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Três anos depois do levante que derrubou Mubarak, hoje o país vive novamente sob domínio militar e novas perseguições e prisões políticas
Por Marcelo Hailer
[caption id="attachment_41270" align="alignleft" width="300"] Foto: Milhares de egípcios ocupam as ruas por um novo sistema político[/caption]
Indicado ao Oscar 2014 de melhor documentário e em exibição no canal Netflix, The Square, dirigido pela egípcia Jehane Noujaim, acompanha de dentro o processo revolucionário do Egito que derrubou o ditador Hosni Mubarak, a junta militar e depois a Irmandade Muçulmana. A diretora acompanhou um grupo de ativistas que se juntou aos milhares de manifestantes que ocuparam a Praça Tahir para levar o país a uma reviravolta política nunca antes vivida ali.
A sensação ao assistir The Square é como se estivéssemos dentro das reuniões e ocupações realizadas pelos grupos revolucionários. Porém, mais importante que isso, a obra ajuda a compreender o que se passou (e ainda se passa) no país. Acompanhar a revolução da praça de Tahir pelos jornais ocidentais nos fez imaginar que se tratava de uma luta para derrubar um ditador há 30 anos no poder, o documentário desconstrói essa teoria e nos revela que o objetivo dos manifestantes está muito além disso. A luta é pela derrubada do sistema como um todo.
Mubarak, os militares e a Irmandade Muçulmana
O documentário tem como personagem central o jovem ativista secular Ahmed e é a partir de seu cotidiano que acompanhamos a revolução egípcia capitaneada pela juventude que não mais tolerava a ditadura imposta por Hosni Mubarak. O outro personagem é Magdy, membro da Irmandade Muçulmana que vive um conflito existencial: apoiar os jovens que desejam derrubar o sistema vigente e, ao mesmo tempo, se manter fiel à agremiação, tratada como reformista e que prioriza a religião ao invés de Estado laico e democrático.
O filme começa com a derrubada de Mubarak, entendida como o inicio da revolução, já que, aos grupos organizados, estava claro que não bastava retirá-lo do poder, sendo necessário um novo sistema e uma Constituição que garantisse o Estado secular. Este é um dos pontos mais interessantes abordados pelo documentário, pois fica nítido que a geração atual não é favorável à imposição de Estado Muçulmano. Vários debates na praça entre religiosos e seculares são travados, é aí que reside a não confiança nos novos coletivos políticos do Egito na Irmandade.
Mas os ativistas já trabalhavam com a hipótese de uma vitória da Irmandade, fato que se verifica na primeira eleição parlamentar pós- Mubarak, reconhecendo que o grupo era mais organizado. Este fato político, pelo menos ao Ocidente, era desconhecido e, quando assistimos ao documentário, fica claro que a queda da Irmandade era iminente. Quando Ahmed é questionado sobre os objetivos da revolução, ele é didático: “A revolução tem 3 fases: derrubar Mubarak, depois os militares e terceiro a Irmandade Muçulmana”. O que de fato aconteceu quando mais de 14 milhões de egípcios ocupam as ruas para pedir a saída de Morsi, um ano após ser eleito.
Depois da revolução...
O cenário político atual no Egito pode ser classificado como “melancólico”, pois, posteriormente à deposição do presidente eleito Mohamed Morsi (Irmandade Muçulmana), os militares voltaram ao poder interinamente na figura do general Adly Mansour. E, após a aprovação da nova Constituição, o marechal Abdell Fattah al-Sisi se tornou o homem forte do governo para se candidatar à presidência, em eleições que devem acontecer neste ano, e com forte chances de se eleger visto que tem um forte apoio da população.
O governo interino, prevendo uma nova onda de manifestações, prepara uma lei que visa proibir as manifestações, estas só poderão acontecer mediante aviso prévio e com autorização do governo. A lei ainda estabelece que é o governo quem decide onde o protesto vai ocorrer. Portanto, neste momento, a revolução egípcia corre o sério risco de voltar a estaca zero, já que os militares que circundavam o regime de Mubarak hoje estão no poder e com chances reais de vencer as próximas eleições.
As notícias dão conta de que ativistas seculares, que derrubaram Mubarak, os militares e Morsi estão presos aguardando julgamento por “incitar a violência”. Jornalistas da Al Jazeera e outros profissionais estrangeiros estão presos e, segundo o governo, serão julgados por “divulgar mentiras e apoiar a Irmandade Muçulmana”.
Na abertura do documentário é relatada, a partir de uma narração em off, a situação política que se viva no Egito. “Ninguém se levantava contra o governo por medo de perseguição, tortura e prisão.” Pelo visto, o país corre o sério risco de viver o mesmo clima político da era Mubarak.
Egito, Tunisia, Turquia, Brasil...
Quando a Primavera Árabe estourou em 2011 na Tunísia e derrubou o ditador Zine el-Abidine Ben Ali, influenciou o Egito e a Turquia, porém, hoje os três países árabes vivem momentos instáveis. Nas três nações as forças islâmicas e/ou militares ocupam neste momento o poder. Há quem diga que ainda não dá se pode considerar a Primavera Árabe como derrotada e que ela segue viva. Porém, infelizmente, o cenário atual nos dá outra resposta.
Porém, é inegável a influência da Primavera Árabe em países do Ocidente como a Espanha, EUA e Brasil, este com as suas Jornadas de Junho que, mesmo estando sob o inverno, alguns chegaram a apelidar de “Primavera Latina”.
Por ora, o que fica destas manifestações/revoluções que rodaram o mundo? Primeiro, é inegável a contribuição das ferramentas online. Graças a elas, atrocidades cometidas pelas forças militares e que eram acobertadas pela imprensa foram denunciadas e houve o despertar de milhares de jovens para a política, mas não como a conhecemos, e sim com uma outra forma de fazer política. E esta nova forma também tem o seu saldo negativo, pelo menos no momento: jovens sem a tradição das organizações tradicionais não souberam (ainda) o que fazer com as conquistas e potências políticas alcançadas e, por conta disso, seguem sufocados, perseguidos e espalhados.
E quando entramos na questão das novas organizações há um fator discursivo que chama a atenção pela sua similaridade no mundo Árabe e no Ocidente. Quando estudamos os documentos e ou assistimos vídeos com os jovens ativistas, a fala mais comum entre eles é que as força políticas de então não conseguem mais dialogar com os jovens, que estão todas emaranhadas em interesses econômicos e corruptos e que é necessária uma nova ordem política. Quando esse discurso atravessa continente é por que de fato os partidos políticos, à direita e a à esquerda, perderam a capacidade de diálogo com os sujeitos.
Por fim, o documentário The Square é uma obra em aberto, a sua continuação está nos jornais e nos grupos políticos que ainda enfrentam as forças militares, ou seja, o filme não acaba quando o letreiro sobe, muito pelo contrário, pode ser apenas a primeira parte de uma história política que está em fase de construção e que, com certeza, ainda terá muitos capítulos a serem acrescentados.