Civilização Fóssil, por Wagner Iglecias

Buscar as razões para as ações terroristas é muito difícil. Mas os atentados não são causa, e sim consequência. Fato é que enquanto bombas e tiros ocorrem em algum lugar, ceifando vidas inocentes, seguimos na marcha batida de um tipo de civilização predatória, belicista, individualista e alienada, no qual a vida humana parece ser menos importante que o lucro.

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Buscar as razões para as ações terroristas é muito difícil. Mas os atentados não são causa, e sim consequência. Fato é que enquanto bombas e tiros ocorrem em algum lugar, ceifando vidas inocentes, seguimos na marcha batida de um tipo de civilização predatória, belicista, individualista e alienada, no qual a vida humana parece ser menos importante que o lucro Por Wagner Iglecias* Neste domingo, durante discurso feito na reunião dos BRICS no G-20, na Turquia, a presidente Dilma Rousseff citou o Estado Islâmico em referência aos atentados em Paris e disse que é urgente “uma ação conjunta de toda a comunidade internacional no combate sem tréguas ao terrorismo”. Vindo de alguém na posição dela não se podia esperar algo muito diferente disso. Mas trata-se de uma declaração protocolar, oca, formal, dado que combater o terrorismo é combater a consequência, e não as causas do problema. Visões como essa só darão mais combustível ao belicisimo crescente, à xenofobia contra o Islã e tornarão cada vez mais difícil a construção da paz. Muçulmanos não são seres irracionais e sua fé religiosa não está além ou aquém das outras crenças ocidentais, como o Cristianismo e o Judaísmo. Grande parte do avanço científico e tecnológico europeu ao longo de séculos é fruto do convívio com os povos islâmicos, é bom que se diga. E tampouco estamos vivendo um “Choque de Civilizações” entre o Islã e Ocidente, como sugeriu um dia o pensador conservador estado-unidense Samuel Huntington. Por outro lado é óbvio que os atentados terroristas na França, provavelmente perpretados pelo Estado Islâmico, nos soam horripilantes. E são mesmo. Mas fica a pergunta: não são atentados como os da capital francesa, ceifando a vida de tantos inocentes, que ocorrem quase que semanalmente há mais de uma década se considerarmos o conjunto de países (ou ex-países) como Afeganistão, Paquistão, Iraque, Síria, Iemen, Libia, Somália, Quênia, Nigéria e outros, dos quais muitos de nós aqui, no Extremo Ocidente, na longínqua periferia do Império, nem ficamos sabendo? Talvez o que mais nos apavore, além das terríveis imagens vindas da tragédia de Paris, uma das capitais culturais de nosso tempo, é imaginar a hipótese de que esta rotina macabra não seja mais uma exclusividade de países pobres e distantes, e que possa a partir de agora ser parte do cotidiano das sociedades mais ricas do mundo, exatamente aquelas nas quais tantos de nós se espelham. Logicamente seria muita pretensão deste que vos escreve, ou de qualquer outra pessoa, tentar responder à questão sobre quais são as causas do terrorismo contemporâneo. Afinal trata-se de um tema demasiadamente complexo, que carece ser analisado a partir de múltiplos aspectos. Mas tenho a impressão de que a instabilidade política instigada pelo Império e seus prepostos europeus no Oriente Médio e no Magreb na última década e meia é a principal razão para este novo ciclo de instabilidade global que se forma a partir daquela região do mundo. Sim, a Líbia de Muamar Gaddafi, o Iraque de Sadam Hussein ou a Siria de Hafez al-Assad (pai de Bashar al-Assad) eram ditaduras. Houve neste países presos políticos e perseguições a opositores. Mas é certo que havia também alguma estabilidade institucional e não ocorria o banho de sangue, na escala atual, como este promovido na região desde a primeira Guerra do Golfo e as posteriores incursões ocidentais naquela parte do mundo. Organizações internacionais estimam que no Iraque teriam sido assassinadas, apenas entre 2003 e 2006, entre 600 mil e 1 milhão de pessoas. Durante os seis primeiros meses de guerra civil para por fim ao governo de Gaddafi na Líbia, em 2011, estima-se que entre 30 mil e 50 mil pessoas tenham sido mortas. Na atual guerra para derrubar o governo de Bashar al-Assad na Síria estima-se que 250 mil pessoas já tenham perdido a vida, 7 milhões tenham se deslocado forçadamente dentro do território sírio e outros 4 milhões tenham saído ou tentado sair do país por conta da violência. As incursões feitas pelo Ocidente contra governos da região são, ao menos ao nível do discurso, para levar àqueles povos a liberdade e a democracia. Trata-se, curiosamente, de países não alinhados aos governos dos EUA e da Europa e situados sob ricas reservas de petróleo, gás natural e outros recursos fósseis fundamentais ao modelo de desenvolvimento ocidental. Modelo de desenvolvimento que faz com que os estado-unidenses, que constituem apenas 5% da população do planeta, sejam responsáveis por 14% da emissão global de gases de efeito estufa e consumam 25% da energia mundial. Modelo de desenvolvimento baseado em trabalho excessivo, consumo exacerbado e desperdício. Modelo de desenvolvimento que formou uma sociedade disciplinada e individualista, na qual parcela significativa da população vive movida a ansiolíticos, antidepressivos e outras drogas. Modelo de desenvolvimento que irá buscar aonde for necessário, em qualquer lugar do mundo, os recursos para a sua alimentação e a sua continuidade. Modelo de desenvolvimento que se orgulha de suas garantias e liberdades individuais, de seu protagonismo, de sua liderança e de sua democracia. Mas modelo de desenvolvimento que, em verdade, resulta numa civilização fóssil, calcada numa sociedade que para dar sentido à sua forma de viver depende da exploração insana e permanente de recursos energéticos esgotáveis e poluidores, aonde quer que eles estejam e ao custo que custarem. Buscar as razões para as ações terroristas é muito difícil. Mas os atentados não são causa, e sim consequência. Fato é que enquanto bombas e tiros ocorrem em algum lugar, ceifando vidas inocentes, seguimos na marcha batida de um tipo de civilização predatória, belicista, individualista e alienada, no qual a vida humana parece ser menos importante que o lucro, a solidariedade menos importante que a ganância e a natureza menos importante que a riqueza material de uma pequena parcela da Humanidade. Wagner Iglecias é doutor em Sociologia e professor da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP Foto de capa: Agência Lusa