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Num continente acossado por desemprego e pressão sobre direitos sociais, ultra-direita apela para o discurso da “pureza racial” e do ódio ao Outro. Eleições austríacas sinalizam a ameaça
Por Ignácio Ramonet* / Tradução de Inês Castilho e Gabriela Leite, no Outras Palavras
O susto foi grande. E embora ao final Norbert Hofer, o candidato da extrema direita, não tenha sido eleito presidente da República Áustria em 22 de maio (por um triz… [1]), cabe perguntar que medos sentem os austríacos para que 49,7% deles tenham optado por votar num neofascista.
“Na história das sociedades – explica o historiador francês Jean Delumeau –, os medos vão mudando, mas o medo permanece”. Até o século XX, as grandes desgraças dos seres humanos eram causadas principalmente pela natureza, a fome, o frio, os terremotos, as inundações, os incêndios, a escassez de alimentos, e por pandemias epidêmicas como a peste, a cólera, a tuberculose, a sífilis etc. Antigamente, o ser humano vivia exposto a um entorno sempre ameaçador. As tragédias o espreitavam incessantemente…
A primeira metade do século XX esteve marcada pelo terror das grandes guerras, de 1914-1918 e de 1939-1945. A morte em escala industrial, os êxodos bíblicos, as destruições em massa, as perseguições, os campos de extermínio… Depois da Segunda Guerra Mundial e da destruição atômica de Hiroshima e Nagasaki em 1945, o mundo viveu sob a ameaça constante do apocalipse nuclear. Mas este medo foi se extinguindo pouco a pouco com o final da Guerra Fria em 1989 e após a assinatura de tratados internacionais que proíbem e limitam a proliferação nuclear.
Contudo, a existência desses tratados não eliminou os riscos. A explosão da central nuclear de Chernobyl, em particular, reavivou o terror nuclear. Mais recentemente, ocorreu o acidente de Fukushima, no Japão. A opinião pública, estupefata, descobriu que mesmo num país conhecido por sua alta tecnologia como o Japão se transgrediam princípios básicos de segurança, o que colocava em perigo a saúde e a vida de centenas de milhares de pessoas.
Os historiadores das mentalidades se perguntarão algum dia sobre os medos de nossa década (2010-2020). Descobrirão que, com exceção do terrorismo jihadista que continua golpeando as sociedades ocidentais, os novos medos são mais de caráter econômico e social (desemprego, precariedades, demissões em massa, despejos, novas pobrezas, imigração, desastres da Bolsa, deflação), assim como de natureza sanitária (vírus Ebola, febres hemorrágicas, gripe aviária ou H1N1, chikungunya, zika) ou ecológica (desajustes climáticos, transformações profundas do meio ambiente, megaincêndios incontrolados, contaminações, poluições do ar). Estes dizem respeito tanto ao âmbito coletivo quanto à esfera privada.
Nesse contexto geral, as sociedades europeias encontram-se especialmente chocadas, submetidas a abalos e traumas de grande violência. A crise financeira, o desemprego em massa, o fim da soberania nacional, o desaparecimento das fronteiras, o multiculturalismo e o desmantelamento do Estado de bem-estar social provocam, no espírito de muitos europeus, a perda de referências e de identidade.
Uma pesquisa recente, realizada nos sete principais países da União Europeia pelo Observatório Europeu de Riscos, constata que 32% dos europeus têm hoje muito mais medo de passar por dificuldades financeiras do que há cinco anos; 29% têm mais medo de cair na precariedade; e 31%, de perder o emprego. Na Espanha, a pobreza aumentou de “modo alarmante” nos últimos anos, com 13,4 milhões de pessoas – isto é, 28,6% da populaçao – em risco de exclusão social e recaída na miséria… Porque esses medos fazem viver uma experiência de rebaixamento: 50% dos europeus têm a sensação de encontrar-se numa regressão social com relação a seus pais.
A crise atual bem poderia marcar o ponto final do poderio europeu no mundo. Depois da chegada maciça de migrantes vindos do Oriente Médio (Síria, Iraque) nestes últimos meses, o medo da “invasão estrangeira” aumentou. Amplia-se a sensação de estar ameaçado por forças exteriores que os governos europeus já não controlariam, como o triunfo do Islã, a explosão demográfica do Sul e as transformações socioculturais que manchariam sua identidade. E tudo isso se produz num contexto de crise moral grave, na qual se multiplicam os casos de corrupção e em que a maioria dos que governam, muito impopulares, veem desmoronar sua legitimidade. Em toda a Europa, esses medos e essa “podridão” são explorados pela extrema direita com fins eleitorais. Como demonstrou a vitória, em 25 de abril, da extrema direita no primeiro turno das eleições legislativas da Áustria. Onde, além disso, acontece o colapso dos grandes partidos tradicionais (o SPÖ, social democrata, e o ÖVP, democrata cristão), que haviam governado o país desde 1945.
Diante da brutalidade e do caráter repentino de tantas mudanças, as incertezas acumulam-se. A muitos, parece que o mundo torna-se opaco e que a história escapa a qualquer tipo de controle. Muitos europeus se sentem abandonados por seus governantes, tanto de direita como de esquerda, os quais, além disso, são descritos incessantemente pelos grandes meios de comunicação como trapaceiros, mentirosos, cínicos, ladrões e corruptos. Perdidos no centro de tal turbilhão, alguns entram em pânico e são invadidos por um sentimento de que, tal como dizia Tocqueville, “uma vez que o passado deixou de iluminar o futuro, a mente caminha entre trevas”…
Neste caldo de cultura social – composto por medos, ameaças ao emprego, desenraizamento identitário e ressentimento – voltam a aparecer os demagogos. Aqueles que, com base em argumentos nacionalistas, rejeitam o estrangeiro, o muçulmano, o judeu, o cigano ou o negro, e denunciam as novas desordens e inseguranças. Os imigrantes constituem os bodes expiatórios ideais, e os alvos mais fáceis porque simbolizam as profundas transformações sociais e representam, aos olhos dos europeus mais modestos, uma competição indesejável no mercado de trabalho.
A extrema direita sempre foi xenófoba. Pretende atenuar a crise apontando um único culpado: o estrangeiro. Essa atitude é incentivada pelas contorsões dos partidos democráticos, reduzidos a se perguntar sobre que dose de xenofobia podem incluir em seu próprio discurso.
Com a recente onda de atentados em Paris e Bruxelas, o medo do Islã foi ainda mais reforçado. Cabe recordar, por exemplo, que há entre 5 e 6 milhões de muçulmanos na França, o país com a comunidade islâmica mais importante da Europa. E cerca de 4 milhões de muçulmanos na Alemanha. Segundo pesquisa recente do diário francês Le Monde, 42% dos franceses consideram que os muçulmanos não estão integrados nas sociedades onde foram recebidos. 75% dos alemães estimam que não estão “em absoluto” integrados ou que “mal estão integrados”; e 68% dos franceses pensam da mesma maneira.
Há alguns meses, a chanceler alemã Angela Merkel – que em seguida acolheu em seu país mais de 800 mil imigrantes que solicitavam asilo em 2015 – afirmava que o modelo multicultural, segundo o qual conviveriam em harmonia diferentes culturas, havia “fracassado por completo”. E um panfleto islamofóbico escrito por um ex-dirigente do Banco Central alemão, Thilo Sarrazin, denunciando a falta de vontade dos imigrantes muçulmanos de integrar-se, foi um êxito retumbante nas livrarias alemãs e vendeu nada menos que 1,25 milhão de exemplares.
Um número cada vez maior de europeus falam do Islã como de um “perigo verde”, à maneira em que outrora se imaginavam os avanços da China, falando do “perigo amarelo”. A xenofobia e o racismo estão aumentando em toda a Europa. A isso, contribui, sem dúvida, o fato de que alguns muçulmanos que vivem na Europa estão longe de ser irrepreensíveis. Especialmente – em um momento em que os meios de comunicação evocam a brutalidade do Estado Islâmico, o Daesh, no Iraque e na Síria – os ativistas islâmicos, que aproveitam o clima da liberdade que reina nos países europeus para desenvolver um proselitismo ultra-fundamentalista, de sentido salafista. Pregam o doutrinamento de seus correligionários ou de jovens cristãos convertidos. Os mais extremistas participaram da recente onda terrorista na França e na Bélgica.
No âmbito político, são muitos os discursos dramáticos que despertam a preocupação e a angústia dos eleitores. Durante as campanhas eleitorais, é comum encontrar discursos que recorrem ao instinto de proteção dos indivíduos. Apela-se muito frequentemente ao medo Trata-se de uma manipulação. E, na utilização desse sentimento, o populismo de direitas converteu-se, no contexto atual de crise social, em experts. Não só na Áustria. Na França, por exemplo, não há nenhum discurso da Frente Nacional e de sua dirigente Marine Le Pen, em que não se mencione o medo. Le Pen evoca de forma constante as “ameaças” que pesariam sobre a segurança física e o bem-estar dos cidadãos. E apresenta seu partido como um “escudo protetor” frente a esses “perigos”.
Em todos os seus documentos, o Partido da Liberdade da Áustria (FPÖ, em alemão) e seu líder Norbert Hofer insistem na persistência de um passado idealizado e uma identidade que deve ser preservada. Promovem o medo, mencionado regularmente, de um “enemigo exterior”: o Islã, contra o qual, a “nação austríaca” tem que atuar como um bloco. Denunciam o Outro, o estrangeiro, como um perigo para a coesão da comunidade nacional. Em todos os discursos populistas das direitas, encontra-se esse medo do Outro que, obrigatoriamente, é o inimigo — rejeitado porque não compartilha dos valores da “Pátria eterna”.
Em seus discursos, os líderes das novas extremas direitas também atacam a União Europeia (UE). Acusam-na de todos os males, sobretudo de “por em perigo” os Estados-nação e seus povos. A UE é designada como culpada da fragmentação das nações. Ao mencionar as “trevas da Europa”, Norbert Hofer mergulha seus ouvintes na inquietude. Porque, na cultura ocidental e cristã, as “trevas” designam, no geral, o nada e a morte. Assim sendo, o FPÖ apresenta-se como um partido “salvador”, aquele que conseguirá levar a nação austríaca à luz.
A maioria dos populistas de direita na Europa manipula hoje uma amplificação e dramatização dos perigos. Seus discursos propõem apenas ilusões. Mas em um período de dúvidas, de crise, de angústia e de novos medos, suas palavras conseguem captar melhor um eleitorado desconcertado e aprisionado pelo pânico.
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(1) Depois da recontagem de 900.000 sufrágios por correio, o candidato ecologista Alexander Van der Bellem, catedrático emérito de Economia, de 72 anos, foi eleito novo Presidente da Áustria com 53,3% dos votos, ante os 49,7% do aspirante de ultradireita, Norbert Hofer, que havia sido vencedor do primeiro turno, com 35% dos votos.
*Ignácio Ramonet é jornalista, editor do Le Monde Diplomatique, edição espanhola, e presidente da rede Memória das Lutas – Medelu