Ariel Sharon: como ele moldou de maneira sangrenta o destino de Israel

Em uma carreira que durou décadas, ele destruiu cidades inteiras e presidiu sobre a matança de incontáveis civis

Ariel Sharon durante uma reunião ministerial em seu gabinete, na cidade de Jerusalem Foto: AP/Oded Balilty
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Em uma carreira que durou décadas, ele destruiu cidades inteiras e presidiu sobre a matança de incontáveis civis Por Max Blumenthal, em The Nation | Tradução: Vinicius Gomes Uma figura central nos assuntos israelenses desde o nascimento do Estado, Ariel Sharon moldou a história do país de acordo com sua visão austera. Ele conseguiu aceitação para seus planos por meios impiedosos e enganadores e, quando assim não conseguia, apelava para a força. Foi acusado de ser um criminoso de guerra que presidiu sobre a morte de milhares de civis, seu inimigo o chamavam de “o Bulldozer” (trator geralmente utilizado para demolição de casas). Para aqueles que o reverenciavam como um forte protetor armado e santo padroeiro dos assentamentos, ele foi o “rei de Israel”. Em uma vida vivida em três atos, Sharon destruiu cidades inteiras, desperdiçou incontáveis vidas e sabotou carreiras para moldar a realidade a seu redor. [caption id="attachment_39426" align="alignleft" width="300"] Ariel Sharon durante uma reunião ministerial em seu gabinete, na cidade de Jerusalem
Foto: AP/Oded Balilty[/caption] O primeiro ato da carreira de Sharon começou após a guerra de 1948 que estabeleceu Israel à custa de 750 mil palestinos que foram retirados de suas casas em uma massiva campanha de expulsão. Gravemente ferido na batalha de Latrun, onde o exército de Israel sofreu uma amarga derrota nas mãos do exército da Jordânia, Sharon se aposentou momentaneamente da vida militar. Olhando para trás, ele sentia raiva da missão que falhou em conquistar Latrun, um estratégico local que conectava três cidades palestinas e pareciam obstruir a continuidade demográfica do novo Estado judeu. Ele alegou que políticos covardes e comandantes incompetentes amarram as mãos das tropas israelenses, deixando o país judeu vulnerável por dentro. Sharon ansiava pelo fim de 1948, para completar o projeto de expulsão que ele via como deficiente. Em 1953, Sharon foi retirado da aposentadoria pelo primeiro-ministro David Ben Gurion e nomeado o chefe de uma unidade militar secreta que tinha a tarefa de conduzir ataques brutais de represália e sabotagem. Após um ataque palestino letal em um kibbutz israelense, Sharon liderou seus homens até a cidade de Qibya, na Cisjordânia, sob as ordens do comando central de Ben Gurion para “causar o máximo de danos e destruição”. Quando eles terminaram, 66 civis – a maioria mulheres e crianças palestinas – estavam mortas. Nos anos que se seguiram após esse escândalo, Sharon liderou ataques sangrentos em território egípcio e sírio que inflamou as relações com seus vizinhos e fez com que estes procurassem, urgentemente, assistência militar da União Soviética. Na campanha do Sinai, de 1956, Sharon foi acusado por um de seus comandantes, Arye Biro, de supervisionar o massacre de 49 trabalhadores egípcios de uma pedreira que foram feitos de prisioneiros e não haviam tomado parte nos combates (a censura oficial manteve os detalhes do público por décadas). Na Guerra dos Seis Dias, de 1967, Sharon aumentou a contagem de corpos, tornando uma, sem precedentes, proporção de mortes, em fama nacional. Com a Faixa de Gaza sob o controle de Israel, Sharon orquestrou a demolição das orquídeas cítricas dos palestinos para darem lugar à colonização judaica. Durante a Guerra de 1973, Sharon travou sua própria guerra paralela por glória pessoal. Determinado a ser o primeiro comandante israelense a cruzar o canal de Suez, ele enviou seus soldados encarar o exército do Egito sem artilharia suficiente ou apoio aéreo. Vários de seus homens morreram em um impulso cego enquanto brigadas inteiras foram deixadas expostas ao inimigo. Mas Sharon salvou sua busca por fama quando seus tanques cercaram o Terceiro Exército Egípcio. Após a batalha, fotos do general no deserto egípcio, em pé e orgulhoso, com um curativo de um ferimento superficial e rodeado de soldados reverenciando-o como o “Rei de Israel”, circularam por toda mídia israelense e internacional. A ambiciosa carreira política que ele tanto buscava agora estava garantida. Em pouco tempo, Sharon ajudou a fundar o Partido Likud, abrindo o segundo ato de sua ornamentada carreira. Apesar de destinado a uma trajetória política de direita, Sharon devia seu sucesso a ícones do partido trabalhista Zionista. Seu patrão original, Ben Gurion, e o jovem guerreiro-político, Moshe Dayan, constantemente o promoviam na hierarquia militar, apesar de um claro e escandaloso histórico de insubordinação. Seu primeiro posto administrativo foi uma tarefa abreviada, durante o governo de Yitzhak Rabin, o mais típico membro do partido trabalhista, que havia imaginado Sharon liderando a reorganização do exército após o desastre da guerra de 1973. Mas foi em 1977, durante a coalizão liderada pelo Likud, com Menachem Begin à frente, que Sharon finalmente conseguiu traduzir sua influência em políticas que alterariam a História. Indicado ministro da agricultura, Sharon explorou sua aparente insignificante posição para tornar o messiânico projeto de um Israel Superior à vida. Com um vigor sem limites, ele expandiu a empreitada dos assentamentos através da Cisjordânia, ostentando que ele pessoalmente estabeleceu 64 assentamentos durante seus primeiros quatro anos no governo. Ele revelou sua estratégia em uma conversa particular com o neto de Winston Churchill: “Nós faremos um sanduíche de pastrami com eles. Nós iremos inserir uma faixa de assentamentos judeus com os palestinos no meio e então, outra faixa de assentamentos judeus cruzando toda a Cisjordânia, para que assim, daqui a 25 anos, nem a ONU ou os EUA, sejam capazes de desmantelá-los”. Tendo conseguido se estabelecer como o visionário por trás dos assentamentos, Sharon almejou o Ministério da Defesa, constantemente intimidando Begin a ceder à suas ambições. Quando Begin finalmente capitulou ao “bullying” de Sharon, ele disse com uma meia piada e meia verdade, que Sharon poderia ter tentado um golpe de Estado se ele não tivesse atendido a seus pedidos. Sharon entrou no Ministério da Defesa consumido com sonhos de um governo cristão fantoche, aliado a Israel, em Beirute – a muralha de defesa do império regional israelense. Clamando por uma invasão ao Líbano, Sharon escondeu suas reais intenções de todos, exceto talvez de Begin, alegando que ele apenas tencionava expulsar da OLP (Organização de Libertação da Palestina) para fora do sul do Líbano, onde eles organizaram ataques esporádicos em território israelense. Quando Begin deu sinal verde para a Operação Paz na Galiléia, em junho de 1982, Sharon enviou tanques israelenses em direção à Beirute sem a aprovação do restante do gabinete, o qual Sharon havia enganado deliberadamente. Muitos deles ficaram indignados, mas era tarde demais para voltar atrás. Contra uma feroz resistência palestina, uma das mais vitais e cosmopolitas cidades do Oriente Médio, estava em ruínas. As forças de Sharon destruíram Beirute com bombardeios indiscriminados, deixando as ruas espalhadas com cadáveres não enterrados. A cada dia, doença e fome se espalhavam em níveis epidêmicos. Em agosto, um dia após o gabinete israelense aceitar a proposta do enviado especial dos EUA, Philip Habib, pela evacuação da OLP, as forças de Sharon bombardearam Beirute por sete horas seguidas, deixando 300 mortos, a grande maioria sendo civis. O sociólogo israelense Baruch Kimmerling escreveu que o massacre “lembrava o de Dresden pelos aliados no final da Segunda Guerra”. Sharon até mesmo requisitou que uma brigada adicional de paraquedistas para matar os combatentes da OLP que estavam cercados em Beirute, no que resultou em uma rara reprimenda de Begin, que temia que seu ministro da defesa destruísse completamente os esforços de Habib para acabar com a crise. Leia também: Professor Nasser explica quem foi Ariel Sharon, o açougueiro As forças da OLP se retiraram do Líbano, seguindo as diretivas de Habib, mas o pior ainda estava por vir. Sharon havia bloqueado a proposta para a entrada de forças multinacionais pra manutenção da paz capazes de prevenir represálias contra indefesos refugiados palestinos que ficaram para trás. Assim então que o palco para o mais hediondo massacre da guerra foi montado. Seguido do assassinato de Bashir Gemayel, o líder militar cristão que Sharon havia escolhido para ser o seu presidente fantoche no Líbano, forças israelenses ajudaram a infiltrar milícias cristãs falangistas nos campos palestinos de Sabra e Shatila, que estava cercada pelo exército israelense, e os proveu de apoio operacional e informações. Sharon e muitos de seus oficiais sabiam bem das intenções dos falangistas de assassinar o máximo que pudessem de mulheres e crianças. Após dias de massacre, pelo menos 2 mil civis foram mortos, com incontáveis outros violados sexualmente e brutalizados. Em fevereiro de 1983, a israelense Comissão Kahan considerou Sharon “indiretamente responsável” pelo massacre, exigindo sua demissão como ministro da defesa. Com a contagem de corpos nas mãos dos israelenses aumentando exponencialmente no Líbano, praças e lugares públicos das cidades israelenses de Tel Aviv e Jerusalém foram tomados por multidões de mães horrorizadas. As demonstrações antiguerra abalaram a confiança do alto comando do exército. No escritório do primeiro-ministro, Sharon repreendeu Begin e seus ministros, avisando-os que “se adotarmos esse [Kahan] relatório, todos aqueles que nos querem mal e se opõe a nós, irão dizer que aquilo que aconteceu nos campos foi genocídio”. Chamando as revelações de “uma marca de Caim em todos nós por gerações”, Sharon foi inflexível em sua recusa a se retirar. Durante a reunião, um terrorista judeu de extrema direita, jogou uma grana em uma multidão de protestantes antiguerra, bem na frente do escritório do primeiro-ministro, matando Emil Grunzweig, um professor e ativista antiguerra. O incidente foi o golpe final, acelerando a renúncia de Sharon. Apesar de ele permanecer no governo como ministro sem portfólio, seus sonhos de servir como primeiro-ministro pareciam ter morrido. O temor de Sharon em ser julgado não terminou com sua renúncia. Em julho de 2001, uma corte belga abriu uma investigação sobre os massacres de Sabra e Shatila, quando um grupo de sobreviventes abriu uma acusação, utilizando-se dos parâmetros do país de “jurisdição universal”. Elie Hobeika, o comandante falangista diretamente responsável pelas mortes, foi assassinado meses depois, após informar a políticos belgas que ele testemunharia contra Sharon. “Israel não quer testemunhas contra ela nesse caso histórico, no qual a Bélgica certamente condenaria Ariel Sharon”, disse o ministro libanês para refugiados, Marwan Hamadeh, fazendo eco à enorme especulação sobre o envolvimento de Sharon no assassinato. Em setembro de 2003, com a relação entre Bélgica e Israel em crise, a corte belga arquivou o caso, com base na imunidade diplomática de Sharon. A essa altura, Sharon havia ressuscitado sua carreira política de maneira dramática. Em 28 de setembro de 2000, seguindo o colapso das negociações de paz entre Israel e a Autoridade Palestina, em Camp David, Sharon visitou o Haram al-Shaif, em Jerusalem, local da Mesquita Al Aqsa e do Domo da Rocha, acompanhado de mil policiais armados e agentes de segurança. Foi um movimento de provocação, programado para insuflar ainda mais as tensões nos territórios ocupados. Como esperado, a sua aparição revoltou os palestinos, causando inúmeros tumultos no dia seguinte, os quais foram respondidos com uma repressão draconiana por parte de Israel – as forças israelenses atiraram, só no mês de outubro de 2000, 1.3 milhão de balas contra, principalmente, manifestantes desarmados – inflamando aquele que ficou conhecido como a Intifada de Al-Aqsa. No ano seguinte, Sharon foi eleito primeiro-ministro e os casos de homens-bomba se espalharam por baladas e cafés de Tel Aviv e Jerusalem. Se aproveitando do sentimento em Israel durante as conversações de paz em Camp David – que haviam pedido a demissão de Sharon durante a invasão do Líbano – o jornal liberal libanês Haaretz reclamou uma “guerra sobre cafés matinais e croissant”. Os negociadores de paz ficaram chocados com a intifada, mas também foram cinicamente enganados pelo primeiro-ministro anterior à Sharon, Ehud Barak, que declarou após o colapso das conversações de Camp David que “não havia parceiro palestino” pela paz. Sabotados em confiança, eles se tornaram aquiescentes enquanto muitos se uniam por trás de Sharon, seu vingativo protetor. Com uma mão livre para enviar tanques e jatos de combate com centros populacionais da Palestina, Sharon supervisionou uma campanha cuidadosamente calculada de brutalidade, culminando, em 2002, na abrangente demolição do campo de refugiados de Jenin. Baruch Kimmerling cunhou a estratégia de Sharon de “’politicida”’, uma “gradua, mas sistemática tentativa de causar a aniquilação de palestinos como uma entidade política e social independente”. Assim como no começo, o objetivo não declarado de Sharon era terminar a guerra de 1948. Enquanto os tratores israelenses rolavam através de Gaza e da Cisjordânia, Sharon anunciou sua intenção de “fazer separações através da terra”. Apesar de inicialmente resistentes quanto a ideia, ele resolveu terminar um plano primeiramente introduzido na década de 1990, ainda sob Yitzhak Rabin: a construção de uma gigante muralha que colocaria o último prego no caixão do movimento nacional por uma Palestina. Cortando a Cisjordânia e o vale da Jordânia, a muralha iria, efetivamente, anexar 80% dos assentamentos em Israel, consolidando a maioria demográfica judia ao mesmo tempo em que relegava palestinos a permanecerem em um regime de exclusão de guetos. O próximo plano de Sharon consistia em retirar os assentamentos israelenses da Faixa de Gaza, montando o cenário para um estado de sítio high-tech naquele território ocupado. Diferentemente do passado, Sharon vendeu seus planos ao público com cuidadosos toques e bem calibrada retórica sutil. Chocado por um novo movimento de recusa em massa – um grupo de antigos e ativos pilotos da força aérea israelense emitiu uma carta declarando sua recusa em participar das operações em território ocupado – e por uma furiosa oposição do movimento de assentamento para com seu plano, Sharon, de maneira inédita, declarou que a ocupação era “uma coisa ruim para Israel”. Em seguida, Sharon se retirou do Likud, pavimentando junto com diversos políticos, incluindo seu antigo assessor Tzipi Livni, o caminho para continuar o plano de separação sob a bandeira do Kadima. As manobras de Sharon renderam a ele o espaço político que ele precisava para completar suas metas. O Haaretz, a voz do liberalismo israelense, apoiou a imensa muralha da separação como um “revolucionário” passo para a criação de dois Estados. Apoiando a retirada dos assentados de Gaza, a diretoria editorial do New York Times, declarou que Sharon “deveria ser reverenciado”. Em Tel Aviv, o grupo anti assentamentos Partido da Paz e Trabalho organizou uma demonstração em massa em apoio ao plano de separação em Gaza. Ganhar o apoio dos liberais foi o golpe político final de Sharon e, provavelmente, o que teve mais consequências. O verdadeiro objetivo do regime de separação de Sharon nunca foi o de terminar a ocupação, mas sim, reforçá-lo sob novos parâmetros que iriam prevenir a destruição da imagem de Israel internacionalmente. Um assessor do alto escalão de Sharon, Dov Weissglass, revelou a lógica real por trás dos planos de Sharon: “A separação [de Gaza] é, na realidade, é como um formaldeído (químico usado em detergentes). Ele fornece a quantidade suficiente de formaldeído para que não exista um processo político com os palestinos”. Outro assessor próximo, Arnon Sofer, foi ainda mais franco:  “Quando 2,5 milhões de pessoas viverem em uma Gaza isolada será uma catástrofe humana. Essas pessoas se tornaram ainda mais animalescas do que são hoje, contando ainda com o auxílio de um fundamentalismo islâmico insano. A pressão na fronteira será horrível. Será uma guerra horrível. Então, se quisermos continuar vivos, nós temos que matar e matar e matar. O dia inteiro, todos os dias”. Oito anos após Sharon ter entrado em coma, as reais implicações da separação continuam expostas. Gaza sofre um estado de sítio conjunto de Israel e Egito, enquanto o primeiro lava as mãos para com qualquer responsabilidade para seus habitantes. Apesar dos controles israelenses de entrada, saída, espaço aéreo e litoral de Gaza, a ocupação está finalizada para o governo. Os assentamentos israelenses estão firmemente entrincheirados na Cisjordânia e inclui o leste de Jerusalem, reduzindo a áreas palestinas a um “sanduíche de pastrami”, com bantustões não contínuos, assim como Sharon idealizou originalmente. Com o processo de paz efetivamente banhando em um “formol” político, os elementos da direita conquistaram uma dominação sem restrições nas instituições chave do estado judeu. Típico de uma nova geração de direitistas israelenses é corrupto filho de Sharon, Gilad, que foi chamou a sociedade palestina de “predadora”, “animal” e “matadora de bebês”. Agora que a visão unilateral de Sharon parece ter sido consolidada, o governo de Israel deve, permanentemente, administrar uma ocupação sem intenção alguma de terminá-la. Ela não possui nenhuma estratégia clara para conseguir legitimidade internacional. Sua linha direta com Washington se tornou um sistema vital para o status quo. Assim como Sharon, que passou seus últimos anos em um estado de coma sem nenhuma esperança de recobrar a consciência, Israel está apenas ganhando tempo.