A jornalista Olga Rodríguez, do El Diário, explica as razões pelas quais é mais interessante para os EUA uma situação de indefinição no conflito sírio do que uma vitória de qualquer um dos lados
Por Olga Rodríguez, do El Diário (Tradução: Felipe Rousselet)
Fala-se de uma intervenção militar iminente na Síria. Alguns lamentam que ela não tenha ocorrido antes, que os Estados Unidos e seus aliados não tenham reagido até agora. Não foi falta de interesse, mas sim um compromisso estratégico calculado.
Há mais de dois anos, a Rússia e o Irã apoiam militarmente o regime sírio. Por sua vez, várias potências ocidentais, assim como seus aliados no Oriente Médio, intervêm na Síria de forma mais ou menos subterrânea, fornecendo armas e informações de inteligência aos rebeldes. França e Estados Unidos, entre outros, forneceram ajuda militar aos grupos armados da oposição. A CIA e o serviço secreto britânico atuam em campo apoiando e aconselhando os rebeldes sírios e os países do Golfo sobre quais grupos devem armar.
O material bélico fornecido aos rebeldes que lutam contra Assad chegou principalmente por meio dos países do Golfo e da Turquia, calculado com precisão desde 2011, de modo que eles não tenham a sua disposição armamentos pesados. Deste modo, os rebeldes tiveram capacidade suficiente para prejudicar, mas não para derrubar o governo de Assad; tiveram capacidade para resistir, mas não para vencer. E, desta forma, o conflito se mantém em um nível onde os dois lados conseguem resistir, desgastando-se ambos. É um impasse, uma situação indefinida com a qual concordaram os atores internacionais envolvidos, de uma forma ou de outra, no conflito.
Não é uma novidade. Na década de 80, à época da guerra entre Irã e Iraque, Washington forneceu apoio, armas e informação militar para Bagdá, e logo Saddam Hussein utilizou gás sarín contra o Irã e a população curda. Porém, em uma estratégia de jogo duplo, os EUA também facilitaram secretamente a chegada de armamentos para o Irã, entre 1985 e 1987, por meio de uma rede de tráfico de armas norte-americanas e israelenses organizada pela CIA.
Com os lucros deste negócio, Washington apoiou os Contras nicaraguenses e a guerrilha afegã que lutava contra as tropas soviéticas no Afeganistão. A operação ficou conhecida como “Irãgate”. Desta forma, os Estados Unidos contribuíram para a prolongação da guerra entre Bagdá e Teerã com o propósito de desgastar dois países estratégicos, com petróleo, e deixá-los fora do jogo. Se ambos perdiam, Washington ganhava.
Um jogo de xadrez na mesa
No caso sírio, se considera que se algum dos lados ganha, os Estados Unidos perdem (e, com eles, Israel). É a premissa aceita em certos círculos políticos e diplomáticos do Ocidente. Por isso, a aposta é por uma guerra de desgaste, de impasses, uma situação indefinida. Agora que Assad obteve certa vantagem sobre seus inimigos, a comunidade ocidental anuncia um novo nível de intervenção na Síria.
Isso foi expresso nesta semana, sem pudor algum, por Edwark Luttwak, do Center for Strategic and International Studies (Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais), em artigo publicado pela The New York Times:
“Um resultado decisivo para qualquer lado seria inaceitável para os Estados Unidos. A restauração do regime de Assad, apoiado pelo Irã, aumentaria o poder e o status do Irã no Oriente Médio, enquanto uma vitória dos rebeldes, dominados por facções extremistas, inauguraria uma nova onda de terrorismo da Al Qaeda”.
Existe apenas um resultado que eventualmente poderia favorecer os Estados Unidos: um cenário indefinido. Mantendo-se o exército de Assad e seus aliados, Irã e Hezbolá, em uma guerra contra guerrilheiros extremistas liderados pela Al Qaeda, significaria que quatro inimigos de Washington estariam envolvidos em uma guerra entre eles mesmos.
A espuma e as verdadeiras intenções
Se vivêssemos em um mundo ideal, poderíamos acreditar na bondade da política internacional. As guerras seriam essas missões de paz, de que tanto falam os líderes ocidentais, e os governos seriam impulsionados somente pelos interesses dos cidadãos. Mas o nosso mundo está longe de ser ideal.
A história, essa grande ferramenta que serve também para analisar o nosso presente, demonstra que, por vezes, as versões oficiais de um governo são apenas a espuma das suas posições reais. Que, por trás de posturas públicas aparentemente altruístas, se escondem políticas ilegais e criminosas. Que, abaixo dos discursos oficiais em nome dos direitos humanos, se movem interesses econômicos e geopolíticos.
Não é preciso procurar muito para se encontrar exemplos:
O apoio dos Estados Unidos aos golpes de Estado e as ditaduras latino-americanas nos anos 70; as mentiras para invadir e destruir o Iraque, as desculpas para invadir e ocupar o Afeganistão, a negação sistemática de crimes de guerra, os assassinatos de civis, a criação de centros de tortura espalhados pelo mundo, a aceitação da Europa dos voos da CIA, o uso de aviões não tripulados, os drones, para cometer assassinatos extrajudiciais, a utilização de armas de urânio empobrecido e a sua venda para governos evidentemente ditatoriais e repressivos, entre tantos outros exemplos.
Coincidentemente, nesta semana a CIA reconheceu algo que já era conhecido: seu papel no golpe de Estado, em 1953, que derrubou o primeiro-ministro iraniano, Mohammed Mossadegh, democraticamente eleito e que havia nacionalizado o petróleo do Irã, até então explorado principalmente pela Grã-Bretanha.
Recentemente, também se fez público um contrato no qual os Estados Unidos facilitariam o fornecimento de bombas de fragmentação para a monarquia absolutista da Arabia Saudita, que fornece armamento para os rebeldes sírios.
Os únicos juízes
As potências ocidentais pretendem se elevar novamente à condição de juiz desinteressado que se tem de chamar quando as coisas ficam feias. Se apresentam como “solucionadoras” de conflitos através do uso de bombas e operações militares aparentemente “limpas, juntas e breves” (isso foi o que disseram ao Iraque, como esquecer).
Os EUA e seus aliados não parecem dispostos a esperar os relatórios dos inspetores da ONU antes de atacar a Síria, o que estabelece um precedente perigoso.
O regime de Assad é responsável pela repressão, por milhares de mortos, mas neste caso ainda não foi provado que é o autor do ataque com armas químicas. Poderia ser. Na verdade, é um dos seis países que não assinaram a convenção de controle de armas químicas (seu vizinho, Israel, também não ratificou).
Mas, o sério – e legal – seria esperar as conclusões da ONU sobre o ataque e, com isso, buscar outras opções alternativas à linguagem das bombas. Do contrário, se estará apostando em uma guerra novamente ilegal, que não contará com a aprovação do Conselho de Segurança das Nações Unidas.
Se hoje Washington e seus aliados atuam como “juízes” para decidir se vão atacar ou não um país, amanhã outra nação pode reivindicar o mesmo direito.
As outras obscenidades morais
O primeiro ministro-britânico, David Cameron, disse que o ataque com armas químicas na Síria é algo “absolutamente abominável e inaceitável”; o presidente francês, François Hollande, anunciou que a França “punirá aqueles que usaram gás contra inocentes”; o secretário de Estado dos EUA, Jonh Kerry, afirmou que o uso de armas químicas é uma obscenidade moral.
Cabe a pergunta se o uso de fósforo branco em Fallujahj (Iraque), pelos EUA, não é uma obscenidade moral e um ato “abominável e inaceitável”. É legítimo perguntar se não seria o caso, de punir, assim como defendeu a França, aqueles que usaram gases contra inocentes, como Israel em Gaza e como os EUA em Fallujah.
Fala-se em obscenidades morais quando um Estado que, apenas na última década, assassinou, feriu, torturou, sequestrou e prendeu sem motivos centenas de milhares de pessoas é menos chamativo. Que esta potência que legitima sequestro, torturas, assassinatos extrajudiciais e prisões como Guantánamo tente se erguer mais uma vez como um defensor dos direitos humanos e da liberdade é um pouco delirante. Um Prêmio Nobel da Paz apostando mais uma vez na via militar demonstra o quadro orwelliano em que nos encontramos.
Em meio a este labirinto de interesses internos, regionais e internacionais se encontra a população síria, castigada pela violência de um conflito no qual atores regionais e internacionais estão envolvidos desde o início.
Nos dois últimos anos, a guerra da Síria provocou 100 mil mortos e dois milhões de refugiados, dos quais mais de um milhão são crianças. Mas parece que estas mortes e refugiados não eram até agora uma obscenidade moral.
Há muitas perguntas que não foram respondidas :
Como bombas ocidentais vão ajudar o povo sírio ?
Como vão evitar vítimas civis (tendo em conta o registro trágico)?
Se pensou se a participação aberta de vários países no conflito poderia elevar o nível de confronto na região?
Como evitar a utilização de mais armas químicas no futuro?
E, depois daqueles dos dias de ataque, o que virá? De novo uma guerra de desgaste, um cenário indefinido, a intervenção subterrânea?
Ou, pelo contrário, mais bombardeios, mais ataques, mais guerras apresentadas em pleno século XXI como um caminho para a paz, sem analisar outros caminhos, outras políticas?