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Até quando continuará a cínica e insana política norte-americana de evitar a morte de civis inocentes com invasões e bombardeios que inevitavelmente matam civis inocentes?
Por Nicholas J.S. Davies, em Alternet | Tradução e edição: Vinicius Gomes
A política externa norte-americana no pós-Guerra Fria pode ser basicamente dividido em dois períodos: de 1990 até 1998, como maneira de responder ao fim da Guerra Fria, o orçamento militar dos EUA foi gradualmente cortado em 30% nesses nove anos. Em janeiro de 1992, o secretário de defesa Dick Cheney assinou uma estratégia de defesa que levaria os gastos militares aos níveis pré-Segunda Guerra Mundial, mas então algo mudou. Em meados de 1997, o Pentágono, o Departamento de Estado e think-tanks financiados pelos interesses militares-industriais estavam se reagrupando e definindo novos parâmetros de uso de força militar para explorar os “dividendos de poder” dos EUA no pós-Guerra Fria. Os novos democratas de Bill Clinton, com suas intervenções humanitárias, desempenharam o papel de “policial bonzinho”, enquanto os neoconservadores republicanos eram o “policial malvado”, liderando grupos como o Projeto para um Novo Século Americano.
[caption id="attachment_54505" align="alignleft" width="220"] Samantha Power é atualmente a embaixadora dos EUA na ONU. Ela foi uma das criadores do polêmico conceito "Responsabilidade de Proteger", através das chamadas intervenções humanitárias (Departamento de Estado - EUA)[/caption]
O general Colin Powell escreveu que ele “quase teve um aneurisma” em 1993 quando a nova embaixadora norte-americana na ONU Madeline Albright perguntou a ele, em uma reunião, “qual é o sentido em ter esse soberbo poder militar se você está sempre dizendo ‘e se não pudermos usá-lo’”? Albright foi promovida a secretária de Estado no segundo mandato de Clinton e a Revisão Quadrimestral de Defesa de 1997 montou a estrutura ideológica para o uso unilateral e ilegal de força para “defender os interesses vitais dos EUA”, explicitamente “evitando a emergência de uma coalizão regional hostil [...] e garantindo acesso a mercados-chave, suprimentos energéticos e recursos estratégicos”.
Isso é precisamente o que nós testemunhamos esses anos desde que o orçamento militar praticamente dobrou – a fim de financiar uma expansão global das guerras norte-americanas para controlar mercados, suprimentos energéticos e de recursos, enquanto o Departamento de Estado e a CIA sabotaram as relações de paz de independência econômica entre os maiores países por toda a Eurásia.
Por volta da mesma época, Samantha Power, que passou três anos como repórter na Bósnia, foi nomeada diretora executiva do Carr Center, um novo instituto de direitos humanos em Harvard. Ela começou a escrever “Um problema do inferno: a América e a era do genocídio”, que foi publicado em 2002 e venceu o Prêmio Pulitzer. Power é uma escritora habilidosa e seu livro defendeu, eloquentemente, a ação de intervenção humanitária para prevenir massacres e genocídios.
Seu livro examinou os genocídios em Camboja, Curdistão iraquiano, Iugoslávia e Ruanda, pintando a imagem dos EUA como habitualmente um passivo telespectador, enquanto outros cometiam terríveis atrocidades. Todavia, ela não fez uma justaposição com outros casos onde os EUA foram participantes ativos ou patrocinadores de massacres e genocídios, como na Palestina, Vietnã, Indonésia, Guatemala, América do Sul (Operação Condor), Curdistão turco e no Iraque sob sanções da ONU.
A falha em contextualizar seus estudos junto da política de guerra dos EUA foi apenas um dos erros no livro de Power. Seus estudos de caso eram detalhados e comoventes, mas frequentemente superficiais e baseados em apenas uma única fonte, dependendo fortemente nas palavras de Peter Galbraith no Curdistão iraquiano e o atormentado-pela-culpa General Romeo Dallaire, em Ruanda. Ela mencionou o bombardeio dos EUA no Camboja, mas não explorou como isso levou diretamente à ascensão do Khmer Vermelho e à destruição da sociedade cambojana. O foco de Power não era nas causas do genocídio – que certamente seriam a chave em sua prevenção –, mas em acabar com o genocídio uma vez que já estivesse acontecendo.
O caso Ruanda
Foi Ruanda que fixou-se mais profundamente dentro da psique ocidental como um imperdoável exemplo de “não fazer nada”. Por conta de não termos intervindo para parar o genocídio em Ruanda, todos nós éramos agora vulneráveis ao argumento que precisávamos intervir em todos os outros lugares. Mas até mesmo enquanto Power se deslocava do jornalismo e do mundo acadêmico para posições ainda mais influentes no Conselho de Segurança Nacional e como embaixadora na ONU, estudantes sérios sobre o genocídio desafiavam o argumento de intervenção humanitária, que ela ajudou a se firmar no coração da política e propaganda dos EUA.
[caption id="attachment_54506" align="alignright" width="294"] O ex-general canadense Rómeo Dallaire tentou o suicídio inúmeras vezes depois de sua experiência no comando das tropas da ONU em Ruanda (Reprodução)[/caption]
Em um artigo chamado “Uma solução do inferno: os EUA e o crescimento do intervencionismo humanitário, 1991-2003”, o pesquisador Stephen Wertheim, da Universidade de Columbia, examinou o quão dominante era a narrativa do genocídio em Ruanda e seu papel em transformar a política de guerra norte-americana. Ele apontou que os neoconservadores republicanos não lançaram a invasão ao Iraque sozinhos, pois estes garantiram a aprovação bipartidária no Congresso explorando a visão de que a nova posição dos EUA, como potência hegemônica no mundo, dava ao país poder militar e a responsabilidade de transformar outras sociedades através do uso da força.
Para a maioria dos norte-americanos, a lição no Iraque e no Afeganistão é que os EUA simplesmente não têm como fazê-lo. Como o general norueguês Robert Mood, que liderou as tropas de paz da ONU na Síria em 2012, disse à BBC: “É bem fácil usar a ferramenta militar, pois quando você a usa em intervenções clássicas, alguma coisa irá acontecer e assim como consequências. O problema é que essas consequências são quase sempre diferentes dos resultados políticos que você buscava alcançar quando decidiu pelo uso da força. Então, a outra posição, argumentando que não é o papel da comunidade internacional de mudar governos dentro de um país, é uma posição que também deve ser respeitada”.
Desde que Wertheim escreveu seu estudo em 2010, o presidente Barack Obama lançou novas guerras na Líbia, na Síria e no Iraque. A propaganda usada para apoiar essas guerras usou mais do “fazer alguma coisa” de Albright e Power, do que o apelo do medo nas guerras de George W. Bush – apesar do fato de que políticos norte-americanos usam de maneira oportunista uma para reforçar a outra.
Examinando a falta de resposta dos EUA ao genocídio em Ruanda, Wetheim afirmou que os oficiais do alto escalão norte-americano não estavam cientes da escala da violência até que era tarde demais para prevenir grande parte dela. Já existia uma guerra civil no país desde 1990, com massacres de civis bem documentados. Quatro dias depois de o genocídio começar, em abril de 1994, o major-general canadense Romeo Dallaire, o chefe da pequena força de paz em Kigali, requisitou 5 mil tropas da ONU para tentar garantir a segurança na cidade. Ao longo dos anos, o pedido de Dallaire se tornou a narrativa central para a intervenção humanitária, sugerindo que as cinco mil tropas requisitadas poderiam ter evitado o genocídio, se apenas os líderes do Ocidente tivessem escutado. Em 1998, uma comissão de líderes militares alegou que houve uma “janela de oportunidade” de duas semanas para o plano de Dallaire funcionar, antes de o genocídio se espalhar de Kigali por todo o resto do país, e depois disso tal intervenção precisaria de um “maciço uso de força”. Mas essa janela de oportunidade nunca existiu.
Wertheim comparou Ruanda a outras operações militares emergenciais e concluiu que uma força efetiva de soldados não poderia ter chegado ao país em não menos de outras duas semanas. Esse cenário também falha ao não levar em conta o contexto da política internacional: a França armou o governo liderado pelos Hutus durante a guerra civil e enviou centenas de tropas para apoia-los. Os rebeldes Tutsi, assim sendo, se opunham fortemente a qualquer ação de intervenção por forças estrangeiras, até mesmo para salvar seus próprios companheiros. Então, as tropas internacionais poderiam se ver rapidamente lutando contra dois lados em uma guerra civil, completamente longe de alcançar sua missão original de evitar a morte de civis.
E então o quê? Mesmo que tivesse sido possível evitar as mortes no curto prazo, quanto tempo as tropas precisariam ficar e o que aconteceria quando elas se retirassem? Nós já sabemos o que aconteceu em Kosovo, Iraque, Afeganistão, Líbia, Síria, Somália, Iêmen e Paquistão, onde os EUA e seus aliados intervieram de diferentes maneiras com diferentes níveis de força e diferentes estratégias – deixando morte, destruição e caos na esteira de cada um desses países. Mas Ruanda continua o “elefante branco na sala”. É impossível saber o que não aconteceu, mas existem evidências o suficiente para desafiar a maneira que os líderes do Ocidente têm usado Ruanda para justificar suas infinitas intervenções que levam à violência e ao caos.
Uma solução do inferno
A tese de Samantha Power em “Um problema do inferno” é fundamentalmente falha. Ela concluiu que os EUA fizeram pouco em cada um dos casos, mas seu livro se reduziu em recomendar como os EUA deviam ter agido, assumindo erroneamente que os EUA tinham capacidades militares praticamente ilimitadas.
Tudo isso levou a uma conclusão simplista que o uso da força pelos militares norte-americanos poderia ser uma solução ao genocídio e, por consequência, sérias violações dos direitos humanos em qualquer lugar do mundo. Agora que Power e o presidente Obama tiveram a chance de testar suas ideias no mundo real, basta olhar para Líbia, Síria, Iraque e Afeganistão para ver quais são os resultados. Se o final da Guerra Fria e do “elefante branco na sala” em Ruanda deixaram Power e os neoconservadores com visões distorcidas sobre o poder dos EUA ao final da década de 1990, o que os anos recentes nos ensinaram quando testemunhamos ondas de violência e caos se espalhando em cada país após a intervenção?
A maioria de nós agora sabe exatamente o que as pessoas sabiam muito bem em 1945, que a guerra é a pior coisa que os humanos podem fazer um ao outro, além de ser a principal precursora para o genocídio.
Samantha Power escreveu uma vez no New York Times, defendendo o uso da força militar norte-americana mesmo em face da morte de civis, que “existe uma diferença moral em sair destruindo a maior quantidade possível de civis e matá-los de maneira relutante e não intencional na busca por um objetivo militar”. O famoso historiador Howard Zinn respondeu a isso com uma carta ao Times:
“Essas palavras são enganadoras, pois elas presumem que uma ação é ou ‘deliberada’ ou ‘não intencional’. Mas existe algo no meio disso – que é a palavra ‘inevitável’. Se você participa de uma ação, como um bombardeio aéreo, onde não é possível distinguir entre combatentes e civis (e como um ex-piloto, eu posso garantir isso), a morte de civis inocentes são inevitáveis, mesmo que ‘não intencionais’. Essa diferença te exonera moralmente? O terrorismo de um homem-bomba e o terrorismo de um bombardeio aéreo são, de fato, moralmente equivalentes. Dizer o contrário (como qualquer um dos lados pode tentar fazê-lo) é se dar uma superioridade moral sob o outro, e consequentemente, servindo para perpetuar os horrores de nossa era”.
Foto de Capa: wrongkindofgreen.org