sempre teve o argumento de que isso não estava na agenda, como se não fizesse parte da essência do ser humano.
De qualquer maneira, o assunto da educação atravessa todos os pontos da agenda e por tanto temos dito que o setor estudantil e acadêmico do país, tem que participar completamente na implementação dos acordos, sobretudo na geração de consciência. Penso que a academia deve sair do campus da universidade, dos claustros de formação, calçar as botas do camponês, do arrieiro, do indígena, no negro, dos bairros e caminhar pelas ruas e pelas trochas dos caminhos da Colômbia, para que nos cenários campestres ou nas florestas de cimento possamos começar a construção da contracultura que tanto requer o país para a implementação em democracia da justiça social.
Este é o critério que temos. Por isso, nossa proposta consiste em realizar, em cada uma das áreas de concentração nas veredas[5] e nos pontos de normalização, a construção de uma Rede Nacional Cultural. Isso já foi acordado, estamos conversando com a Organização dos Estados Ibero-americanos – OEI – para obter ajuda neste projeto no qual devem participar pintores, atores, cantores, poetas, escultores e cultores no geral... existem muitas pessoas dispostas para participar, tenho certeza disso.
* Rodolfo Beltrán. Escritor e jornalista.
Diana Gómez. Antropóloga
Ana Fiori. Antropóloga
[1] NdT. A Décima Conferencia Nacional Guerillera foi realizada do 17 ao 23 de setembro de 2016, No Yari, departamento de Caquetá. Ver mais informação no link: http://www.farc-ep.co/decima-conferencia/decima-conferencia-nacional-guerrillera.html (revisado no 04.2018)
[2] Jesús Santrich nasceu no departamento de Sucre em 1967, filho de educadores teve formação intelectual e política em casa. Aos 16 anos, entrou na Universidade do Atlântico no curso de Direito e na Licenciatura em Ciências Sociais. Formou-se em Licenciatura na Educação com ênfase em Ciências Sociais. Depois entrou na pós-graduação em História. Sua militância começou na Juventude Comunista de Colômbia, onde acompanhou Almicar Guido na construção do partido político Unión Patriótica, que foi extinto pelo genocídio realizado pelo Estado Colombiano e por grupos paramilitares. Diante dessa situação J. Santrich ingressou no Frente 19 das FARC. Atualmente é chefe do Bloque Caribe e participa como negociador nos diálogos de paz. Na sua bibliografia encontramos, entre outros, “versos insurgentes” (2007), “cuentos y diez relatos Tayronas” (2008), “De Beethoven a Marulanda: el asunto de las raíces románticas del marxismo fariano” (2012) textos que têm sido publicados em periódicos e revistas nacionais e internacionais.
* NdT. Esta entrevista foi realizada em setembro de 2016; publicada originalmente aqui, a apresentação oficial do partido político FARC foi realizada em setembro de 2017. Atualmente, Seuxis Pausias Hernández é representante à câmara legislativa pelo departamento de Atlántico.
[3] NdT. Os diálogos entre a guerrilha das FARC e o governo de Juan Manuel Santos se realizaram entre 4 de setembro de 2012 e o 24 de novembro de 2016, dia em que se assinou o Acuerdo para la terminación Definitiva del Conflicto na capital da Colômbia, Bogotá.
[4] Aqui o escritor se refere aos povos afrodescendentes que habitam as Ilhas de San Andrés e Providencia.
[5] NdT “zonas veredales” refere-se às áreas de concentração de combatentes onde eles iriam fazer a transição da vida armada à vida civil. Esta foi uma das disposições do acordo de paz.