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A saga de uma migrante ilegal para entrar nos Estados Unidos. Três dias de viagem, passando pelas mãos de seis coiotes, que extorquem os viajantes, os impede de comer, ir ao banheiro e os fazem ir deitados no chão do carro para não serem pegos pela polícia. Se algo der errado, os matam
Original em Rebelión, tradução por Ítalo Piva para a Fórum Semanal
“Vamos te entregar, mas se algo der errado te matamos”, disse o coiote me apontando uma pistola. Estávamos na casa-bodega no Arizona, aonde chegamos após ter cruzado o deserto. Sua organização havia pedido a minha irmã dois mil dólares, além do pago combinado, e lhe deram um dia para pagar, senão disseram que iam me estuprar e matar, e que jamais encontrariam meu corpo porque os urubus comeriam tudo no meio do deserto onde iriam me jogar.
Certamente não fui a única que extorquiram. Já estando na casa, ligaram para as famílias dos migrantes e pediram dois mil dólares a mais para o resgate. Quando o migrante se opunha, subiam o valor para cinco mil. Com alguns tinham feito um acordo de cinco mil para a viagem, outros de três mil, oito mil, sete mil, tudo dependia do Estado do México de qual provinham e, nos casos internacionais, do país. A quantidade aumenta dependendo da distância do país de origem: uma pessoa guatemalteca paga mais do que uma mexicana, e uma salvadorenha, muito mais do que uma guatemalteca e assim sucessivamente; as pessoas do Sul pagam quantidades exorbitantes.
As coisas também dependem se é a mesma organização que te leva desde a fronteira de Tapachula até os Estados Unidos ou somente entre a fronteira do México com os EUA. Se são menores de idade cobram mais.
Me despedi daqueles que restavam do grupo com o qual cruzei o deserto, já haviam chegado outros, todos os dias à meia-noite chegavam mais e mais. Todos os dias na manhã saíam para entregar as pessoas em troca do pagamento do dinheiro restante.
Eu pude ver por fora a casa só quando saímos porque, quando cheguei, estava de boca no chão de um carro sedã junto a outras nove mulheres, uma casa num bairro residencial com estacionamento para uns oito veículos, jardins grandes que não se podia ver de dentro, já que as janelas estavam tapadas com pedaços de madeira, Tinham três andares com dois áticos. Dentro nunca havia menos de cem pessoas todos os dias.
[caption id="attachment_2276" align="aligncenter" width="246"] Valor cobrado pelo coiote depende de onde a pessoa vem, se é da fronteira entre México e EUA é um valor (foto: Wikimedia Commons)[/caption]
Subi num jipe quatro por quatro, um coiote se sentou a meu lado e pôs sua pistola nas minhas costas, e assim durante todo trajeto até o centro comercial onde se realizaria a entrega. Na frente, o piloto e sua esposa. Não desceria do carro até que eles tivessem seu dinheiro em mãos, e não poderia fazer nada indevido como gritar ou pedir ajuda, por isso um coiote ia com uma pistola nas minhas costas, para disparar sem contemplações. Assim fomos todo o caminho, e depois de aproximadamente quarenta minutos chegamos no estacionamento do centro comercial. Aí estaria outro coiote que efetuaria o pagamento do resgate e quem me levaria até outro coiote de outra organização para que me levassem do Arizona até Illinois.
No total, da Guatemala até Illinois, passei por 6 coiotes de cinco grupos distintos. A primeira, que me recebeu no aeroporto da cidade do México, era mulher e com ela viajei de avião até Hermosillo, em Sonora, e de táxi até Agua Prieta, onde me entregou a outro coiote e voltou para a cidade do México. No centro comercial apareceu um coiote, ex-marido da mulher que me recebeu na capital mexicana e que trabalhava para outra organização. Ela me perguntou como eu estava e disse que bem, entregou o dinheiro ao motorista e desci do veículo, entrei no seu carro e ambos os condutores tomaram caminhos diferentes.
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Me levou para almoçar e comprar um troca de roupa, pois a que tinha estava cheia de manchas. Me comprou um hambúrguer que pediu no drive-thru e entramos o mais rápido possível no centro comercial. Não prestei atenção nos pequenos detalhes, mas saímos e fomos a sua casa, que era um trailer numa “colônia de trailers”. Abriu a porta e me deparei com outro grupo de migrantes trancados, esperando quem os levasse aos diferentes Estados onde seus familiares os aguardam. O trabalho desse coiote é negociar com as organizações de transporte, e ele se encarrega também por conta própria de levar pessoas. Nessa viagem me explicou que meu destino era fora do caminho porque fará entregas no lado oposto ao que vou e, por essa razão, entrou em contato com outro coiote que já está levando gente, mas fez um espaço para mim no seu veículo: “você vai de caravana”.
Quem estava dentro da casa tinha seus pés e mãos amarrados, ele me disse que era para que não tentassem escapar e a imigração os prendesse, que é para o bem deles e nada mais, que as pessoas chegam assustadas e cometem grandes erros.
Esperei na sua casa até as cinco da tarde, quando chegou o outro coiote e sua minivan, que para minha surpresa não era de modelo novo como o carro dele, nem dos coiotes com quem estive em Phoenix. Esse coiote mora na cidadezinha de Douglas, que faz fronteira com Agua Pietra, e ele me explicou que tem um carro com essa aparência velha pois parece mais com os que transitam por lá.
Me despeço dele com um refrigerante e um hambúrguer na barriga, com minha troca de roupas posta e as velhas numa bolsa. O coiote abriu a porta de sua minivan e vejo dentro um monte de homens deitados no chão de barriga pra cima, o carro só tem os dois assentos da frente, tiraram todos os outros para que coubesse mais imigrantes. Atrás puseram uma almofada solta para que eu sentasse, eu que era a única mulher nesse grupo de indocumentados, o coiote ia acompanhado de sua mulher e filha de apenas alguns meses de idade.
Ele colocou o rádio a todo volume, atrás tinham quatro caixas de som parecidas com aquelas de igreja evangélica nos cultos de fins de semana, a música de bandas duranguenses é sua predileta, e temos que aguentar o ruído das caixas em nossos tímpanos.
[caption id="attachment_2280" align="aligncenter" width="398"] A viagem dura três dias em que cruzamos Novo México, Colorado, Kansas, Nebraska, Iowa, Wisconsin e finalmente chegando a Illinois (foto: Tlindenbaum)[/caption]
Contei 19 homens e comigo éramos 20 indocumentados. Na frente ia o coiote de aproximadamente uns quarenta anos de idade e sua esposa que disse que tinha 16 e a filha de quatro meses. Ambos mexicanos e orgulhosos de terem uma filha americana. Para nossa surpresa, o coiote disse que nem ele nem sua esposa tinham documentos. Levam um mapa de papel do tamanho cartolina, que sua esposa vai lendo, porque ele não entende inglês, nem fala, nem escreve, nem lê.
A viagem dura três dias em que cruzamos Novo México, Colorado, Kansas, Nebraska, Iowa, Wisconsin e finalmente chegando a Illinois. Três dias sem comer ou beber nada porque o coiote disse que se comêssemos teríamos que ir ao banheiro e isso era arriscado demais. Ele, sua esposa e a filha sim paravam nas áreas de descanso, e voltavam com comida que devoravam no caminho.
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Efetivamente ele transitou pelos caminhos mais distantes das ruas principais e das autoestradas, entre pequenas cidades e campos onde abundavam as plantações de soja, milho e feijão. Grandes fazendas com pastos enormes. Fazíamos turnos com os companheiros migrantes, uma hora cada um sentado na almofada, até que os vinte tivessem sua chance e começávamos a troca de novo. Quando estávamos no chão, ficávamos todos espremidos juntos porque o frio era insuportável e ninguém tinha blusa. Também não podíamos dormir porque as caixas de som estavam a todo volume. No segundo dia, os homens pediram para urinar e ele não deixou; o que fez foi dar as latas de refrigerante vazias e que urinassem ali mesmo, cada um responsável por sua lata. O coiote da “colônia de trailers” tinha me alertado que não íamos parar no caminho, que eu fosse ao banheiro antes de sair.
Todos iam para Atlanta, Georgia, trabalhar nos campos de cultivo. O mais jovem do grupo tinha 23 – minha idade – e o mais velho, sessenta. Me doeu muito quando vi o de sessenta, seus olhos azuis avermelhados, sua cara cansada. Havia jurado que era mexicano, mas falava com um sotaque de Ipala (Guatemala). Não quis o incomodar, se ele estava dizendo que era mexicano devia ser por alguma razão.
Me disseram que era a primeira vez que imigravam, todos afirmando serem mexicanos. Todos eram camponeses. Entraram em confiança comigo e me falaram que se sentiam como se eu tivesse crescido com eles em seus povoados, cada um começou a me contar sobre suas vidas, suas carências e suas dores, todos iam ganhar o pão nos Estados Unidos. Haviam decidido deixar de serem colhedores em suas cidades natais para serem o mesmo nos EUA, onde ganhariam muito mais dinheiro do que a miséria que os ricos de seus país pagavam. Dormiriam juntos e o saldo dos primeiro seis meses já tinham acertado com o coiote que conduzia a minivan.
Realmente eu estava fora do rota, porém, por amizade com o coiote do trailer que tinha intermediado o negócio de “entregar indocumentados”, ele fez o favor de me levar. Isso foi o que me disse no segundo dia, quando atravessávamos o Colorado. Também me disse que eu não parecia ser mexicana de Morelos, mas sim caribenha ou de Veracruz. Desde que a coiote me recebeu na Cidade do México, o acordo foi tentar me fazer passar por mexicana para evitar que, se fosse deportada, me enviariam de volta para a Guatemala, seria mais fácil tentar novamente se me enviassem de volta ao México. Por essa razão, aprendi a falar como mexicana de Veracruz, o sotaque se parecia mais com o meu guatemalteco, também estudei a geografia do país, algo sobre a história e sobre os nomes dos governantes, informação que foi crucial nas sete vezes que fomos detidos pela Polícia Federal em território mexicano. Se passei na prova com eles, seguramente não seria tão difícil se a patrulha de fronteira americana me prendesse. Assim é que fui, como mexicana da Cidade do México até Illinois quando foi realizada outra entrega, desta vez nos braços da minha irmã.
[caption id="attachment_2277" align="aligncenter" width="331"] Ao entrarmos em Iowa, vimos o deslumbrante rio Mississipi, mas não tínhamos permissão para chegar perto das janelas porque os vidros não eram foscos (foto: Wikimedia Commons)[/caption]
No terceiro dia lhes pediram para urinar novamente e o coiote não pôde negar porque todos começaram a reclamar da comida e ele teve que comprar umas guloseimas e um refrigerante, que foram entregues a cada um de nós. Ele nos disse que era a primeira e última vez que ele parava para que fôssemos ao banheiro; ele entrou numa fazenda e nos deu dois minutos para urinar. Eu não comi as guloseimas nem bebi o refrigerante porque estava com fome, mas eles iam mais longe ainda e me faltavam algumas horas pra chegar a Illinois. Ao entrarmos em Iowa, vimos o deslumbrante rio Mississipi, mas não tínhamos permissão para chegar perto das janelas porque os vidros não eram foscos e, por sermos um número grande de pessoas, poderíamos levantar suspeita e alguém poderia avisar a polícia. O que é pior, a polícia mesma poderia nos deter, mas o rio era realmente bonito e foi impossível para o coiote de evitar que tentássemos ver o cenário.
Em Nebraska, pela primeira vez, vi a neve que caia sobre o feno e nos terrenos longínquos das fazendas onde também nos acompanhava o trem de carga que atravessava os Estados Unidos. Vi uma grande quantidade de veados caminhando livremente entre as veredas, reservas florestais e fazendas sem que ninguém os molestasse. A uma da manhã do dia onze de novembro de 2003, em frente de um posto de gasolina, no Estado de Illinois, fui entregue. Ao mesmo tempo em que nos aproximávamos, vi o meu tio e sua esposa, a quem eu não via desde que tinha dez anos de idade. Com eles estava minha irmã e eles me esperavam perto de uma caminhonete. Nos abraçamos bem apertado para que pudéssemos sentir nossos corpos e almas. Para eles ainda faltava um dia e meio para que chegassem a Georgia.
Por ser considerada 'filha do demônio', eu só durei uma noite na casa do meu tio. No entanto, esta história eu conto numa outra viagem.