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Mesmo com curso superior, alguns aceitam empregos na construção ou setor têxtil; fama de bons trabalhadores atrai, mas muitas vezes são explorados
Por Lamia Oualalou, no Opera Mundi
São dez da manhã de uma quinta-feira de primavera quando trinta empresários e profissionais de recursos humanos se acomodam num auditório da Missão de Paz, entidade ligada à Pastoral do Imigrante situada na Igreja Nossa Senhora da Paz, no centro de São Paulo. Convidados para uma palestra, eles não escondem a curiosidade, quando não o medo. Na entrada da igreja, dezenas de estrangeiros, negros em maioria, parecem prontos para topar qualquer emprego.
"É exatamente o que as empresas vêm buscar aqui", informa a assistente social e palestrante Ana Paula Caffeu. "O Brasil está vivendo um momento de falta de mão de obra pouco qualificada, até porque as pessoas estão estudando mais", explica. No entanto, a prioridade para ela é fazer entender à audiência que, apesar da situação precária, os imigrantes devem ser respeitados e vistos como uma oportunidade para a empresa. "No começo, muitos vinham aqui buscar uma pessoa para tomar conta do sítio deles, por exemplo, pagando um salário mínimo. No entanto, não é esta a proposta. Estas são pessoas bastante educadas, querem atingir objetivos e falam até quatro idiomas", acrescenta Ana Paula Caffeu.
Para sensibilizar os responsáveis de recursos humanos, a assistente social começa apelando à história pessoal de cada um deles. "De onde são seus pais? E seus avós?". Eles começam a contar: uma avó italiana, um avô português, um bisavô nascido na Polônia, uma mãe originária da Bolívia. Todos lembram o sofrimento pelo qual passaram estes parentes: pobreza, preconceito, solidão e até fome.
"No Brasil, somos quase todos frutos da imigração, e estas pessoas que chegam agora não são diferentes das que tentaram construir uma nova vida aqui um século atrás", insiste Caffeu, antes de concluir: "tratem-nos como vocês gostariam que fossem tratados seus antepassados aqui no Brasil". Apesar de ser hospedada numa igreja, a Missão de Paz não tem como objetivo contratações incentivadas pela caridade. "Existem duas necessidades: a do empresário, que deve suprir vagas, e a dos imigrantes, que estão passando por um momento difícil, mas que enxergam o trabalho como uma fonte de liberdade e de dignidade", resume a assistente social.
Mesmos formados como engenheiros ou enfermeiros, alguns imigrantes aceitam empregos na construção, no setor têxtil ou em frigoríficos, onde passam dez horas por dia cortando frangos em temperaturas inferiores a dez graus centígrados. A fama de bons trabalhadores chamou a atenção de Gabriela Lana, que coordena a área de recursos humanos em uma padaria industrial em Santa Catarina. "Em Blumenau, várias empresas contrataram estrangeiros e está dando certo. Eles se esforçam bastante e aceitam trabalhos pesados que os brasileiros costumam recusar", conta ela.
Eles também aceitam horários alternativos. É o que procura Reinaldo di Cunto, dono de uma confeitaria na Mooca, bairro da Zona Leste de São Paulo. "O trabalho não é penoso. Os brasileiros, no entanto, não querem mais trabalhar durante o fim de semana, enquanto os estrangeiros concordam sem problema", conta o descendente de italiano, que contratou doze haitianos através da Missão de Paz.
Lealdade ao trabalho
Anos de crise e planos de demissões têm destruído a lealdade dentro das empresas. O Brasil é campeão mundial em rotatividade de funcionários, segundo pesquisa global realizada em 2013 pela empresa de recursos humanos Robert Half. No país, o “turnover” de colaboradores aumentou em 82% desde 2010, mais do que o dobro da média mundial, de 38%.
"As empresas oferecem mais ou menos o mesmo salário, então qualquer pequeno aumento ou benefício suplementar, como acesso a um plano de saúde, é suficiente para que um funcionário deixe sua firma para ir para a concorrência", afirma Sandra Souza, diretora de recursos humanos da JFC, empresa de embalagens em Teresópolis, no Rio de Janeiro.
É esta a razão pela qual ela foi até São Paulo para assistir à palestra na Missão de Paz. Ano passado ela contratou três refugiados congoleses através da ONG Cáritas, no Rio de Janeiro. "A princípio eles me dão mais trabalho porque eu tenho que ajudá-los a se instalar, alugar um apartamento, encontrar um médico ou aprender português. Mas além do fato de que eles trabalham muito bem, eu sei que existe um vínculo emocional muito forte; eles não vão deixar a empresa em poucos meses", acredita.
Processo de contratação
A analista não esconde o desconforto frente a um processo de contratação pouco tradicional. "Não fazemos nenhum dos testes que costumamos fazer com os candidatos brasileiros, até porque não falamos o mesmo idioma", explica. O anúncio das vagas é feito em inglês, francês e creole, uma das línguas faladas no Haiti. Na sequência, dezenas de pessoas se acotovelam para preencher fichas, erguendo as carteiras de trabalho recém-expedidas.
O diálogo que se segue é bem rudimentar. A barreira da língua obriga os recrutadores a fazer uso de gestos e mímicas, colocando as mãos na lombar, por exemplo, para explicar que o futuro contratado deverá transportar cargas pesadas, ou “tremendo” para sugerir trabalho em ambientes refrigerados. "Eu tenho que me basear na aparência física e na primeira impressão, não tem jeito". Uma escolha que, por vezes, lembra a seleção feita em mercados de escravos no país até a abolição da escravidão, em 1888.
Exploração e trabalho precário
Desde o início deste ano, cerca de 500 empresas recrutaram imigrantes através da igreja. A Missão recomenda aos empresários que os contratem pagando ao menos R$ 1 mil mensais, quantia que acreditam ser o mínimo necessário para que os estrangeiros sobrevivam no Brasil e sustentem suas famílias em seus países de origem. "Alguns empresários desistem de contratar através da Missão quando percebem que, segundo a lei, os estrangeiros têm os mesmos direitos trabalhistas que os brasileiros. Eles então tentam fazer contato direto, aproveitando a situação de desespero de alguns", diz o padre Parise, um dos membros da iniciativa.
Assim fez a dona de uma oficina têxtil que produz roupas para a marca As Marias. Ela participou da palestra e foi embora sem contratar ninguém; logo voltou sem informar a Missão e ofereceu emprego a alguns dos imigrantes. Dois meses depois, doze haitianos e dois bolivianos foram resgatados de condições análogas à de escravos em sua oficina, na região central de São Paulo. Eles passavam 15 horas por dia sentados em cadeiras de plástico em frente a máquinas de costura sem receber nenhum salário.
Antes de ser aliciado, o haitiano Daniel (nome fictício) já tinha emprego fixo em um shopping da capital paulista. Ele largou o trabalho ante a promessa de receber um salário menor, mas com benefícios como alimentação e alojamento garantidos pelo empregador. Ele acabou dividindo um quarto com 14 pessoas e tendo acesso a uma alimentação de péssima qualidade.
"O trabalho em condições degradantes e os salários miseráveis não são exclusivos dos estrangeiros; a maioria das vítimas continua sendo brasileira, muitas vindas das regiões Norte e Nordeste", diz Marcel Gomes, secretário-executivo da ONG Repórter Brasil, que atua na luta contra o trabalho escravo no país. No entanto, ele acredita que os haitianos são mais vulneráveis por duas razões: eles falam apenas francês ou creole e pertencem a comunidades ainda pequenas. "Bolivianos e paraguaios se protegem melhor, pois muitas vezes já contam com família e amigos quando chegam ao Brasil", explica.
O episódio da oficina têxtil não é um fato isolado. O principal caso envolvendo a libertação de haitianos no Brasil até hoje culminou no resgate de 172 trabalhadores, dos quais 100 eram do Haiti, em novembro de 2013. O flagrante de escravidão aconteceu em uma obra da mineradora Anglo American no município mineiro de Conceição do Mato Dentro, a 160 km de Belo Horizonte. Diversos funcionários haitianos disseram à fiscalização terem sido informados pela empresa que não poderiam deixar o trabalho antes de três meses, "o que depois, na Justiça, foi rebatido pelo patrão como uma falha de compreensão deles, por conta do idioma", precisa Marcel Gomes.
Políticas públicas: ausências e equívocos
Para o padre Parise, a exploração de imigrantes no Brasil está relacionada com a ausência de políticas públicas adequadas, o que deixa milhares de pessoas em situação vulnerável. O problema da moradia nas grandes cidades é crucial, e acaba incentivando algumas pessoas a aceitar uma vaga de trabalho quando o empregador garante a hospedagem. "O Brasil lhes dá um visto humanitário, o que é ótimo; mas é como se dissesse para o estrangeiro: ‘bem-vindo! Agora, se vira’. O Estado lava as mãos e quem cuida da acolhida é a sociedade civil", lamenta.
Decididas às pressas, as respostas do governo acabam criando outros problemas. Frente ao grande fluxo de haitianos, que representam 65% das pessoas que passam pela Missão, o governo facilitou a entrega das carteiras de trabalho e ofereceu aulas de português gratuitas para imigrantes desta nacionalidade. "E, para nigerianos ou congoleses, nada. Isto criou uma rivalidade entre eles, que dizem que o Brasil não gosta dos africanos, apenas dos haitianos", conclui o padre.
Racismo
A questão do racismo em um país onde pessoas negras têm salários mais baixos, menos qualificações e uma expectativa de vida mais curta é óbvia. "Percebo que os brasileiros ficam com medo quando veem um grupo de jovens negros caminhando juntos", comenta James Orélien, jovem haitiano que trabalha na confeitaria de Reinaldo Di Cunto. Ele ressalta que não se sente alvo de preconceito, mas que este é o caso de muitos de seus amigos instalados no Sul do país, região predominantemente branca. "Enfrentamos problemas desde o início do último surto de ebola. Negros estrangeiros são vistos como um perigo; tivemos que organizar palestras específicas em algumas regiões", lembra Ana Paula Caffeu.
Para Paulo Abrão, secretário nacional de Justiça, situações de racismo e de xenofobia são esporádicas, "mas não devem ser descuidadas". Ele reconhece, porém, que o Brasil tem ainda muito a fazer para ser chamado de país de imigração. "É urgente mudar o marco legal. O estatuto do estrangeiro data da época da ditadura no Brasil. É só olhar o que vizinhos como Uruguai e Argentina fizeram para simplificar a parte burocrática e facilitar a entrada dos imigrantes", explica. Um novo projeto de lei está em tramitação e o secretário de Justiça acredita que há boas chances de ele ser adotado.
A entrada de imigrantes é vista como uma necessidade econômica para vários setores, mas o governo recusa qualquer política de discriminação favorecendo uma mão de obra mais qualificada, o que iria contra a Constituição brasileira. "É tarefa das empresas, de instituições como universidades ou até dos estados tentar atrair tipos específicos de trabalhadores. O que está claro é que este fluxo faz muito bem para o Brasil do ponto de vista econômico e também cultural, pois contribui para uma sociedade mais cosmopolita". Para o secretário de Justiça, a generosidade em relação aos estrangeiros tem também a ver com solidariedade: "em outras épocas, durante a ditadura ou quando a economia estava parada, éramos nós que precisávamos ser acolhidos. Agora o Brasil pode prestar este serviço a outros povos", conclui.