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Às vésperas do segundo aniversário de um dos piores acidentes industriais na história moderna, que causou a morte de mais de 1,1 mil pessoas em Bangladesh, um informe da organização Human Rights Watch (HRW) denuncia que o setor têxtil do país continua sofrendo da mesma cultura de abusos
Por Kanya D’Almeida e Naimul Haq, da IPS/Envolverde
Na véspera do segundo aniversário de um dos piores acidentes industriais na história moderna, um informe da organização Human Rights Watch (HRW) denuncia que o setor têxtil em Bangladesh continua sofrendo da mesma cultura de abusos e falta de garantias que causou a morte de mais de 1.100 pessoas há dois anos.
O Rana Plaza, um edifício de oito andares que abrigava cinco fábricas têxteis em Daca, capital do país, desmoronou no dia 24 de abril de 2013. Além do grande número de mortos, o acidente deixou feridas mais de 2.500 pessoas nesse país da Ásia meridional, de 156 milhões de habitantes.
Quando ocorreu, os trabalhadores tiveram a esperança de que a tragédia acabaria com os abusos trabalhistas. Mas o informe da HRW, uma organização de direitos humanos que tem sede nos Estados Unidos, indica o contrário. Baseado em entrevistas com cerca de 160 trabalhadores de 44 fábricas, principalmente dedicadas à confecção de roupas vendidas por empresas varejistas na Austrália, Europa e América do Norte, o informe publicado na quinta-feira, dia 23, conclui que as normas de segurança em Bangladesh continuam sendo ruins, que os abusos trabalhistas são comuns e que o assedio sindical, incluídos os ataques violentos e a intimidação dos sindicalistas, são a norma.
Alguns dos entrevistados dizem que receberam golpes de ferros. Outros denunciam que suas famílias foram ameaçadas de morte. Uma grávida teria sido agredida com barras de cortina metálica. Para milhares dos quatro milhões de pessoas que trabalham no setor têxtil este tipo de brutalidade é parte de sua vida cotidiana, segundo a HRW.
Embora não sofram agressões físicas, as e os trabalhadores das cerca de 4.500 fabricas que compõem a enorme indústria do vestuário em Bangladesh quase seguramente sofrem outras injustiças, como horas extras não remuneradas, abusos sexuais ou verbais e condições de trabalho inseguras e insalubres.
Após o acidente com o Rana Plaza há dois anos, os funcionários governamentais, poderosas associações comerciais e empresas estrangeiras que compram a roupa confeccionada em Bangladesh se comprometeram a remediar as falhas do setor têxtil, que exporta US$ 24 bilhões por ano. Ao longo da cadeia de suprimento foi prometido que uma tragédia desse tipo jamais voltaria a se repetir. Mas essas promessas não foram cumpridas.
Em dezembro de 2014 o governo de Bangladesh aumentou o salário mínimo de US$ 39 para US$ 68 mensais. Embora tenha sido um considerável avanço, os trabalhadores pretendiam um mínimo de US$ 100. Por outro lado, a aplicação é lenta. Segundo Moshref Mishu, presidente do Fórum da Unidade dos Trabalhadores Texteis, que representa 80 mil trabalhadores, somente 40% das empresas cumprem a lei do salário mínimo.
Segundo Mishu, as mulheres, que constituem o grosso da mão de obra do setor, são a “alma” desta indústria vital que produz 80% da renda com exportações e contribui com 10% do produto interno bruto anual do país. Mas, são vítimas de “salários de exploração” porque os varejistas exigem preços competitivos, acrescentou.
De fato, muitos donos de fábricas concordam que a pressão das empresas que fazem pedidos a granel para agilizar as linhas de produção e melhorar as margens de lucro contribui para a má situação trabalhista, já que os varejistas de marca raramente incluem o fator do cumprimento das normas de segurança e trabalhistas em seu cálculo de custos.
Os “custos financeiros são pesados para os proprietários das fabricas”, assegurou Meenakshi Ganguly, diretora da HRW na Ásia meridional. “Eles argumentam que uma pequena transação sobre a margem de lucro pode fazer muito para ajudar as fabricas de Bangladesh a cumprirem” as leis, afirmou à IPS.
Onde quer que esteja a culpa pelo descumprimento, são inegáveis as consequências negativas para os trabalhadores, e especialmente para as operárias.
Uma pesquisa feita em abril de 2014 pela organização internacional não governamental Democracia Internacional mostra que 37% dos trabalhadores denunciaram que não recebiam licença por doença, e 29% careciam da licença maternidade remunerada.
Os que não cumprem a meta de produção sofrem descontos nos salários, enquanto a pesquisa da HRW indica que “os operários em quase todas as fabricas” pesquisadas se queixaram de não receberem seus salários ou benefícios em sua totalidade ou a tempo. As horas extras sem consentimento dos trabalhadores são extremamente comuns, bem como as péssimas instalações de saneamento e a água potável contaminada.
Diante desta situação, muitos trabalhadores estão conscientes de que sua melhor oportunidade para obter condições dignas de trabalho está em sua capacidade de negociação coletiva. Mas, o assédio sindical e outras atividades anti-sindicais são comuns no setor têxtil, e muitos sindicalistas apanham até se submeterem e dezenas de pessoas são aterrorizadas para se manterem dóceis.
“Fui detida e presa sete vezes, mas me deixaram em liberdade porque não tinham provas contra mim”, disse Mishu, do Fórum de Unidade dos Trabalhadores Têxteis. “A única acusação que me faziam era de falar a favor dos trabalhadores. Cada vez que erguemos a voz contra os proprietários das fabricas têxteis, em lugar de negociarem conosco aplicam a força para nos silenciar”, ressaltou.
O testemunho de Mishu reflete numerosos incidentes semelhantes registrados no informe da HRW, que inclui um ataque em fevereiro de 2014 contra quatro ativistas da Federação de Bangladesh pela Solidariedade Operária, no qual um deles ficou ferido tão gravemente que permaneceu 100 dias hospitalizado. Seu único “crime” foi ajudar empregados da fábrica de propriedade coreana Chunji Knit a preencherem os formulários de inscrição no sindicato.
“Constatamos que os proprietários das fabricas empregam capangas locais para intimidar e atacar os organizadores sindicais, frequentemente fora do prédio da fábrica”, disse Ganguly, da HRW. “E então alegremente negam sua responsabilidade dizendo que os ataques não tiveram nada a ver com a fábrica”, acrescentou. Em um dos piores exemplos de atividade anti-sindical, a HRW informou que o ativista Aminul Islam foi “sequestrado, torturado e assassinado em abril de 2012, e até hoje seus assassinos não foram encontrados.
Apesar de as reformas, duramente conquistadas, terem elevado o número de sindicatos registrados oficialmente na Direção de Trabalho de apenas dois, em 2012, para 416, em 2015, a representação sindical continua sendo escassa. Apenas 10% das fabricas têxteis estão sindicalizadas em Bangladesh.
Foto de capa: Obaid Arif/IPS