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Em seu novo livro, John Holloway ressalta que o que diferencia o homem do animal não é o trabalho, mas sim sua capacidade de concebê-lo e planejá-lo, e isso nos é permanentemente roubado pelo sistema dominante
Por Júlio Delmanto*
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Reconhecido internacionalmente sobretudo por suas reflexões sobre o movimento zapatista, o pensamento do irlandês John Holloway é referencial para ajudar a entender não só as revoluções cotidianas de Chiapas, das quais são os próprios zapatistas os principais intelectuais, mas também contextos de revoltas como o 2001 argentino, a indignação europeia e o ainda não terminado junho brasileiro – que deve durar no mínimo até a Copa do Mundo de 2014. Chega em mais que boa hora, portanto, o lançamento no Brasil de seu último livro, Fissurar o capitalismo, recém publicado pela Editora Publisher Brasil.
É possível que o momento atual, de inesperado e animador desafio à ordem, às hierarquias e aos autoritarismos diversos que permeiam nossa vida social e política, inspire uma maior difusão da obra e das reflexões de Holloway, infelizmente ainda pouco levadas a sério em nosso debate acadêmico e político de uma forma mais geral. Seu livro Mudar o mundo sem tomar o poder foi bastante comentado e mesmo atacado no Brasil, mas aparentemente muito pouco lido, a se tomar o teor raso de boa parte das críticas que recebeu.
Holloway inspira-se nos zapatistas ao buscar o caminhar perguntando, em detrimento das certezas de manual. Nunca foi sua pretensão apontar mapas que sabe serem desenhados sempre por quem resiste em luta. Mesmo assim, em Fissurar o capitalismo, almeja apontar algo que dê conta da crítica de que “mudar o mundo sem tomar o poder” era uma premissa por demais negativa, pouco propositiva.
Sem esquecer de reafirmar o papel construtivo da negatividade, do grito de “não” do qual a dignidade rebelde é desdobramento, esse novo livro avança nas reflexões sobre, se é preciso mudar o mundo sem buscar redesenhar as estruturas de poder e dominação “a nosso serviço”. Isso está longe de ser uma proposição meramente utópica, intangível. Pelo contrário, uma das forças do argumento do irlandês é destacar que o entendimento do sistema tem de ir além de denunciá-lo em sua força, precisa enfatizar o que ele tem de mais frágil e em permanente questionamento, “suas linhas de falha invisíveis ou quase invisíveis (e rapidamente cambiantes) na sociedade”. Afinal, trata-se de superá-lo, como já ressaltava o mesmo Marx que Holloway conhece bem e reivindica, mas como “marxismo aberto”.
Paremos de produzir o capitalismo
Em suas oito partes e 33 “teses”, Fissurar o capitalismo discute sobretudo o que seriam essas fissuras e o duplo caráter do trabalho, defendendo não a centralidade do fortalecimento do entendimento de embate entre trabalho contra capital, mas sim a do fazer social contra ambos, afinal revolução precisa transformar a atividade humana se quer ser digna deste nome – “façamos contra o trabalho”. Mas talvez a consignação que mais sintetiza o texto de Holloway, e a mais instigante, é a expressa na trigésima segunda tese, que propõe: Paremos de produzir o capitalismo.
Somos apresentados todos os dias a um sistema preexistente que dita nosso agir e até nosso pensar, mas não se pode esquecer que o capitalismo fazemos nós, todos os dias. Podemos escolher não fazê-lo, e isso não é meramente utópico pelo simples fato de já estar em curso, defende o autor. “Não há nada especial em ser um revolucionário anticapitalista. Esta é a história de muitas, muitas pessoas, de milhões, talvez bilhões.” Somos pessoas comuns, ou seja, rebeldes, dizem os zapatistas, num movimento de recusa-e-criação audível e inaudível, consciente e inconsciente, cotidiano, acrescenta Holloway. Criamos todos os dias a sociedade da qual queremos nos libertar: isso é terrível, mas também fonte de esperança.
“A revolução não é a destruição do capitalismo, mas a recusa de criá-lo”, propõe, apontando que ver a transformação radical como algo no futuro, um roteiro a ser interpretado por um rol de heróis, líderes e partidos é apenas distanciar a ideia de revolução de nós mesmos. A questão não é de futuro, é de aqui e agora.
[caption id="attachment_28542" align="alignright" width="384"] Em Fissurar o capitalismo Holloway busca retomar e desenvolver o que considera um dos principais achados de Karl Marx, a crítica à dupla natureza do trabalho (flickr.com/rosalux)[/caption]
Fissuras x “Estadocentrismo”
E para Holloway as fissuras seriam exatamente “a insubordinação do aqui e agora”, uma mudança de temporalidade da rebelião, afirmações da subjetividade negada. São a “abertura de categorias que em sua superfície negam o poder do fazer humano, para descobrir em seu núcleo o fazer negado e encarcerado”.
Todos os dias, em diferentes níveis de consciência, visibilidade, organização, territorialidade e coletividade, pessoas comuns se recusam a deixar a lógica do dinheiro dar forma a determinadas atividades. Aí estão as fissuras, os impulsos em direção à autodeterminação. Por o serem, isso tornaria impossível predeterminar seu conteúdo, pois este é definido pelos que delas participam, sendo possível no máximo inferir sobre o que está contido nelas com base nas lutas que já existem e cobrem uma ampla gama de atividades e contextos.
Mas Holloway sugere que, em vez de se buscar abordar o conteúdo das fissuras, “devemos focar no como. O que significa auto-organização, como ela é organizada?”, questiona. Indica também que são processos que buscam ser autônomos, evitando o uso do termo “autonomia” por achar que não destaca o confrontamento constante com o mundo circundante. Fissuras, “as pontas afiadas do conflito social”. Recusar-se a produzir o capitalismo e criar um novo mundo.
Se há diferenças, também há confluências entre uma ocupação, uma greve e uma festa, defende Holloway, que destaca a necessidade de estimular tais conexões entre as distintas fissuras. Nesse processo, elas naturalmente se confrontam com o Estado. “O Estado é uma maneira de fazer as coisas: a maneira errada”, critica, descrevendo-o como forma de organização que é parte integral do sistema capitalista, parte da dinâmica social a ser rejeitada, e apontando que o trabalho político que se volta para ele não fica imune a reproduzir suas categorias como uma forma de relação. A revolução “Estadocêntrica” é, para Holloway, um processo autoantagônico, uma fissura que se abre e se fecha ao mesmo tempo.
A crítica ao que chama de estadocentrismo de parte da esquerda já era um dos eixos principais de Mudar o mundo sem tomar o poder, no qual Holloway lembrava que o marxismo sempre criticou o Estado como atuando em defesa dos capitalistas, o que levaria facilmente à concepção de que seria necessário conquistá-lo, estratégia rejeitada pelo irlandês. Para ele, é preciso entender o Estado não como instrumento, que pode ser colocado a serviço de ideais conservadores ou progressistas, mas como forma rígida (fetichizada) das relações entre pessoas, como momento da totalidade das relações sociais da sociedade capitalista.
Por mais que seu desenvolvimento histórico tenha complexificado sua atuação, a existência do Estado implica necessariamente a separação entre os processos econômicos e políticos e a estatização dos conflitos, ou seja, a canalização da revolta para o campo de jogo do adversário. “Grande parte do discurso de esquerda está cego à violência que acarreta a existência do Estado”, apontava neste livro publicado em 2003 no Brasil, em tradução feita curiosamente por Emir Sader, um dos intelectuais mais conectados ao “estadocentrismo” brasileiro atual.
Contra o trabalho
Em Fissurar o capitalismo Holloway busca retomar e desenvolver o que considera um dos principais achados de Karl Marx, a crítica à dupla natureza do trabalho. Se o alemão centra sua crítica no trabalho alienado, abstrato, ele não deixa de lembrar que “a atividade consciente livre é o caráter genérico do homem”, é o que o distingue do animal.
Holloway ressalta que o que diferencia o homem do animal não é o trabalho, mas sim sua capacidade de concebê-lo e planejá-lo, e isso nos é permanentemente roubado pelo sistema dominante. O capitalismo rompe com a unidade entre projeto e execução, nos roubando “o que caracteriza nossa humanidade”. Transformando o fazer em trabalho (abstrato), realiza-se a síntese social capitalista, e se rejeitamos o trabalho alienado no pano de fundo, há uma outra possibilidade, a de converter nosso fazer contra o trabalho.
Essa possibilidade reside no que o autor define como o “fazer-contra-o-trabalho”, que fundamentaria as fissuras e aspiraria constituir-se como atividade útil e consciente. A esperança estaria no caráter dual e antagônico do fazer humano, na possibilidade de superar a diferenciação entre trabalho e não trabalho e pressionar na direção da determinação consciente.
“No centro deste livro está o que gosto de pensar como um salto mortal, que consiste em ver que todas as formas de relações sociais são formas-processos, que todas as categorias contêm ‘ex-taticamente’ a sua própria negação, ou, simplesmente, que cada obediência contém uma desobediência que não pode conter”, resume Holloway, que nas páginas e teses de Fissurar o capitalismo propõe basicamente que “lutemos a partir do particular, lutemos onde estamos, aqui e agora. Criemos espaços ou momentos de alteridade, espaços ou momentos que caminham na direção oposta, que não se adequam. Façamos aberturas na nossa própria criação reiterada do capitalismo. Criemos fissuras e deixemos que se expandam, deixemos que se multipliquem, deixemos que ressoem, que fluam juntas”. Ao final, fica o que gerou a obra: perguntas. Caminhemos. F
*Júlio Delmanto é jornalista e mestre em História Social pela USP
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