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Não precisamos ser Estados Unidos ou Europa. Podemos ser América Latina. A expressão “América Latina” surgiu em contexto de colonialismo francês, mas hoje ela pode significar integração cultural, social e econômica. Por uma cidadania latino-americana
Por Konstantin Gerber* e João Vitor Cardoso**
Sobre a proposta de Donald Trump: pode-se construir o muro que se quiser. Isso não influirá no ânimo dos mais de 200 milhões de consumidores de cloridrato de cocaína nos Estados Unidos da América. Quer o custeio do muro? Basta recuperar a lavagem de dinheiro decorrente do narcotráfico que ocorre por meio das “ventanillas siniestras” de seu sistema financeiro. Ao invés do muro, propõe-se a construção de um túnel que leve até os paraísos fiscais, como certa vez escreveu Sérgio Augusto. É preciso também construir um túnel que leve ao lucro obtido com o comércio de armas que regam o México. E que os Estados Unidos indenize a cada um dos familiares mexicanos de vítimas mortas por armas de lá oriundas.
Já se construíram alguns muros no mundo. A opinião consultiva da Corte Internacional de Justiça sobre o muro construído por Israel sob o pretexto de contra-terrorismo considerou-o uma violação ao direito internacional. Fronteira é o que separa, mas, também, o que une. Fronteira desenvolve-se, não se fecha. É sabido que a maior parte dos atentados terroristas nos Estados Unidos decorre da extrema direita e não de discursos construídos em torno de fundamentalismos religiosos, cuja ascensão também não deve ser ignorada. Terrorismo depende de organização, de financiamento, de cooptação, de elos com o submundo do crime e não necessariamente de mesquitas.
Menos mal que ainda existem juízes nos Estados Unidos, pois a ordem executiva de Trump de impedir a entrada de pessoas de certos países do construído “oriente” foi barrada judicialmente.
O sistema interamericano de proteção de direitos humanos obriga os Estados à observância do devido processo legal, da assistência consular, do direito à assistência legal gratuita aos chamados imigrantes em situação irregular, do direito de acesso à justiça.
O momento é para os mexicanos pararem para pensar sobre o que significa desenvolvimento em seu país. Crescimento econômico não necessariamente corresponde à distribuição de renda, de bem estar, de acesso a serviços públicos ou de vida digna. O fato de muitos países terem diminuído seus índices de pobreza, não significa que se tornaram países mais justos. Uma elite rentista paira sobre a América Latina, cujo mosaico cultural deve ser levado em consideração na hora do que entendemos por pobreza (não somente relacionada ao consumo ou à renda), mas também como falta de possibilidades de expandir liberdades, para lembrar Amartya Sen, inclusive liberdades culturais, para que desenvolvimento signifique pluralidade de modos de fazer e viver, com distribuição de dignidade.
Ao presidente mexicano, cabe lembrá-lo da expressão “aprieta aqui, hincha allá”, caso opte pela continuidade à repressão ao narcotráfico, pois a violência não apenas aumentou em seu país, como também se estende para toda América Central. De acordo Saúl Hernandez, entre dezembro de 2006 e novembro de 2011 foram assassinadas 829 pessoas em eventos relacionados com o narcotráfico somente na cidade do México. O número de massacres é extenso no país, considerando terem sido contabilizadas 199 organizações criminosas existentes, de acordo com base de dados da guerra às drogas do Centro de Investigación y Docencia Económicas.
O modelo estadunidense de prisão-internação em matéria de política de drogas deve ser substituído pelo modelo de regulação constitucional com prevenção e redução de riscos e danos sociais e à saúde. Se existem obstáculos nas Convenções Internacionais que instituíram o modelo internacional de proibição das drogas, é hora de reinterpretá-las. Ademais, cumpre lembrar que os Estados sempre foram soberanos para ditar quais políticas julgam mais convenientes para lidar com usuários e dependentes de drogas.
Não precisamos ser Estados Unidos ou Europa. Podemos ser América Latina. A expressão “América Latina” surgiu em contexto de colonialismo francês, mas hoje ela pode significar integração cultural, social e econômica. Por uma cidadania latino-americana.
De se pensar em moedas regionais e também sociais, em cooperação relacionada a tecnologias sociais, o que significa entrar em guerra contra o papel de consumidores de produtos e cultura norte-americanos – contra seus modos de vida que esmagam outros minoritários, precários, frágeis, vulneráveis, para não dizer, experimentais, mas nunca menores – e aprender, concretamente, a reinventar modos de produção e de cooperação que escapem às evidências do crescimento e da competição. Trata-se de fazer pensar, produzir, chacoalhar alguns hábitos, em homenagem ao que Stengers chama de tornarmo-nos “objetores de crescimento”, desse desenvolvimento que nos torna cada vez mais dependentes de petróleo, minério, agronegócio ou de grandes empreendimentos. É preciso transitar para outra economia, justa, solidária e absolutamente despetrolificada, para deixar o pré-sal onde está.
Como pensa Pietro de Jesús Lara Alarcón, qualquer proposta de unidade de Estados deve resultar de pleno acordo dos povos e não mero reflexo de interesses de grupos transnacionais hegemônicos. É hora de repensar em que moeda devem nossos países atrelar suas dívidas públicas. É hora de aprimorar nossos parlamentos regionais. E que a participação popular seja garantida na próxima Cumbre Iberoamericana de 2018. Latino-américa, “zapatea que tú no eres gringa”!
*Konstantin Gerber, advogado consultor em São Paulo, mestre e doutorando em Filosofia do Direito, PUC SP, onde integra o grupo de pesquisas em direitos fundamentais. É professor convidado do curso de especialização em direitos humanos
*João Vitor Cardoso, advogado consultor em São Paulo, graduado pela PUC-SP, pesquisador do NETI-USP e mestrando na FFLCH-USP
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