Tensão e medo sobre um mar de petróleo

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Aliada histórica de Washington, Arábia Saudita sente-se isolada e revê aliança. Que muda na geopolítica do Oriente Médio e do mundo? Por Immanuel Wallerstein | Tradução Eduardo Sukys, do Outras Palavras Há tempos o regime saudita é considerado um pilar da estabilidade política no Oriente Médio, um país que sempre exigiu respeito e prudência de todos os seus vizinhos. Isso não é mais verdade, e os primeiros a reconhecer isso são personagens internos importantes do regime. Hoje, eles se sentem ameaçados de todos os lados e bastante temerosos sobre as consequências da agitação no Oriente Médio com relação à sobrevivência do regime. Essa reviravolta é resultado da história da Arábia Saudita. O próprio reino não é muito antigo. Foi criado em 1932 por meio da unificação de dois reinos menores na península árabe, Hejaz e Nejd. Era uma parte pobre e isolada do mundo, que havia acabado de se libertar do governo otomano durante a Primeira Guerra Mundial e acabara sob a égide paracolonial da Grã-Bretanha. O reino foi organizado em termos religiosos por uma versão do Islã Sunita chamada Wahabismo (ou Salafismo). Wahabismo é uma doutrina puritana muito rígida, conhecida não apenas por sua intolerância diante de religiões diferentes do Islã, mas também em relação a outras versões do próprio Islã. A descoberta do petróleo transformou o papel geopolítico da Arábia Saudita. Foi uma empresa americana, chamada posteriormente de Aramco — e não uma empresa britânica — que conseguiu os direitos de prospecção, em 1938. A Aramco buscou assistência do governo americano para a exploração dos campos. Em 14 de fevereiro de 1945, como consequência do interesse da Aramco combinado à visão do Presidente Franklin Roosevelt sobre o futuro geopolítico dos Estados Unidos, ocorreu uma reunião, hoje famosa, mas pouco noticiada naquele tempo, entre Roosevelt e o rei da Arábia Saudita, Ibn Saud, a bordo de um destróier americano no Mar Vermelho. Apesar da doença grave de Roosevelt (ele morreria dois meses depois) e da falta de qualquer experiência de Ibn Saud com a cultura e tecnologia ocidental, os dois líderes conseguiram estabelecer um respeito mútuo real. A tentativa do primeiro-ministro Britânico, Winston Churchill, de desfazer o acerto em uma reunião que organizou imediatamente após a anterior se mostrou contraproducente, pois ele foi visto como “arrogante” por Ibn Saud. Embora grande parte da discussão privada de cinco horas entre Roosevelt e Ibn Saud tenha sido dedicada às questões do Sionismo e da Palestina – sobre as quais tinham opiniões totalmente diferentes – a consequência real e de longo prazo foi na verdade um acordo no qual a Arábia Saudita coordenaria e controlaria as políticas de produção mundial de petróleo em benefício dos Estados Unidos que, por sua vez, ofereceriam garantias de longo prazo de segurança militar à Arábia Saudita. A Arábia Saudita desenvolveu uma verdadeira dependência paracolonial perante os Estados Unidos, o que permitiu à riquíssima família real enriquecer ainda mais e se “modernizar”, não apenas com relação ao uso de tecnologia, mas até mesmo em um sentido cultural, burlando, em suas próprias vidas, muitas das restrições do Wahabismo. Foi um acordo apreciado e alimentado pelos dois lados. E funcionou bem até a metade final da primeira década do ano 2000. Dois eventos importantes perturbaram o acordo. Um deles foi o declínio geopolítico dos Estados Unidos. O segundo foi a chamada Primavera Árabe, e o que os sauditas consideraram como suas consequências negativas em todo o mundo árabe. Do ponto de vista da Arábia Saudita, o relacionamento com os Estados Unidos azedou por diversos motivos. Primeiro, os sauditas sentiram que a reorientação “Ásia-Pacífico” anunciada pelos Estados Unidos, em substituição à orientação de longa data “Europa-Atlântico”, significava um recuo no envolvimento ativo na política do Oriente Médio. Os sauditas perceberam mais provas dessa reorientação na disposição dos Estados Unidos em entrar em negociações com os governos da Síria e do Irã. Eles também ficaram perturbados pelo anúncio da retirada das tropas do Afeganistão e com a relutância clara, por parte de Washington, em participar de outra “guerra” no Oriente Médio. Sentiram que não podiam mais contar com a proteção militar dos EUA, caso necessitassem. Portanto, decidiram jogar de forma independente dos EUA e contra as preferências norte-americanas. Enquanto isso, sua relação com outros grupos islâmicos ficou cada vez mais difícil. Tornaram-se extremamente cautelosos com relação a qualquer grupo vinculado à Al-Qaeda. E por um bom motivo, uma vez que a Al-Qaeda já havia deixado claro que desejava destituir o regime saudita existente. O regime reocupava-se especialmente com os cidadãos sauditas que foram para Síria a fim de ingressar na Jihad. Seu temor, lembrando o passado, era que essas pessoas voltassem para a Arábia Saudita e a implodissem. Realmente, em 3 de fevereiro, por decreto do próprio rei (algo raro), os sauditas ordenaram que todos os seus cidadãos retornassem. Procuraram controlar este retorno e pretendiam dispersar os que voltavam, a fim de minimizar sua capacidade de criar organizações internas. Parece duvidoso que esses jihadistas obedeçam. Eles consideraram esse decreto um abandono, por parte do regime saudita. Além dos possíveis partidários da Al-Qaeda, o regime saudita já tem, há tempos, um relacionamento complicado com a Irmandade Muçulmana. Embora a versão de Islã da Irmandade também fosse salafista, e em muitas formas parecida com o Wahabismo, havia duas diferenças cruciais. A base principal da Irmandade Muçulmana era o Egito, enquanto a base Wahabita estava na Arábia Saudita. Essa relação sempre foi em parte uma competição sobre o local da força geopolítica dominante no Oriente Médio. Há uma segunda diferença. Devido à sua história, a Irmandade Muçulmana sempre teve um pé atrás com os monarcas, considerando o Wahabismo sempre vinculado à monarquia saudita. Por isso, o regime saudita não recebe bem a difusão de um movimento que não se importaria com sua eventual destruição. Embora antes houvesse uma relação boa com o regime Baathista na Síria, isso tornou-se impossível agora, devido à polarização cada vez maior entre sunitas e xiitas no Oriente Médio. A falta de apreço dos sauditas por secularistas, simpatizantes da Al-Qaeda, partidários da Irmandade Muçulmana e pelo regime xiita Baathista torna difícil apoiarem alguém na Síria de hoje. Porém, não apoiar ninguém não projeta uma imagem de liderança. Dessa forma, os sauditas enviam algumas armas a alguns poucos grupos e fingem fazer muito mais. O grande inimigo é realmente o Irã? Sim e não. Mas para limitar o dano, o regime saudita está secretamente envolvido em conversas com os iranianos. O resultado dessas conversas é muito incerto, já que os sauditas acreditam que os iranianos querem incentivar uma explosão dos xiitas na Arábia Saudita. Embora as dimensões reais deste grupo sejam incertas (provavelmente em torno de 20% da população saudita), ele está concentrado no sudeste do país, precisamente na área de maior produção de petróleo. O único regime com o qual os sauditas estão em paz atualmente é o israelense. Ambos compartilham a sensação de ameaça e medo. E ambos utilizam as mesmas táticas políticas de curto prazo. O fato é que o regime saudita esconde poeira debaixo do tapete. A elite interna está mudando da chamada segunda geração, dos filhos de Ibn Saud (os poucos filhos sobreviventes estão bem idosos), para os netos. Eles são um grupo grande e inexperiente, que pode ajudar a derrubar a casa real devido à competição pelos espólios, que ainda são consideráveis. Os sauditas têm um bom motivo para se sentirem ameaçados e temerosos.