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Avanço dos trabalhistas ingleses, e de seu líder rebelde, envia um sinal. Sociedades estão cansadas de partidos acomodados – mas dispõem-se a enfrentar o neoliberalismo e lutar por mudanças estruturais
Por Antonio Martins, no Outras Palavras
Num tempo sombrio, de retrocessos em todo o mundo, golpes e vitórias da direita (Trump, Temer, Macri, Duterte e muitos outros), surgiu na quinta-feira (8/8)um fato extraordinário, que é preciso examinar com atenção. Jeremy Corbyn, o líder rebelde do Partido Trabalhista britânico obteve resultado extraordinário nas eleições parlamentares do Reino Unido, realizadas ontem. Não chegou a vencer, mas resgatou seu partido, que muitos consideravam moribundo, e provocou um terremoto político. Obteve este êxito com uma nítida guinada à esquerda e um programa de alternativas reais e robustas ao neoliberalismo. O Parlamento, que tinha ampla maioria conservadora, agora está dividido. A primeira-ministra conservadora Thereza May, que convocou eleições antecipadas esperando alcançar uma vitória esmagadora, é considerada por todos a principal derrotada e talvez não consiga formar um novo governo. É possível que haja novas eleições, em breve. O que mais importa examinar é como isso tudo foi possível.
A figura de Jeremy Corbyn – que está desafiando todas as regras de bom comportamento em que se quer enquadrar a esquerda – é central neste processo. Com 68 anos, ele tem um perfil incomum, entre os membros de um partido que estava acomodado há cinco décadas. Apoiou a revolução da Nicarágua e o governo de Chávez na Venezuela. Opôs-se, nas ruas, às guerras dos Estados Unidos contra o Afeganistão e o Iraque, apoiadas pela Inglaterra e por seu partido. Eleito para o Parlamento em 1983, foi sempre um dissidente trabalhista, por não aceitar a adesão dos dirigentes às políticas de “austeridade” e aos Estados Unidos.
Mas há dois anos, quando a liderança do partido ficou vaga após mais um fracasso eleitoral, Corbyn enxergou que algo estava mudando. Lançou-se à eleição, que é feita pelo voto direto dos militantes. Despontou como um grande azarão, mas com uma ideia clara: era preciso reverter o corte de serviços públicos, o desmantelamento do Estado de Bem-Estar Social, o empobrecimento da maioria em benefício dos banqueiros e da aristocracia financeira. Para assombro de todos, suas propostas mobilizaram o velho partido adormecido. Após uma campanha meteórica, Corbyn obteve 59% dos votos já no primeiro turno. O resultado deveu-se, especialmente, à adesão de jovens. Milhares deles, que estavam desacreditados da política institucional, ingressaram no Partido Trabalhista, para ajudar a abrir a janela de esperança sinalizada pelo candidato.
Esta vitória não impediu que a mídia e os caciques considerassem que Corbyn era inviável eleitoralmente e tentassem sabotá-lo. Uma coisa, diziam, eram os jovens entusiasmados. Outra, o conjunto dos eleitores – que, segundo se dizia, rejeitariam um programa dissidente. Em junho de 2016, uma grande maioria de parlamentares do Partido Trabalhista derrubou Corbyn, com um voto de desonfiança. Ele aceitou o desafio e retornou, com uma vitória ainda mais expressiva, assegurada pela base do partido. Ainda assim, continuava estigmatizado. Há apenas quatro meses, a circunspecta revista The Economist previa que, sob sua liderança, os trabalhistas caminhariam para a morte.
Em 19 de abril – há apenas sete semanas, portanto – a primeira-ministra conservadora convocou eleições antecipadas. Alegava precisar de força para negociar, em melhores condições, a saída do Reino Unido da União Europeia – o chamado Brexit. No fundo, acreditava no mito da morte dos adversários. À época, as pesquisas eleitorais sugeriam que teria 24 pontos de vantagem sobre os trabalhistas – e que Corbyn, humilhado, não teria outra alternativa exceto renunciar.
O que se viu foi exatamente o contrário. Corbyn foi capaz de passar da crítica às alternativas. Seu programa – Manifesto, como dizem os ingleses – é um sinal de que a oposição ao neoliberalismo pode traduzir-se em propostas muito concretas. Ele propõe o resgate do NHS – o legendário sistema de Saúde pública e gratuita que foi depredado nos últimos governos. Quer resgatar a Educação pública, elevando os salários arrochados dos professores, introduzindo novos métodos e diminuindo o número da alunos por sala de aula. Defende o fim da cobrança de mensalidades nas universidades – introduzida pelos conservadores e mantida pelos trabalhistas. Quer reverter o aumento progressivo da idade mínima para aposentadoria. Não tem medo de dizer: tudo isso exigirá mais impostos – para os ricos e as grandes empresas e em especial a aristocracia financeira
Num tempo em que se recomenda à esquerda não questionar a estrutura de classes para não perder votos, Corbyn propôs um slogan divisivo: “Governar para muitos, e não para poucos”. Defendeu a reeestatização das ferrovias, do abastecimento de água dos correios. Justificou a medida com um argumento concreto, não ideológico: “são serviços públicos, sua propriedade não deve visar enriquecer ninguém, mas atender com qualidade a população. Questionou o alinhamento automático aos Estados Unidos. Lembrou que esta política obrigou a Inglaterra a apoiar a Arábia Saudita, o país mais implicado com os grupos extremistas que provocaram três grandes atentados terroristas na Inglaterra, só este ano. Anunciou que, se eleito, formaria um ministério em que pelo menos metade dos membros seriam mulheres.
Este programa radical, mas ao mesmo tempo muito concreto e pragmático, gerou um fenômeno político. Os eleitores sentiam que, depois de muitos anos, havia uma escolha real a fazer. Por isso, numa campanha curtíssima, a distância entre Thereza May, a primeira-ministra conservadora, e Jeremy Corbyn caiu muito rapidamente. Tudo sugere que, com mais duas semanas, o resultado seria o oposto. Mas o mais importante é: Corbyn revelou que outra esquerda é possível.
O resultado prático das eleições ainda é incerto. A bancada do Partido Trabalhista cresceu de modo expressivo: de 230 para 262 cadeiras no Parlamento. Os conservadores perderam 12 assentos: agora têm 318 – ou seja, já não são maioria. Tentarão chegar ao número mágico de 326 cadeiras aliando-se ao DUP, um partido religioso de direita ultraconservadora na Irlanda do Norte.
Mesmo que o consigam, terão composto um governo que já nascerá enfraquecido e mesmo desmoralizado. Theresa May queria um mandato forte para negociar o Brexit. Foi claramente derrotada neste intento. Como irá encarar agora os outros governantes da União Europeia, a quem desafiou? Há, ainda, a possibilidade de que ela não consiga entender-se com o DUP. Nesse caso, Corbyn será chamado pela rainha a tentar formar um governo. Como não tem maioria, novas eleições seriam provavelmente convocadas, em condições agora muito mais favoráveis para os trabalhistas.
Duas conclusões gerais emergem – e são muito positivas. Primeira: o muro neoliberal é um blefe. O discurso segundo o qual a esquerda precisa manter-se comportada, para não se inviabilizar, é falso. Corbyn pagou para ver, foi capaz de passar da oposição às propostas concretas e renovou o Partido Trabalhista.
Segunda: a rebeldia é possível – principalmente quando se acredita nos jovens, os mais atingidos pelo neoliberalismo. No Brasil, as últimas manifestações pelas diretas-já têm mostrado enorme presença das pessoas com menos de 25 anos, tanto da classe média quanto das periferias. É um sinal. Aqui, porém, estas pessoas não têm um instrumento político, uma forma de organização em que possam debater, permanecer mobilizadas, construir visões coletivas sobre o mundo, o país e sua cidade. Os partidos já não cumprem este papel. Não surgiu ainda nada como um Podemos ou como a rebeldia de Jeremy Corbyn no Partido Trabalhista britânico.
É uma enorme energia política desaproveitada. É um problema diante de nós, esperando uma resposta.
Foto: The Telegraph