Escrito en
GLOBAL
el
A organização Médicos pela Responsabilidade Social, já premiada com um Nobel, realizou um estudo no qual conclui que o número de mortos nos dez anos da “Guerra ao Terror” desde os ataques de 11 de setembro é de no mínimo 1,3 milhão de pessoas e pode ultrapassar os dois milhões. Desde os anos 1990, número pode superar os 4 milhões
Por Nafeez Ahmed, FiredogLake (de Middle East Eye), original em Unworthy Victims: Western Wars Have Killed Four Million Muslims Since 1990. Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu e publicado em Redecastorphoto. Título original: Guerras do “ocidente” já mataram 4 milhões de muçulmanos desde 1990
Mês passado, a organização Médicos pela Responsabilidade Social [orig. Physicians for Social Responsibility (PRS)] que tem sede em Washington divulgou estudo crucialmente importante, no qual a organização conclui que o número de mortos nos dez anos da “Guerra ao Terror” desde os ataques de 11/9 é de no mínimo 1,3 milhões de pessoas e pode ultrapassar os dois milhões.
O relatório de 97 páginas, distribuído pela organização de médicos que já recebeu um Prêmio Nobel é o primeiro estudo dedicado a estimar o número de civis mortos nas intervenções de contraterrorismo comandadas pelos EUA no Iraque, Afeganistão e Paquistão.
O relatório da PSR é assinado por uma equipe interdisciplinar de especialistas, entre os quais o Dr. Robert Gould, Diretor de Formação e Educação Profissional Médica no Centro Médico da University of Califórnia, San Francisco; e o professor Tim Takaro, da Faculdade de Ciências da Saúde na Simon Fraser University.
Até aqui completamente apagado de todos os veículos da mídia-empresa comercial em língua inglesa, trata-se de estudo histórico revolucionário e primeira tentativa, realizada por organização de saúde pública de renome mundial, para produzir informação confiável sobre o número de vítimas civis, assassinadas na “guerra ao terror” comandada por EUA e Reino Unido.
Corrigir números e preencher lacunas
O relatório da PSR é apresentado pelo Dr. Hans von Sponeck, ex-Vice-Secretário-Geral da ONU, como “contribuição significativa para diminuir o fosso que separa estimativas confiáveis do número de vítimas da guerra, especialmente civis no Iraque, Afeganistão e Paquistão, e números tendenciosos, manipulados e até fraudulentos”.
O relatório faz uma revisão de estimativas anteriores do número de mortes da “guerra ao terror”. E é duramente crítico do número mais frequentemente citado pela mídia-empresa comercial como número confiável, a saber o índice Iraq Body Count (IBC) que notifica 110 mil mortos. Esse número é construído a partir de outras “estimativas” publicadas pelos veículos da mídia-empresa comercial, mas o estudo da organização PSR identifica graves lacunas e erros de metodologia nesse tipo de abordagem.
Por exemplo, apesar de 40 mil cadáveres terem sido sepultados em Najaf desde o início da guerra, o índice jornalístico IBC só registrou, para o mesmo período, 1.354 mortes em Najaf. Esse exemplo mostra como é grande a diferença entre os números jornalísticos do IBC e o número real de mortos – neste caso o número de mortos que a mídia-empresa comercial está divulgando é 30 vezes menor que o número real.
Esse tipo de discrepância é encontrável em todo o banco de dados do índice IBC com o qual trabalha a mídia-empresa comercial. Noutro campo, o índice IBC registrou apenas três ataques aéreos num período em 2005, quando o número de ataques realmente cresceu de 25 para 120 naquele ano. Dessa vez, o número que a mídia-empresa comercial está divulgando é 40 vezes menor que o número real.
Segundo o estudo da PSR, até o muito discutível estudo publicado pela revista Lancet, que estimava em 655 mil o número de mortos no Iraque até 2006 (e mais de um milhão até hoje, por extrapolação) estava mais próximo da realidade que os números jornalísticos do índice IBC. De fato, o relatório recém lançado confirma o que já é consensual entre os epidemiologistas quanto à confiabilidade do estudo publicado em Lancet. Mas, apesar de algumas críticas bem fundamentadas, a metodologia estatística ali aplicada é a mesma universalmente reconhecida para determinar números de mortos em zonas de conflito, usadas pelas agências internacionais e por governos.
Negação politicamente motivada
A organização PSR também examinou a metodologia e a arquitetura de outros estudos que mostram números muito baixos de mortos, como um deles, publicado no New England Journal of Medicine e que também mostrou graves limitações.
Esse estudo simplesmente ignorou as áreas submetidas a violência mais pesada, a saber, Bagdá, Anbar e Nineveh, confiando nos dados muito precários do IBC, para extrapolar para essas regiões. Além disso, o estudo também assumiu “restrições politicamente motivadas” para a coleta e análise dos dados – entrevistas conduzidas pelo Ministério da Saúde do Iraque, que era “totalmente dependente da potência ocupante” e que, sob pressão dos EUA, se recusara a fornecer dados sobre registros de mortes de civis iraquianos.
Em particular, a organização PSR avaliou o que disseram Michael Spaget, John Sloboda e outros, que questionaram a coleta dos dados para o estudo da revista Lancet e os declararam potencialmente fraudulentos. Para a organização PSR essas acusações não têm fundamento.
As poucas “críticas justificadas”, concluíram os médicos da PSR, “não põem em dúvida os resultados dos estudos da Lancet como um todo. Aqueles números ainda representam a melhor estimativa atualmente acessível”. Os achados da Lancet são também corroborados pelos dados de um novo estudo publicado em PLOS Medicine, que fala de 500 mil mortos no Iraque, como consequência da guerra. No geral, o estudo da organização PSR conclui que o número mais provável para o total de mortos civis no Iraque, desde 2003 até hoje, se aproxima de 1 milhão.
A esse número, o estudo da PSR acrescenta pelo menos mais 220 mil mortes no Afeganistão e 80 mil mortos no Paquistão, mortos em consequência direta ou indireta da guerra dos norte-americanos naqueles países: assim se chega a um total “conservador” de 1,3 milhões de vítimas civis, mas “o número real pode facilmente ultrapassar os 2 milhões”.
Mas também o estudo da PSR sofre limitações. Para começar, a “guerra ao terror” pós 11/9 não foi novidade, mas simples expansão de políticas intervencionistas anteriores dos EUA no Iraque e no Afeganistão.
Em segundo lugar, a carência absoluta de dados sobre o Afeganistão sugere fortemente que o estudo da PSR muito provavelmente subestimou o número de vítimas da guerra norte-americana contra os afegãos.
Iraque
A guerra contra o Iraque não começou em 2003, mas em 1991 com a Iª Guerra do Golfo, depois da qual começou no país o regime de sanções da ONU.
Estudo anterior feito pela PSR por Beth Daponte, que então trabalhava como especialista em demografia no Gabinete do Censo do governo dos EUA, determinou que o número de mortes de civis no Iraque, causadas por impacto direto ou indireto da Iª Guerra do Golfo, chegava bem próximo de 200 mil iraquianos, a maioria dos quais civis. Na sequência, o estudo de Daponte, feito para uso interno do governo dos EUA, foi tirado de circulação.
Depois que as forças norte-americanas saíram de lá, a guerra contra o Iraque prosseguiu na modalidade de guerra econômica, mediante as sanções que EUA e Reino Unido impuseram ao país, sob o pretexto de não dar a Saddam Hussein os materiais necessários para a produção de armas de destruição em massa. Na lista dos itens banidos do Iraque sob esse pretexto, entraram inúmeros produtos necessários para a sobrevivência diária.
Números da ONU, não contestados, mostram que 1,7 milhões de civis iraquianos, metade dos quais crianças, morreram por efeito do brutal regime de sanções impostas pelo “ocidente” ao Iraque.
Esse efeito de matança em massa parece ter sido efeito planejado e buscado. Dentre os itens banidos pelas sanções que a ONU impôs ao Iraque estavam produtos químicos e equipamentos essenciais para a manutenção e o bom funcionamento do sistema de tratamento de água nacional iraquiano. Um documento secreto da Agência de Inteligência da Defesa dos EUA [orig. US Defence Intelligence Agency (DIA)] encontrado pelo professor Thomas Nagy da Escola de Negócios da George Washington University equivalia, nas palavras do professor, a um “rascunho inicial de um plano de genocídio contra a população do Iraque ”.
No documento que redigiu para a Associação dos Analistas de Genocídios da Universidade de Manitoba, o professor Nagi explicou que o documento da DIA revelava
(...) detalhes minuciosos de um método perfeitamente operacionalizável para “degradar completamente o sistema para tratamento de água” de uma nação inteira por um período de mais de dez anos.
A política de sanções criaria
(...) as condições para ampla disseminação de doenças, inclusive epidemias em grande escala, que liquidariam quantidade significativa de habitantes do Iraque.
Significa que só no Iraque, a guerra dos EUA de 1991 a 2003 matou 1,9 milhões de iraquianos; depois, de 2003 em diante, cerca de 1 milhão, o que totaliza pouco menos de 3 milhões de iraquianos mortos ao longo de duas décadas.
Afeganistão
No Afeganistão, a estimativa de número de mortos apresentada pela organização PSR pode ser também muito conservadora. Seis meses depois da campanha de bombardeio de 2001, Jonathan Steele, do Guardian, revelou que número entre 1.300 e 8.000 afegãos haviam morrido em consequência direta dos bombardeios norte-americanos, e que, sem sombra de dúvida, algo bem próximo de 50 mil pessoas haviam morrido por efeitos indiretos da guerra.
Em seu livro Body Count: Global Avoidable Mortality Since 1950 [Contando cadáveres: a inegável mortalidade global desde 1950] (2007), o professor Gideon Polya aplicou a mesma metodologia usada pelo Guardian aos dados anuais da ONU, de mortalidade por populações, para gerar explicação plausível para o número excessivo de mortos. Bioquímico aposentado da La Trobe University em Melbourne, Polya concluiu que o total de mortes evitáveis de afegãos desde 2001, sob as privações impostas pela guerra e pela ocupação em curso, alcançava 3 milhões de pessoas, 900 mil das quais crianças com menos de cinco anos.
Embora os achados do professor Polya não tenham sido publicados em periódico de acadêmicos especialistas, seu estudo de 2007 Body Count tem sido recomendado pela professora Jacqueline Carrigan, socióloga da California State University, como “um perfil rico em dados, da situação da mortalidade global”, em resenha publicada no periódico da editora Routledge, Socialism and Democracy.
Como também no caso do Iraque, a intervenção norte-americana no Afeganistão começou muito antes do 11/9, sob a forma de ajuda clandestina aos Talibã (militar, logística e financeira) , a partir de 1992. Essa contribuição dos EUA serviu de propulsão para a violenta conquista, pelos Talibã, de quase 90% do território afegão.
Em relatório de 2001 da Academia Nacional de Ciências, Forced Migration and Mortality, o destacado epidemiologista Steven Hansch, um dos diretores da ONG Relief International, observou que o aumento na mortalidade no Afeganistão devida a impactos indiretos da guerra ao longo dos anos 1990s pode estar entre 200 mil e 2 milhões.
Tudo isso sugere que o número total de mortos afegãos por efeito direto ou indireto da invasão pelos EUA desde o início dos anos 1990 até o presente esteja entre 3-5 milhões de pessoas.
Negar sempre
Segundo os números aqui explorados, o total de mortes causadas direta ou indiretamente pelas intervenções norte-americanas no Iraque e no Afeganistão desde os anos 1990s – sejam os assassinatos diretos, sejam os impactos das privações e dificuldades impostas pela guerra – está bem próximo de 4 milhões de pessoas (2 milhões no Iraque, de 1991 a 2003, mais 2 milhões de vítimas da “guerra ao terror”), mas talvez chegue a 6-8 milhões de pessoas, se se considera que o número de vítimas no Afeganistão é certamente maior do que o aqui computado.
Talvez sejam números exagerados, mas ninguém jamais saberá com certeza. As forças armadas de EUA e do Reino Unido, por opção política, não mantêm qualquer registro do número de civis mortos em operações militares, considerados uma inconveniência sem importância.
Dada a severa carência de dados no Iraque , a quase total inexistência de registros no Afeganistão e a indiferença dos governos “ocidentais” ante mortes de civis, é literalmente impossível determinar a verdadeira extensão do massacre de seres humanos não militares.
Ante a impossibilidade até de corroborar qualquer número, aí fica uma estimativa plausível, baseada em metodologia estatística padrão, que considera a melhor evidência encontrável. Ajudam a oferecer alguma indicação sobre a escala da destruição, embora sem detalhes precisos.
Muitas desses mortos tombaram no contexto da luta contra a tirania e o terrorismo. Mas, porque a mídia-empresa mantém o mais impenetrável segredo sobre os fatos reais dessa luta, praticamente ninguém tem qualquer ideia da verdadeira escala do inenarrável terror que a tirania de EUA e Reino Unido promove, em nome dos cidadãos, no Iraque e no Afeganistão.
__________________________________________________
[*] Nafeez Ahmed é jornalista investigativo, especialista em segurança internacional e autor de best-sellers em que acompanha o que chama de a “crise da civilização”. Colabora nos jornais The Independent, Sydney Morning Herald, The Age, The Scotsman, Foreign Policy, The Atlantic, Quartz, Prospect, New Statesman, Le Monde diplomatique, New Internationalist.
Foto: Cena do filme Guerra ao Terror/Divulgação