Um olhar superficial poderia atribuir ao secretário de Estado dos EUA, John Kerry, o gesto desengonçado que tornou difíceis e arriscados os planos da Casa Branca para uma guerra contra a Síria. Na manhã desta segunda-feira (9/9), ao falar de improviso em Londres, Kerry sugeriu que o ataque anunciado por Obama poderia ser cancelado, caso o presidente sírio, Bashar Assad, entregasse “todas as suas armas químicas, sem demora” e permitisse “a verificação completa” do ato pela comunidade internacional. No instante seguinte, tentou neutralizar o efeito de sua própria frase, talvez por perceber o risco que implicava. “Ele [Assad] não o fará, isso não pode ser feito”, disse. Minutos depois, a porta-voz do Departamento de Estado correu em seu socorro, afirmando que ele fizera apenas “uma argumentação retórica”, sobre a “impossibilidade de Assad abrir mão das armas”. Mas era tarde.
Muito rápido, o chanceler da Rússia, Sergei Lavrov, que se opõe à guerra, aproveitou a brecha. Assegurou que seu país recomendaria à Síria colocar os arsenais sob supervisão de inspetores internacionais. O círculo fechou-se quando o próprio chanceler sírio, Walid al-Moulen, que estava em Moscou, acolheu a proposta e saudou “a sabedoria da liderança russa, que tenta prevenir uma agressão norte-americana contra nosso país”… Nos instantes seguintes, e na velocidade da internet, a ideia receberia o aval do secretário-geral da ONU, Ban Ki-Moon, do primeiro-ministro britânico, David Cameron, e de diversos parlamentares em Washington. À noite, um Obama relutante foi obrigado a ceder, parcialmente. Em cinco entrevistas à TV, que haviam sido agendadas para defender o ataque à Síria, ele disse desconfiar do compromisso sírio, mas declarou-se disposto a testá-lo. Outras reviravoltas poderão surgir, mas atacar Damasco, nas novas circunstâncias, havia se tornado insustentável. A questão é: tudo terá sido, mesmo, resultado de um escorregão de John Kerry?
Uma série de acontecimentos aconselha a dizer que não. Desde meados da semana passada, os planos de um ataque à Síria sofriam desgaste crescente. A aprovação, no Congresso norte-americano, da resolução de guerra proposta por Obama tornara-se, no mínimo, duvidosa. No plano internacional, aprofundava-se o desgaste do presidente dos EUA, dos governantes e da mídia dispostos a segui-lo.
Por trás destas dificuldades, há três hipóteses que merecem ser analisadas com atenção – e comemoradas. Dez anos após mentir intencionalmente ao mundo, no Iraque, Washington não reúne, hoje, condições políticas para desafiar a ONU – einiciar um conflito cujo real objetivo é a afirmação de seu poder geopolítico. Permanece temerário, para governos que se afirmam democráticos, contrariar de modo frontal e aberto a opinião majoritária das respectivas sociedades. Não será aceita, sem contestação, a ideia de que os Estados têm o direito de agir movidos por “informações” que dizem possuir – mas se recusam a compartilhar com os cidadãos.
Todas estas hipóteses foram reforçadas por fatos concretos, nos últimos dias – inclusive no cenário interno dos Estados Unidos. Lá, uma opinião pública cansada de guerras e manipulações, e um establishment político profundamente dividido, corroeram uma estratégia esdrúxula da Casa Branca. Consistia em afirmar que existem “provas conclusivas” sobre a responsabilidade do governo sírio pelo ataque químico a um subúrbio de Damasco, em 21/8; mas em evitar a apresentação pública de tais comprovações – que seriam sigilosas e, portanto, exibidas apenas em comitês de senadores e deputados.
Já no sábado, um balanço do New York Times revelava que Obama enfrentaria uma “batalha tensa e em contracorrente” para aprovar no Congresso seu pedido de autorização para a guerra. Havia três fatores para isso. Uma parcela importante do Partido Democrata opunha-se por convicção ao conflito – da mesma maneira que o próprio presidente condenou a guerra contra o Iraque quando senador, fora da Casa Branca e, portanto, menos submisso às pressões da máquina de Estado. Um outro setor, que incluía democratas e republicanos, tendia a votar contra o Executivo por pressão direta dos eleitores.
Todas as sondagens de opinião pública realizadas nas últimas duas semanas, desde que o presidente anunciou a disposição de atacar a Síria, revelam que uma sólida maioria de cidadãos opõe-se a esta atitude. O jornal estimava que são especialmente sensíveis a tal posicionamento os parlamentares que não têm sua reeleição assegurada – e terão de enfrentar as urnas, em pouco mais de um ano. Esta previsão foi confirmada em 9/9, de modo enfático, por Justin Amash, deputado do estado de Michigan pelo Partido Republicano. Nos encontros públicos, disse ele, “percebo que não há apenas desaprovação à guerra, mas esmagadora desaprovação – seja de eleitores democratas ou republicanos”…
A arrogância da Casa Branca, que se julgou desobrigada a oferecer sinais efetivos do suposto envolvimento de Assad no ataque contra civis, ajudou a cimentar a rejeição popular à guerra. No domingo, um texto da agência Associated Press, insuspeita de favorecer o governo sírio, frisava a lacuna. “O público – dizia a matéria – ainda não viu uma única peça de evidência concreta capaz de conectar o governo do presidente Assad aos ataques com armas químicas. Nenhuma imagem de satélite, nenhuma transcrição das comunicações militares sírias: nada”.
A terceira razão para os percalços internos de Obama é o acirramento das disputas entre as elites políticas norte-americanas e a consequente dificuldade de Washington para exercer poder global. Ao invocar a parceria do Congresso para a guerra, em 31/8, o presidente imaginou que teria amplo amparo do Partido Republicano – conservador, implicado nos conflitos contra Iraque e Afeganistão, saudoso dos tempos em que os EUA enxergavam-se como potência única. Uma parte dos republicanos de fato o apoiou. Reivindicou, inclusive, que os ataques não se limitassem a “punir” Assad, mas procurassem derrubar ou, ao menos, enfraquecer seu regime. Mas outro setor, ainda mais primitivo, radicalizou-se de modo irreconciliável contra o presidente, nos últimos anos – a ponto de considerá-lo um “socialista” que não merece apoio em circunstância alguma…
Na arena internacional, Obama e seus aliados foram pegos num contrapé similar. Confiante no poder bélico incomparável dos Estados Unidos, o presidente agiu como George W. Bush em 2003 e julgou-se com legitimidade para lançar unilateralmente, e sem aval da ONU, uma guerra de pretexto “humanitário”. Num editorial de rara sinceridade publicado em 5/9, a revista Economist apoiou o presidente, mas expôs a verdadeira razão por trás de sua iniciativa. “Os argumentos para a intervenção na Síria são mais estreitos e menos utópicos que no Iraque. Primeiro, está o cálculo dos interesses norte-americanos. A arena internacional é, por natureza, anárquica. (…) Como polícia do mundo, os EUA podem definir as regras de acordo com seus interesses e preferências. Se recuarem, outras potências avançarão (…) A China já provoca a América; Vladimir Putin começou a confrontá-la – e não apenas sobre a Síria. É questionável que a Síria fosse de interesse vital para os EUA, antes deste ataque; mas não depois do desafio direto de Assad à autoridade de Obama”.
Em poucos dias, ficaria claro que Washington mantém supremacia militar global, mas arrisca-se a perder, de forma acelerada, algo mais decisivo: o poder político para impor “seus interesses e preferências”. Em 29 de agosto, o Reino Unido, um aliado histórico nas campanhas militares norte-americanas, já havia se recusado a atacar a Síria, após surpreendente voto contrário de seu parlamento. Três dias depois, o papa Francisco anunciou – em fala aos católicos, no Vaticano, e também pelo twitter – sua oposição à guerra. Exortou: “guerra nunca mais. Nunca mais guerra”. Argumentou: “Quanto sofrimento, quanta dor, quanta devastação, traz o uso das armas, em seu rastro”.
Por algum tempo, Obama e Kerry contaram com uma compensação parcial: o presidente francês, François Hollande, ofereceu, em 30/9, apoio à intervenção na Síria. Mas suas condições de mantê-lo começaram a evaporar, logo em seguida. Também na França, apenas 25% da população apoia o ataque. Embora a Constituição permita a Hollande ir à guerra sem apoio do parlamento, cresceram os sinais de que o presidente não conseguiria fugir a este teste. Por isso, já na reunião do G-20, em São Petersburgo (5 e 6/9), ele vacilava. Sugeria que talvez fosse melhor adiar o ataque para depois de um parecer dos inspetores da ONU sobre as armas químicas. Não se sabe quando ele sairá e é muito improvável que implique o regime sírio…
Em tais circunstâncias, era natural que John Kerry, impulsivo e falastrão, acabasse cometendo alguma gafe. Obama tencionava submeter rapidamente, ao Congresso, a moção em favor da guerra. Quanto maior a demora, mais riscos de o apoio interno e internacional ser corroído pelos fatos. A entrevista do secretário de Estado, em Londres, foi um autêntico festival de absurdos. Talvez para aliviar as pressões sobre Hollande, eleafirmou, por exemplo, que os EUA planejavam, contra a Síria, um ataque “incrivelmente pequeno” [incredibly small]. Desconcertou todos os que conhecem as incertezas dos conflitos bélicos – mas em especial os conservadores norte-americanos, que exigem “firmeza” contra Assad. Desse ponto até o blefe infantil e comprometedor, pronunciado a seguir, foi um passo. Ágil, empenhado em recuperar ao menos parte da antiga influência geopolítica, o governo Putin não deixou a oportunidade escapar. Que virá agora?
Os riscos de um ataque à Síria não podem ser, ainda, descartados. Como admite o editorial do Economist, não é de armas químicas que se trata – mas de poder geopolítico. Por isso, a caça a pretextos prosseguirá: agora, provavelmente na forma de condições para a inspeção dos arsenais que o governo Assad não tenha condições de cumprir. Outra possibilidade é um novo ato provocativo. As imagens das vítimas de Damasco, em 21/8, sugerem de fato que foram atingidas por armas químicas; porém, quem as lançou? Um depoimento de Carla Negroponte, da comissão da ONU que investigou atentados aos direitos humanos na Síria, é eloquente: “com o que sabemos até agora, são os opositores do regime os que utilizaram gás sarin”. Conhecidos por seus laços com a Al Qaeda, os “rebeldes” não poderiam animar-se a novas aventuras, capazes de instigar o envolvimento direto dos EUA?
Mas o tempo agora corre contra Washington: a lógica das guerras é a ação irrefletida, as “urgências” reais ou produzidas. Além disso, há fatores mais profundos em movimento. Nesta terça-feira (10/9), veio à luz uma nova e impactante sondagem sobre a opinião pública norte-americana. Comprovou a rejeição à guerra – seis de cada dez entrevistados opõem-se até mesmo aos ataques aéreos “limitados” a que se refere Obama. Indicou que, segundo 80%, os objetivos da guerra contra a Síria “não estão claros”. Mas revelou, também, um nítido desconforto da própria população com o papel imperial que os governantes querem preservar para os EUA. A ideia de que seu país deve exercer “liderança na resolução de conflitos externos” é rechaçada por 62% dos norte-americanos e apoiada por apenas 34%. A desaprovação é 19 pontos percentuais mais alta que à época da guerra contra o Iraque (43%), há dez anos.
Obama assumiu a Casa Branca, em 2002, prometendo virar a página de intervencionismo e arrogância, que marcou a era Bush, e resgatar os valores positivos que os EUA imaginavam ter projetado, em décadas passadas. Chegou até mesmo a receber o Prêmio Nobel da Paz. Porém, concessão depois de concessão, curvou-se de tal modo ao establishment político – particularmente ao chamado “complexo industrial-militar” – que se reduziu a uma peça muito funcional à engrenagem. Um presidente negro, neto de africanos e de passado progressista, mostrou-se afinal mais útil que seu antecessor para comandar tarefas como o assassinato extra-judicial de milhares de pessoas, por drones; a ampliação ilimitada das redes globais de espionagem; a perseguição aos que a denunciam.
É possível que a aventura síria dispare um forte alerta contra este processo. Talvez, em vez de Bashar Assad, tenha sido Barack Obama quem “cruzou a linha vermelha”, no episódio. Se for assim, é possível esperar, daqui em diante, maior resistência internacional aos planos de um governante que já não pode usar máscaras.
E salta aos olhos, neste ponto, um último aspecto, preocupante: a desarticulação da chamada “sociedade civil global”. Há dez anos, às vésperas de George Bush iniciar a guerra contra o Iraque, ela promoveu manifestações nos cinco continentes. Segundo certas estimativas, reuniram 13 milhões de pessoas. Não frearam a ofensiva militar, mas foram essenciais para deslegitimá-la. Foram articuladas em Porto Alegre, no Fórum Social Mundial (FSM) de 2003. Levaram o próprio New York Times, a falar na emergência de uma segunda superpotência mundial.
Na crise síria, esta “superpotência” esteve ausente. O papel mais destacado na oposição a Washington coube a… Vladimir Putin, presidente da Rússia. A mesma ausência tem se repetido em uma série de acontecimentos globais de grande relevância – da crise financeira à defesa dos perseguidos por denunciarem a espionagem de Washington. O esvaziamento dos FSMs, a partir de 2005, não foi corrigido nem substituído por outro espaço ou mecanismo de articulação. Fazê-lo será, cada vez mais, um desafio estratégico.