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Como forma de protesto contra a lei anti-aborto aprovada pelo governo espanhol, filósofa propõe a "greve dos úteros" para que se rompa com o controle dos corpos
Por Beatriz Preciado (Tradução: Alana Moraes), no blog da Marcha Mundial das Mulheres
[caption id="attachment_40499" align="alignleft" width="300"] Foto: Jose Ramon[/caption]
O texto a seguir é uma tradução do manifesto feito pela filósofa feminista Beatriz Preciado, e denuncia o recente ataque ao direito reprodutivo do aborto na Espanha assim como o todo jogo da politica nacional espanhola em torno da autonomia e liberdade das mulheres em uma conjuntura de crise e retrocessos.
A nova lei do aborto será, junto com a irlandesa, a mais restritiva da Europa. Não deixemos penetrar em nossas vaginas uma só gota de esperma nacional católico!
Cerrados na ficção individualista neoliberal, nós vivemos com a crença ingênua de que nossos corpos nos pertence, que ele é a nossa propriedade mais intima – ainda que a gestão da maioria de nossos órgãos seja assegurada por diversas instâncias governamentais ou econômicas. Dentre todos os órgãos do corpo, o útero é sem dúvida aquele que, historicamente, foi feito objeto de expropriação politica e econômica de maneira mais feroz.
Cavidade potencialmente gestacional, o útero não é um órgão privado, mas um espaço público onde disputam os poderes religiosos e políticos, as indústrias medicais, farmacêuticas e alimentícias. Cada mulher leva com ela um laboratório do Estado-Nação e é da sua gestão que depende a pureza da etnia nacional.
Há quarenta anos no Ocidente o feminismo tem promovido um processo de descolonização dos úteros. A atualidade espanhola mostra que esse processo é não apenas incompleto, mas ainda frágil e revogável. No dia 20 de Dezembro, o governo de Mariano Rajoy votou o anteprojeto da nova lei sobre o aborto que será, com o irlandês, o mais restritivo da Europa. A lei de “proteção da vida do feto e do direito da mulher grávida” prevê apenas dois casos de aborto legal: no caso de risco para a saúde física ou psíquica da mulher (até a 22ª semana) ou o estupro (até a 12ª semana).
Mais ainda, um médico e um psiquiatra independentes deverão certificar de que existe risco para a mãe. O texto suscitou a indignação da esquerda e das feministas, mas também a objeção do coletivo de psiquiatras que se recusam de participar desse processo de patologização e vigilância das mulheres grávidas que anula assim nosso direito de decidir.
As politicas do útero são, como a censura e as restrições da liberdade de se manifestar, bons detectores dos excessos nacionalistas e totalitários. Em um contexto de crise econômica e política do Estado espanhol, confrontado à reorganização do território e de sua “anatomia” nacional (pensemos no processo de separação da Cataluña, mas também no descrédito crescente da monarquia e da corrupção das elites dirigentes), o governo procura agora recuperar os úteros como o lugar biopolítico privilegiado no qual se pode construir uma nova soberania nacional. Imagina-se que com isso será possível solidificar as velhas fronteiras do Estado nação em decomposição.
Essa lei é também uma resposta à legalização do casamento homossexual conquistado durante o mandato do governo socialista anterior e que, apesar das tentativas recorrentes do Partido Popular (PP), o tribunal constitucional recusou revogar. Diante do questionamento do modelo da família heterossexual, o governo de Rajoy, próximo dos fundamentalistas católicos da Opus Dei e do cardial Rouco Varela, pretende hoje ocupar os corpos femininos como o último lugar de disputa não só da reprodução nacional, mas também a definição de hegemonia masculina.
Se a história biopolítica pudesse ser contada cinematograficamente, nós diríamos que o PP prepara agora um frenético pornotortura no qual Rajoy e seu ministro da justiça, Ruiz Gallardón, fincam a bandeira espanhola em todos os úteros do Estado-nação.
Essa é a mensagem enviada pelo governo às mulheres do país: seu útero é um território do Estado, domínio fértil para a soberania nacional católica. Você não existe a não ser como mãe. Abra as pernas, seja terra de inseminação, reproduza a Espanha!
Se a lei que o PP propôs entra em vigor, as espanholas acordarão com o conselho de ministros e a conferência episcopal no fundo do endométrio.
Corpo nascido com útero, eu fecho as pernas diante do nacional catolicismo. Eu digo a Rajoy e Varela que eles não colocarão um pé no meu útero: eu nunca dei à luz, nem nunca daria a serviço da politica espanhola.
Desde esta modesta tribuna, eu convido todos os corpos a fazer a greve dos úteros. Nos afirmaremos como cidadãs inteiras e não apenas como meros úteros reprodutivos. Pela abstinência e pela homossexualidade, mas também pela masturbação, pela sodomia, pelo fetichismo, pela coprofagia, pela zoofilia e pelo aborto. Não deixaremos penetrar em nossa vagina uma só gota de esperma nacional católico.
Não daremos à luz para a conta do PP nem para a paróquia da conferência episcopal. Façamos essa greve como o mais “matriótico” dos gestos: uma maneira de desconstruir a nação e de agir por uma reinvenção de uma comunidade de vida pós-Estado nacional onde a expropriação dos úteros não será mais tolerada.
Beatriz Preciado é filosófa e diretora do Programme d’études indépendantes au Musée d’art contemporain de Barcelone.
Esta coluna é fornecida alternadamente por Sandra Laugier, Michael Foessel , Beatriz Preciado e Frédéric Worms.