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Em meio a análises sobre o significado da imposição de um acordo brutal ao povo grego, surgem dúvidas a respeito da força da “união” dos países do Velho Continente
Por Glauco Faria
Esta é uma matéria da Fórum Semanal. Confira o conteúdo especial da edição 205 clicando aqui
Se fosse uma partida de futebol, não seria exagero dizer que a Grécia tomou uma virada enquanto ainda comemorava o seu gol. Após o referendo realizado no país no último dia 5, no qual o povo grego rejeitou a proposta de acordo que vinha sendo negociada com a troika (formada pela Comissão Europeia, o Banco Central Europeu - BCE e o Fundo Monetário Internacional - FMI), os credores impuseram ao país, algumas dezenas de horas depois, um pacote com “concessões difíceis”, de acordo com as próprias palavras do primeiro-ministro Alexis Tsipras. Entre rejeitar a imposição e suportar todas as consequências – saída do Euro e iminente caos econômico – o governo se dobrou.
Desde então, o que se seguiram foram análises e avaliações a respeito do que significou o gesto e as implicações futuras decorrentes de uma reversão tão rápida de expectativas. Entre os pontos acertados estão a criação de um fundo de privatização e o compromisso com reformas da previdência, fiscal, trabalhista e administrativa, em troca de um resgste a ser recebido de 86 bilhões de euros, além da promessa de reestruturação da dívida grega.
“A alternativa ao acordo fechado nesse final de semana, com a saída da eurozona, seria enfrentar situação de insolvência e colapso que rapidamente poderia levar à queda do governo de esquerda, sustentado no Parlamento por uma coalizão com os Gregos Independentes, nacionalistas de centro-direita”, avalia o editor do Opera Mundi, Breno Altman, em artigo. “Este caminho, defendido principalmente pelo Partido Comunista, não apresenta apoio interno ou solidariedade internacional suficientes. A maioria do povo continua amplamente favorável à integração regional e não se dispõe a pagar por uma ruptura de resultados imprevisíveis.”
Altman compara a atitude de Tsipras em relação ao acordo com a de Lênin ao assinar o Tratado de Brest-Litovsk em março de 1918, ocasião em que os russos aceitaram as condições dos alemães, superiores militarmente, para encerrar a primeira guerra enfrentada pelo governo revolucionário. “A paz foi decisiva, nos meses seguintes, para o governo bolchevique enfrentar vitoriosamente a contrarrevolução, incluindo novas invasões estrangeiras, em uma guerra civil que durou de 1918 a 1922, ao cabo da qual foi possível a recuperação da Ucrânia e da Bielorrussia”, aponta.
Gilberto Maringoni, professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC, também não enxerga na atitude do governo do Syriza uma “traição” aos propósitos originais do partido. “Falar em traição ou capitulação de Alexis Tsipras e do Syriza – que agiram como partisans diante da plutocracia financeira – significa desviar os olhos não apenas do jogo bruto da troika – que inclui a 'social-democracia' francesa –, mas do comportamento indigno e covarde da quase totalidade dos países do mundo”, pontua neste texto.
“Há um esquerdismo sedutor que apregoa soluções mágicas. 'Sair do euro', 'Romper com a troika'. Ou caminhar em direção ao socialismo já. Sim, tudo muito desejável, muito atraente. Eu também quero!”, ironiza Maringoni. “O problema é o mundo real. Os bancos gregos quebrariam em questão de dias. O país ficaria um tempo indefinido sem meios de pagamentos. Não se sabe como a população aguentaria novos sacrifícios, sem um horizonte planetário definido”, conclui.
Contudo, também houve quem avaliasse que a condução de Tsipras tenha sido equivocada. Em artigo, Max Altman fez uma comparação com um outro momento histórico para condenar a conclusão do acordo. “Comparações históricas são imprecisas e reducionistas. O que me ocorre é o que aconteceu com Cuba em seguida à derrocada da União Soviética. Fidel foi à Praça da Revolução e perguntou à multidão ali reunida se estava disposta a resistir. Resistiram, passaram fome, iam a pé para o trabalho pois não havia combustível para os veículos, assavam folha de bananeira à guisa de filé de carne, apagões diários e intermináveis … Resistiram anos e mantiveram a dignidade e a soberania. Aos poucos, com a solidariedade internacional de povos e medidas locais e internacionais, a situação tendeu a melhorar.”
O fato é que a capitulação não encontrou consenso nem mesmo dentro do governo ou do Syriza. A vice-ministra de Finanças Nadia Valavani pediu demissão na quarta-feira (15), dizendo que “devido às medidas inúteis” firmadas no tratado não poderia seguir como membro do governo. No mesmo dia, uma declaração assinada por 109 dos 201 integrantes do comitê central do partido de Tsipras exigia uma reunião urgente do órgão afirmando que “este acordo não é compatível com as ideias e os princípios da esquerda, e em especial com as necessidades da população. Esta proposta não pode ser aceita pelos governantes do Syriza”.
Tal, cenário, associado a protestos nas ruas que uniram a juventude do partido, sindicalistas comunistas e a esquerda extraparlamentar do Antarsya, causou alguma insegurança em relação à aprovação do acordo no parlamento grego. Mas o primeiro-ministro foi bem sucedido para garantir a aprovação de termos que ele confessa não acreditar. Ao fim, 124 deputados do Syriza votaram a favor do tratado, além de 105 deputados de outras agremiações, totalizando 229 favoráveis, 64 contra e 6 abstenções. Entre os contrários, votos importantes como os dos ministros Lafazanis e Stratoulis e dos ex-ministros Varoufakis e Nadia Valavani, além da presidente do Parlamento Zoe Konstantopoulo.
Para onde leva a humilhação?
No dia da aprovação do tratado no parlamento grego, Alexis Tsipras reafirmou que não vai aplicar medidas de austeridade como fizeram os governos anteriores que levaram o país à drástica situação atual. Entre o acordo proposto pela troika e rejeitado em referendo e o firmado com o Eurogrupo, uma diferença fundamental é que o fundo de privatização passa a ser gestado pelo governo grego, quando na versão anterior os titulares seriam os credores internacionais. O valor a ser recebido pela Grécia também é maior, já que se tratava de um total de 29 bilhões de euros originalmente.
Tsipras disse ainda que não será ele o articulador da saída da Grécia da União Europeia, o que, em sua visão – mas não só dele – transformaria uma crise humanitária em uma “catástrofe”. Em relação à possibilidade de sair do cargo de primeiro-ministro, aventada mesmo por aliados, ele negou. “Não faremos o favor aos nossos adversários de dentro e de fora do país de nos tornarmos um pequeno parêntesis”, disse, afirmando ter orgulho da batalha travada “contra adversários poderosos do sistema financeiro internacional”. “E estou confiante que esta luta dará frutos na Europa.”
A referência que Tsipras faz ao resto da Europa também é um importante objeto de análise. Se a Grécia é afetada diretamente pelo desenrolar das negociações, os outros países do continente fazem suas próprias avaliações a partir, principalmente, da forma como se deu a imposição de termos brutais aos gregos. “A União Europeia nunca foi uma União democrática mas foi, até hoje, uma União de Estados democráticos. Ambas estão associadas. Na Europa da Sra. Merkel, a porta da rua é serventia de quem não obedece”, disse a eurodeputada portuguesa Marisa Matias, pontuando que o acordo de “ajuda” aos gregos representa o início do fim da União Europeia.
Para Matias, a humilhação nacional a que foi submetida a Grécia pode gerar um “ressentimento profundo” que pode abalar a própria noção de união dos Estados do Velho Continente. “As respostas a esse ressentimento só poderão ser emancipatórias, senão não serão respostas, mas terão que ser certamente construídas contra esta pseudo-União, na Grécia e onde quer que os cidadãos se fartem dos maus-tratos de uma elite de rufias e mafiosos. Agradeçam à Sra. Merkel: ontem à noite, começou a morrer a Zona Euro. Paz à sua alma”, conclui.
A demonstração de poder de uma elite econômico-financeira, representada pela figura da chanceler alemã Angela Merkel – mandatária do país que, junto com a França, mais se beneficiou com os altos gastos militares gregos no período em que a dívida grega se elevou fortemente –, certamente não será ignorada em um continente marcado por rixas históricas e desconfiança mútua entre vizinhos. O centralismo germânico parece já incomodar mesmo seus aliados mais poderosos e reações secundárias como a ascensão de uma direita mais extremada e o fortalecimento de sentimentos nacionalistas não estão descartadas.
"Quando a Alemanha endureceu mais ainda o jogo na ultima reunião de cúpula (a de domingo para segunda, que durou 17 horas madrugada a dentro), ela simplesmente jogou no lixo a proposta que Tsipras encaminhara. Acontece que esta proposta fora redigida de comum acordo com a França. E tinha o apoio da Itália e mais veladamente da Espanha. A Alemanha consolidou sua liderança da linha dura - mantida por alguns países do antigo leste europeu e por países como a Finlândia e a Holanda - mas estremeceu as relações com Paris, Roma e Madri, pelo menos. Isto pode eventualmente favorecer linhas duras, como a de Frente Nacional na França, dissidentes como o Podemos na Espanha, ou ainda decididamente anti-euro e anti-UE, como na Inglaterra, que tem um plebiscito marcado para 2017 sobre a permanência na União", escreve Flávio Aguiar no artigo Lições da Grécia
Se tal insatisfação já foi visível quando a palavra "golpe" foi atribuída ao ocorrido com a Grécia em diversas línguas nas redes sociais, ninguém é capaz de apostar até onde esse sentimento pode levar. Mas uma coisa é certa: o "rei" Financismo poucas vezes se viu tão nu diante de tantos. “O que aconteceu durante o fim de semana não equivale exatamente a um golpe, foi uma exibição rude de poder, por parte da Alemanha e uma lembrança apavorante da lógica impiedosa de uma união monetária dominada por credores e economia pré-keynesiana”, afirma o colunista John Cassidy. “Nas palavras de Paul De Grawe, um conhecido economista belga que ensina na London School of Economics, um 'alicerce do futuro modo de governo' da zona do euro foi cimentado no fim de semana: 'Submeta-se ao domínio alemão ou saia'. Nos próximos anos e décadas, a Alemanha corre o risco de descobrir que muitos europeus preferirão a segunda opção.