O dicionário da Real Academia Espanhola define terrorismo como “sucessão de atos de violência executados para infundir terror”, e tortura como “grave dor física ou psicológica infligida a alguém, com métodos e utensílios diversos, com o fim de obter dele uma confissão, ou como meio de castigo”.
Não são termos sinônimos, mas são quase, se deduzirmos que utilizar a tortura para conseguir informações que contribuam para evitar atos de terrorismo é um disparate. Porque é tão terrorista quanto o que aplica choques nas genitálias de um preso ou afunda sua cabeça na água até o limite do afogamento, tão terrorista como aquele que veste um cinto explosivo ou o explode para causar a maior dor possível no inimigo, ainda que leve junto um punhado de inocentes.
Além disso, a fronteira entre bons e maus, entre eles e nós, é difusa porque, quase sempre, os grupos se definem por ideologias e comportamentos que escondem interesses econômicos e ideologias egoístas ou fanáticas. Como estamos do lado de cá desta linha tênue de separação, engolimos com facilidade, como se fosse a coisa mais natural do mundo a idéia de que os Estados Unidos e o Ocidente em geral representam o poder brando que, por puro altruísmo, tenta levar a civilização, a democracia e os direitos humanos para onde reinam o fanatismo e a barbárie.
Entretanto, do outro lado, o filme passa de modo muito diferente, e o que daqui chamam de terrorismo se justifica com uma resposta assimétrica (a assimetria é forçada pela desigualdade de meios) ao imperialismo brutal que se impõe a sangue e a fogo, a desautorização da defesa de legítimos interesses nacionais, o aplastamento das tentativas de estabelecer um modelo social e cultural próprio, não coincidente com a chamada “civilização cristã” e ao espolio das matérias primas. Posteriormente, a história, como quase sempre, vai impor sua particular justiça e transformará em maus os vencidos e em bons os vencedores, os que a escreverão.
A utilização da tortura como método habitual de interrogatório de presos durante a presidência de George Bush supôs uma aberração que não pode ser justificada nem sequer com o argumento de que com isso talvez fossem evitados novos atos de terrorismo, como os de 11 de setembro de 2001. Certamente, o único terrorismo que se admite que exista é o dos outros porque, por exemplo, transformar Gaza, Iraque ou Afeganistão em escombros, derrubar regimes como o do sinistro Muamar Gadafi para que a Líbia passasse a ser um Estado falido, ou ordenar assassinatos seletivos em que morrem mais inocentes do que supostos terroristas não é terrorismo, mas sim legitimar atos de guerra em defesa própria.
No caso da pena capital, os Estados que reivindicam sua superioridade moral sobre os criminosos ou deliquentes ou terroristas não podem clamar por justiça com a lei do talião. Uma morte, por mais legal que seja, não se justifica com outra, se não se transformará em um desprezível ato de vingança. Da mesma forma, responder o terror com o terror, caçar inimigos com bombardeio ainda custa muitas vidas inocentes, prender em caráter indefinido e sem direito a julgamento os suspeitos de executar ou preparar atos terroristas, submetê-los a todo tipo de maus tratos ou torturas supõe uma indignação que nunca poderá ter justificativa moral.
Que o país com mais advogados por quilômetro quadrado do mundo mantenha fora da legalidade a prisão da vergonha de Guantánamo onde, por trás de seus muros e cercas, seus detentos são privados até mesmo do direito a um julgamento justo e da própria dignidade. Isso diz muito da superioridade ética atribuída aos Estados Unidos, em nome da qual se faz e desfaz por todo o mundo.
Pior ainda: estas práticas, que um recente comunicado do Senado voltou a abordar, servem para detonar o pretexto da imperdoável selvageria com que a Al Qaeda, suas franquias e o emergente Estado Islâmico atuam em suas áreas de influência: execuções massivas no Iraque e na Síria, degolamentos de reféns inocentes ocidentais filmados e difundidos pela internet, matanças e seqüestros de centenas de crianças na Nigéria. Por mais lugar comum que pareça, a violência gera mais violência; o ódio, mais ódio; o terror, mais terror; e a injustiça, mais injustiça.
As reações ao comunicado do Senado dos Estados Unidos supuseram um exercício de cinismo e hipocrisia. Reconheceram os múltiplos abusos e atrocidades cometidas. John Brennan, o mesmíssimo diretor da CIA – agência que levou o peso dos interrogatórios entre 2002 e 2007 – reconhece que se tratou de “aberrações”, mas evita empregar o termo “tortura” – dada sua cobertura legal – e assegura que permitiram obter “informações úteis” que, por exemplo, contribuíram para eliminar Osama Bin Laden naquela “hora mais escura” de 2012. O filme de mesmo título de Kathryn Bigelow analisa essa tese e mostrava como se utilizaram procedimentos tão científicos com os suspeitos como afogamento simulado, privação durante dias de sono, humilhação sexual e inclusive confinamento em um caixão fedorento. O comunicado do Senado acrescenta outros como “alimentação forçada”, banhos em água gelada, trabalho forçado, espancamentos e abusos sexuais.
O informativo nega a relação causa-efeito (tortura-informação) e sustenta que as chamadas “técnicas de interrogatório reforçadas” (sinistro eufemismo) não proporcionaram dados relevantes para prevenir atentados. Brennan admite que foram cometidos “erros” dos quais não se exigiu responsabilização, mas assegura que a maioria dos agentes da CIA cumpriram com seu dever “à serviço da nação”. Apenas um passo menos do que disse o ex-vice-presidente Dick Cheney, ideólogo dessa guerra suja: “deveriam ser condecorados, não criticados (...) Tem que ser amável com os assassinos de 3 mil norte-americanos?. Não há problema: esses patriotas torturados têm impunidade garantida.
O descafeinado mea culpa remonta a uma autocomplacência, sobretudo quando se recorda que o programa contava com os avais mais altos possíveis, os do Departamento de Justiça e da Casa Branca. A pergunta agora é: já acabou? Terminou este capítulo da nossa historia? São estas aberrações que nunca mais acontecerão? É mais que duvidoso. Barack Obama chegou ao poder prometendo que sua presidência estaria definida pelo “império da lei e dos direitos humanos”, convencido de que são compatíveis a “nossa segurança e nossos ideais”. Disse isso em 2009, quando o então chefe da CIA, Leon Panetta, declarava: “Não se deve utilizar a tortura sob nenhuma circunstância”.
Está sendo assim? Depende, claro, do que se entende por tortura, mas custa muito qualificar como tortura o tratamento que os presos de Guantánamo sofrem, muitos dos quais sequer são suspeitos de algum crime, mas os que não se sabe para onde enviar ou se devem ser liberados, enquanto o resto permanece sem uma esperança razoável de comparecer algum dia diante de um tribunal de justiça. E fechar Guantánamo, não é preciso esquecer, era a primeira promessa de Obama quando chegou à presidência, há seis anos. Uma prova a mais de sua impotência, de sua falta de capacidade, de vontade ou de tudo isso junto.
Sobretudo, cabe questionar que, se acontecer outra vez uma “emergência nacional”, como a de 11 de setembro, a hipócrita preocupação com os direitos humanos alheios, os do inimigo, ceda diante dos sacrossantos interesses da segurança nacional, principalmente se Obama já não estiver na Casa Branca. Entretanto, não haverá tortura de forma oficial por uma razão elementar, porque, por definição, ela já não existe. E assim, Guantánamo, por exemplo, deve ser outra coisa. E se chegassem a aprovar novas medidas que recordem as de Bush e que se pareçam com a tortura, um termo tão inocente seria procurado, como o eufemismo “métodos reforçados de interrogatório”, que tanta polêmica causaram.
Brennan insinuou algo terrível: que no futuro, em caso de outro ataque como o das Torres Gêmeas e do Pentágono, poderia ser recuperada a lógica e o tipo de medidas que tornaram possíveis os excessos que agora são condenados no demolidor informativo do Senado. Sabe do que fala: tinha um cargo de responsabilidade na CIA quando a agência transformou a tortura em rotina e, antes de ser o principal assessor antiterrorista de Obama, defendeu os procedimentos que serviam para “obter informação relevante que pode salvar vidas”. Isso freou sua eleição como diretor da CIA em 2009... mas somente até 2013.
*Ex-redator chefe e correspondente em Moscou do El País, membro do Conselho Editorial do Público até o desaparecimento de sua edição em papel. Colunista regular do site Público.es
Tradução de Daniela Cambaúva