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Os manifestantes que derrubaram Mubarak, pedindo democracia, agora celebram um coup d’état militar que abole a democracia. O que está havendo?
Por Slavoj Žižek, em Blog da Boitempo
[caption id="attachment_29738" align="alignleft" width="300"] Slavoj Žižek (Foto: http://zizek.weebly.com/)[/caption]
Com o golpe militar no Egito – em junho de 2013, o Exército, apoiado pelo núcleo duro dos manifestantes que derrubaram o regime de Mubarak dois anos atrás, depôs o presidente democraticamente eleito e o governo –, é como se o círculo de algum modo houvesse se fechado: os manifestantes que derrubaram Mubarak, pedindo democracia, agora celebram um coup d’état militar que abole a democracia. O que está havendo?
A leitura prevalecente, sintonizada com a ideologia dominante, foi proposta, entre outros, por (Francis) Fukuyama: o movimento de protesto que derrubou Mubarak foi, mais do que tudo, a revolta da classe média educada, enquanto os trabalhadores pobres e agricultores ficaram reduzidos ao papel de observadores (simpáticos), mas depois que os portões da democracia foram abertos, a Irmandade Muçulmana, cuja base social é a maioria pobre, venceu eleições democráticas e formou um governo dominado por fundamentalistas muçulmanos, de modo que, compreensivelmente, o núcleo original de manifestantes seculares se voltou contra eles e se mostrou disposto a endossar até um golpe militar para derrubá-los.
Uma visão simplificada como essa ignora uma característica chave do movimento de protesto: a explosão de organizações heterogêneas (de estudantes, mulheres, trabalhadores, etc.) nas quais a sociedade civil começou a articular seus interesses fora do escopo da instituições estatais e religiosas. Esta vasta rede de novas formas sociais, muito mais do que a deposição de Mubarak, foi a principal conquista da Primavera Árabe; trata-se de um processo em curso, independente de grandes mudanças políticas como o golpe do Exército contra o governo da Irmandade Muçulmana. O antagonismo entre o Exército e a Irmandade não é, portanto, o antagonismo final da sociedade egípcia. Longe de ser um mediador benevolente neutro e um esteio da estabilidade social, o Exército defende e encarna um determinado programa social e político – em termos gerais, integração no mercado global, posição política pró-Ocidente, capitalismo autoritário; como tal, a intervenção do Exército é necessária na medida em que a maioria não está preparada para aceitar o capitalismo “democraticamente”. Ao contrário da visão secular do Exército, a Irmandade Muçulmana se empenha em impor um regime religioso fundamentalista – essas duas visões ideológicas excluem o que os manifestantes defendem.
Os acontecimentos em curso no Egito oferecem ainda um outro exemplo da dinâmica básica das revoltas sociais que consiste das duas etapas principais tradicionalmente designadas por pares como “1789-1793” (no caso da Revolução Francesa) ou “fevereiro-outubro” (no caso da Revolução Russa). A primeira etapa, o que (Alain) Badiou chamou recentemente de “renascimento da história”, culmina na sublevação popular contra uma figura odiada do poder (Mubarak, no caso do Egito, ou o xá no caso do Irã três décadas atrás) – pessoas de todas as camadas sociais se afirmam como um agente coletivo contra o sistema de poder que perde rapidamente sua legitimidade, e por todo o mundo podemos acompanhar pelas telas de TV esses momentos mágicos de unidade extática quando centenas de milhares de pessoas se reúnem em praças públicas, permanecendo ali por dias e prometendo não arredar pé até o tirano renunciar. Tais momentos simbolizam a unidade imaginária no que ela tem de mais sublime: todas as diferenças, todos os conflitos de interesses são momentaneamente esquecidos, a sociedade inteira parece unida em sua oposição ao tirano odiado. No fim dos anos 1980, algo parecido ocorreu na desintegração dos regimes comunistas em que todos os grupo estavam unidos em sua rejeição ao regime do Partido Comunista, embora por razões distintas e, em última análise, incompatíveis até: pessoas religiosas o odiavam por seu ateísmo, liberais seculares por seu dogmatismo ideológico, trabalhadores comuns por viverem na pobreza (e com frequência carecerem de provisões básicas como sabão, eletricidade ou carne), capitalistas em potencial pelas inibições à propriedade privada, intelectuais pela falta de liberdades pessoais, nacionalistas pela traição às raízes étnicas em nome do internacionalismo proletário, cosmopolitas pelas fronteiras fechadas e a falta de contato intelectual com outros países, a juventude pela rejeição do regime à cultura pop ocidental, artistas pelas limitações impostas à expressão criativa, etc. Entretanto, tão logo o velho regime se desintegra, a unidade imaginária é rapidamente quebrada e novos conflitos (ou melhor, velhos, mas sufocados) ressurgem com grande força: fundamentalistas religiosos e nacionalistas contra modernizadores seculares, um grupo étnico contra outro, anticomunistas raivosos contra suspeitos de simpatias com o antigo regime, etc. Esta série de antagonismos tende a se purificar em um antagonismo político principal, na maioria dos casos ao longo do eixo de tradicionalistas religiosos contra capitalistas liberais democráticos, multiculturais, seculares pró-ocidentais, embora o conteúdo desse antagonismo dominante possa variar (na Turquia, os islamistas são mais pela inclusão da Turquia no capitalismo global do que os kemalistas seculares nacionalistas; ex-comunistas podem se aliar a “progressistas” seculares – como na Hungria ou Polônia –ou a nacionalistas religiosos – como na Rússia– e assim por diante.
A questão a ser levantada aqui é a seguinte: será esse o verdadeiro antagonismo básico? Pode-se ver imediatamente o que está faltando aqui: a alternativa radical de esquerda. Será que isso simplesmente reflete o fato de que, em 1989, com a desintegração do comunismo, os dois séculos de “paradigma” esquerdista terminaram, que esse “paradigma” exauriu seus potenciais, a apesar das tentativas canhestras recentes de ressuscitá-lo (na América Latina, Nepal)? Que hoje, o comunismo simplesmente não é mais uma ideia que divide? Tentemos esclarecer esse ponto chave por um paralelo talvez inesperado com a passagem bíblica de Paulo sobre Lei e amor. Em ambos os casos (na Lei e no amor), estamos lidando com divisão, com um “tema dividido”; entretanto, a modalidade da divisão é completamente diferente. O tema da Lei é “descentrado” no mesmo sentido em que é apanhado no autodestrutivo círculo vicioso de pecado e Lei em que um polo engendra seu oposto. Paulo oferece a descrição insuperável desse entrelaçamento em Romanos 7:
“Sabemos que a Lei é espiritual; mas eu sou carnal, vendido como escravo ao pecado. Realmente não consigo entender o que faço; pois não pratico o que quero, mas faço o que detesto. Ora, se faço o que não quero, eu reconheço que a Lei é boa. Na realidade, não sou mais eu que pratico a ação, mas o pecado que habita em mim. Eu sei que o bem não mora em mim, isto é, na minha carne. Pois o querer o bem está ao meu alcance, não porém o praticá-lo. Com efeito, não faço o bem que eu quero, mas pratico o mal que não quero. Ora, se eu faço o que não quero, já não sou eu que estou agindo, e sim o pecado que habita em mim. Verifico pois esta lei: quando eu quero fazer o bem, é o mal que se me apresenta. Eu me comprazo na lei de Deus segundo o homem interior; mas percebo outra lei em meus membros, que peleja contra a lei da minha razão e que me acorrenta à lei do pecado que existe em meus membros. Ai de mim.”
Assim, não se trata apenas de que estou dilacerado entre os dois opostos, lei e pecado; o problema é que não posso nem sequer distingui-los claramente: quero seguir a lei, e termino no pecado. Esse círculo vicioso é (não tanto superado como) quebrado, a pessoa escapa dele com a experiência do amor, mais precisamente, com a experiência da distância radical que separa o amor da Lei. Reside aí a diferença radical entre o par lei/pecado e o par lei/amor. A distância que separa lei e pecado não é uma diferença real: sua verdade é sua mútua implicação ou confusão – a lei gera o pecado e se alimenta dele. É somente com o par lei/amor que atingimos a diferença real: esses dois momentos são radicalmente separados, não são “mediados”, um não é a forma de aparecimento de seu oposto. Portanto, é errado perguntar: “Estaremos condenados para sempre à divisão entre Lei e amor? E à síntese entre Lei e amor?” A divisão entre Lei e pecado é de uma natureza radicalmente diferente da divisão entre Lei e amor: em vez do círculo vicioso do reforço mútuo, temos uma distinção de dois domínios diferentes que simplesmente não se movem no mesmo nível. É por isso que, quando ficamos plenamente conscientes da dimensão do amor em sua diferença radical da Lei, o amor de certo modo já venceu, pois essa diferença só é visível quando já se habita em amor, do ponto de vista do amor.
O motivo dessa excursão teológica deve estar claro agora: a luta incessante entre permissividade liberal e intolerância fundamentalista funciona de maneira homóloga à divisão entre Lei e pecado – em ambos os casos, os dois polos implicam e se fortalecem um ao outro, seu antagonismo é constitutivo de sua condição. Por outro lado, a distinção entre Lei e amor é homóloga à distinção entre a totalidade do universo capitalista global existente (cujo antagonismo político imanente é entre democracia liberal e fundamentalismo) e a ideia emancipatória radical (comunista) de sair dele.
A diferença entre o liberalismo e a esquerda radical é que, embora se refiram aos mesmos três elementos (centro liberal, direita populista, esquerda radical), eles os localizam numa topologia diferente: para o centro liberal, esquerda radical e direita são as duas formas de aparecimento do mesmo excesso “totalitário”, enquanto para a esquerda, a única alternativa verdadeira é a existente entre ela e a corrente liberal dominante com a direita “radical” populista como nada mais que o sintoma dessa incapacidade do liberalismo de lidar com a ameaça esquerdista.
Quando ouvimos hoje um político ou um ideólogo nos oferecendo uma escolha entre liberdade liberal e opressão fundamentalista, e fazendo triunfalmente uma pergunta (puramente retórica) “Você quer que as mulheres sejam excluídas da vida pública, e privadas de seus direitos elementares? Quer que cada crítico ou zombador da religião seja punido com a morte?” o que deve nos fazer desconfiar é própria auto-evidência da resposta: quem teria desejado isso? O problema é que esse universalismo liberal simplista há muito que perdeu a sua inocência.
É por isso que, para um verdadeiro esquerdista, o conflito entre permissividade liberal e fundamentalismo é, em última análise, um falso conflito – um círculo vicioso de dois polos gerando e se superpondo um ao outro.
É preciso dar aqui um passo atrás hegeliano e pôr em questão a medida mesma da qual o fundamentalismo emerge em todo seu horror. O que Max Horkheimer disse sobre fascismo e capitalismo (os que não querem falar criticamente sobre capitalismo também deveriam silenciar sobre fascismo) também deveria ser aplicado ao fundamentalismo atual: os que não quiserem falar (criticamente) de democracia liberal e seus nobres princípios também deveriam se calar sobre o fundamentalismo religioso.
Como devemos entender essa reversão de um ímpeto emancipatório em populismo fundamentalista? No marxismo autêntico, a totalidade não é um ideal, mas uma noção crítica – localizar um fenômeno em sua totalidade não significa ver a harmonia oculta do todo, mas incluir em um sistema todos os seus “sintomas”, antagonismos, inconsistências como suas partes integrantes.
Tomarei um exemplo contemporâneo. Nesse sentido, liberalismo e fundamentalismo formam uma “totalidade”: a oposição de liberalismo e fundamentalismo é estruturada de forma que o próprio liberalismo gere seu oposto. O que dizer então dos valores nucleares do liberalismo: liberdade, igualdade, etc.? O paradoxo é que o liberalismo em si não é forte o suficiente para salvá-lo – isto é, seu próprio núcleo – do massacre fundamentalista. Por quê? O problema do liberalismo é que ele não pode se manter sozinho: há alguma coisa faltando no edifício liberal, o liberalismo é, em sua própria noção, “parasita”, dependendo de uma rede pressuposta de valores comunais que ele próprio está solapando com seu desenvolvimento. O fundamentalismo é uma reação falsa, mistificadora, é claro – da falha real do liberalismo, e é por isso que ele é repetidamente gerado pelo liberalismo. Deixado a si, o liberalismo vai se corroer lentamente – a única coisa que pode salvar seu núcleo é uma esquerda renovada. Ou, colocando nos termos bem conhecidos da Primavera de Praga de 1968, para seu legado principal sobreviver, o liberalismo precisa da ajuda fraternal da esquerda radical.
Reagindo à conhecida caracterização de marxismo como “o islamismo do século 20”, secularizando o fanatismo abstrato do Islã, Jean-Pierre Taguieff escreveu que o Islã está se revelando “o marxismo do século 21”, prolongando, após o declínio do comunismo, seu violento anticapitalismo.
Entretanto, as vicissitudes recentes do fundamentalismo muçulmano não confirmariam o antigo insight de Walter Benjamin de que “toda ascensão do fascismo dá testemunho de uma revolução fracassada”? A ascensão do fascismo é o fracasso da esquerda, mas simultaneamente uma prova de que houve um potencial revolucionário, uma insatisfação, que a esquerda não foi capaz de mobilizar. E será que o mesmo vale para o chamado “islamo-fascismo” de hoje? A ascensão do islamismo radical não será exatamente correlata ao desaparecimento da esquerda secular em países muçulmanos?
Quando o Afeganistão é retratado como o país fundamentalista islâmico mais extremo, quem ainda se lembra de que há 40 anos ele era um país com uma forte tradição secular, com um partido comunista poderoso que tomou o poder independentemente da União Soviética? Mesmo no caso de movimentos claramente fundamentalistas, deve-se tomar cuidado para não esquecer o componente social. O Taleban é regularmente representado como um grupo islamico fundamentalista impondo seu regime pelo terror – entretanto, quando, na primavera de 2009, eles assumiram o controle do vale de Swat, no Paquistão, o jornal The New York Times reportou que eles haviam arquitetado uma “revolta de classe que explora as fissuras profundas entre um pequeno grupo de ricos donos de terras e seus arrendatários sem terra”. O viés ideológico no artigo do NYT é mesmo assim discernível na maneira como ele fala da “habilidade (do Taleban) para explorar as divisões de classe”, como se a “verdadeira” agenda do Taleban estivesse em outro lugar – no fundamentalismo religioso – e eles estivessem meramente “aproveitando-se” do sofrimento dos agricultores pobres sem terra. A isso, deve-se simplesmente acrescentar duas coisas. Primeiro, semelhante distinção entre a “verdadeira” agenda e manipulação instrumental é externamente imposta ao Taleban: como se os próprios agricultores pobres sem terra não experimentassem seu sofrimento em termos “religiosos fundamentalistas”! Segundo, se, por “aproveitar-se” desse sofrimento dos agricultores, o Taleban está “provocando alarme sobre os riscos para o Paquistão, que continua sendo em grande parte feudal”, o que impede democratas liberais do Paquistão, e também dos Estados Unidos, de igualmente “se aproveitarem” desse sofrimento e tentarem ajudar os agricultores sem terra? A triste implicação do fato de que essa questão óbvia não foi levantada na reportagem do NYT é que as forças feudais no Paquistão são o “aliado natural” da democracia liberal…
Isso nos traz à verdadeira e assustadora lição das revoltas na Tunísia e no Egito: se as forças liberais moderadas continuarem a ignorar a esquerda, elas gerarão uma onda fundamentalista intransponível. Para o legado liberal principal sobreviver, os liberais precisam de uma ajuda fraternal da esquerda radical.
Embora (quase) todos apoiaram entusiasticamente essas explosões democráticas, há uma luta oculta pela sua apropriação em curso, os círculos oficiais e maioria da mídia no Ocidente as celebram como a mesma coisa que as revoluções de veludo “pró-democracia” no Leste Europeu: um anseio pela democracia liberal ocidental, um desejo de se tornar como o Ocidente. É por isso que surge uma inquietação quando se vê que há uma outra dimensão em ação nos protestos por lá, a dimensão geralmente referida como a demanda por justiça social. Essa luta pela reapropriação não é apenas uma questão de interpretação, e tem consequências práticas cruciais. Não deveríamos ficar excessivamente fascinados pelos momentos sublimes de unidade nacional – a pergunta chave é: o que vem em seguida? Como essa explosão emancipadora se traduzirá em uma nova ordem social?
Como se observou acima, nós testemunhamos nas últimas décadas toda uma série de explosões populares emancipatórias que foram reabsorvidas pela ordem capitalista global, ou na sua forma liberal (da África do Sul às Filipinas) ou em sua forma fundamentalista (Irã). Não deveríamos esquecer que nenhum dos países árabes onde ocorrem levantes populares é formalmente democrático; todos são mais ou menos autoritários, de modo que a reivindicação de justiça social e econômica é espontaneamente integrada na reivindicação por democracia – como se a pobreza fosse o resultado da cobiça e da corrupção dos ocupantes do poder, de modo que bastaria se livrar deles. O que ocorre então é que obtemos democracia, mas a pobreza permanece. O que fazer então?
Isso nos traz de volta à questão básica: a unidade extática do povo na Praça Tahrir teria sido apenas uma ilusão imaginária impiedosamente desfeita na sequência? Será que os acontecimentos no Egito não confirmam a afirmação de Hegel de que quando um movimento político vence, o preço da vitória é a sua cisão em facções antagônicas? A unidade anti-Mubarak foi, portanto, uma ficção ocultando o verdadeiro antagonismo subjacente entre modernizadores seculares pró-Ocidente, membros da crescente classe média, e fundamentalistas islâmicos com o apoio, sobretudo, das classes inferiores – o que ocorre então no Egito é luta de classes com uma distorção.
Mas, de novo, isso será tudo? Lembrem a noção de revolução de Walter Benjamin como redenção pela repetição do passado: a propósito da Revolução Francesa, a tarefa de uma verdadeira historiografia marxista não é descrever os eventos da maneira como eles realmente ocorreram; é explicar como esses eventos geraram as ilusões ideológicas que os acompanharam; a tarefa é antes desenterrar a potencialidade oculta (os potenciais emancipatórios utópicos) que foram traídos na realidade da revolução e em seu desfecho final (a ascensão do capitalismo de mercado utilitarista). A intenção de Marx não é principalmente zombar das esperanças selvagens do entusiasmo revolucionário dos jacobinos, assinalar como sua retórica emancipatória elevada era apenas um meio usado pela “astúcia da razão” histórica para estabelecer a realidade do capitalismo comercial vulgar; é explicar como esses potenciais emancipatórios radicais continuam a “insistir” como uma espécie de espectro histórico e a assombrar a memória revolucionária, demandando sua decretação, para que a revolução proletária posterior também redima (despedace) todos esses fantasmas do passado.
E nós deveríamos aplicar essa lição também aos acontecimentos egípcios. Em seuConflito das faculdades escrito em meados dos anos 1790, Immanuel Kant aborda uma questão simples, mas difícil: existirá um verdadeiro progresso em história? (Ele se referia a um progresso ético na liberdade, e não apenas ao desenvolvimento material). Kant admitiu que a história real é confusa e não permite provas claras: pensem em como o século 20 trouxe democracia e bem-estar sem precedentes, mas também o Holocausto e o Gulag… Mas ele concluiu que, embora o progresso não pudesse ser comprovado, podemos discernir sinais que indicam que ele é possível. Kant interpretou a Revolução Francesa como um sinal desses que apontava para a possibilidade de liberdade: o até então impensável acontecera, um povo inteiro afirmara destemidamente sua liberdade e igualdade. Para Kant, ainda mais importante que a – amiúde sangrenta– realidade do que se passou nas ruas de Paris foi o entusiasmo que os eventos na França provocaram em observadores simpáticos por toda a Europa (mas também no Haiti!):
“A Revolução recente de um povo que é espiritualmente rico pode perfeitamente tanto fracassar como vencer, acumular misérias e atrocidades, ela mesmo assim desperta no coração de todos os espectadores (que não estão pessoalmente enredados nela) uma tomada de partido segundo desejos que se igualam em entusiasmo e que, como sua própria expressão não é sem perigo, só pode ter sido causada por uma disposição moral dentro da raça humana.”
Palavras como essas não se encaixam perfeitamente ao levante egípcio contra o regime Mubarak? Sejam quais forem as nossas dúvidas, medos e compromissos, por esse instante de entusiasmo cada um de nós foi livre e participante na liberdade universal da humanidade. Todo o ceticismo exibido a portas fechadas mesmo por muitos progressistas interessados se mostrou errado. Não se pode deixar de notar a natureza “milagrosa” dos acontecimentos no Egito: houve alguma coisa que poucos previam contrariando as opiniões de especialistas, como se o levante não fosse um simples resultado de causas sociais, mas da intervenção de uma agência externa na história, a agência que podemos chamar, ao modo platônico, de a Ideia eterna de liberdade, justiça e dignidade. O levante foi universal: foi imediatamente possível para todos nós mundo afora nos identificarmos com ele, reconhecer do que se tratava sem qualquer necessidade de uma análise cultural das características específicas da sociedade egípcia. O momento mais sublime ocorreu quando muçulmanos e coptas se envolveram numa oração comum na Praça Tahrir, entoando “Nós somos um!” e com isso fornecendo a melhor resposta para a violência religiosa sectária. Aqueles neoconservadores que criticam o multiculturalismo em nome dos valores universais de liberdade e democracia tiveram aqui sua hora da verdade: vocês querem liberdade universal e democracia? É isso que o povo pede no Egito, então por que vocês estão tão pouco à vontade? Será porque os manifestantes no Egito mencionaram na mesma série que liberdade e dignidade, também justiça social e econômica, e não apenas a liberdade de mercado?
É verdade, pois, que há algo de uma unidade imaginária no primeiro clímax extático da revolta quando todos os grupos particulares se uniram na rejeição do tirano odiado. Entretanto, há mais nessa unidade do que uma ilusão ideológica imaginária – toda revolta radical contém, por definição, uma dimensão comunista, um sonho de solidariedade e justiça igualitária que vai além da esfera estreita da política para economia, vida privada, cultura, em suma, permeia todo o edifício social. Há um movimento apropriadamente dialético de inversões em ação aqui. Na revolta inicial, temos a unidade abrangente do povo, e aqui a unidade já coincide com divisão (a divisão entre ao povo e os que ainda trabalham para o tirano). Somente quando o tirano é derrubado começa o verdadeiro trabalho, o trabalho da transformação social radical. Nesse período após a queda do tirano, todos são formalmente pela revolução, mas o esforços dos que querem “revolução sem revolução” (Robespierre) é convencer pessoas de que a revolução acabou, que, uma vez deposto o tirano, a vida pode voltar ao normal (é o que o Exército do Egito defende hoje).
Nesse momento, quando todos são pela revolução, é preciso insistir na dura divisão entre os que realmente querem uma revolução e os que querem uma “revolução sem revolução”. Henry Louis Taylor notou sobre Martin Luther King: “Todos conhecem – até o menor garotinho conhece – Martin Luther King, sabe dizer que seu momento mais famoso foi aquele discurso ‘Eu tenho um sonho’. Ninguém consegue ir além de uma frase. Tudo que sabemos é que esse sujeito tinha um sonho. Não sabemos qual era o sonho.” Luther King percorreu um longo caminho das multidões que o aclamavam na Marcha sobre Washington de 1963, quando ele foi apresentado como “o líder moral de nossa nação”: ele abordou as questões de pobreza e militarismo porque as considerava vitais “para tornar a igualdade uma coisa real e não apenas a irmandade racial, mas igualdade de fato”. Para pôr em termos de Badiou, Luther King seguiu o “axioma da igualdade” muito além do tópico da segregação racial, e essa prontidão para prosseguir o trabalho faz dele um verdadeiro combatente pela emancipação. É isso que Badiou quer dizer com sua declaração de que a ideia verdadeira é algo que divide, que nos permite traçar uma linha divisória: numa ideia verdadeira, universalidade e divisão são dois lados de uma mesma moeda.
É por isso que toda revolução precisa ser repetida: é somente depois que a primeira unidade entusiástica se desintegra que a verdadeira universalidade pode ser formulada, uma universalidade não mais sustentada por ilusões imaginárias; é somente depois que a primeira unidade extática do povo se desfaz que o verdadeiro trabalho começa, o trabalho duro de assumir todas as implicações da luta por igualitarismo e sociedade justa: não basta se livrar do tirano, a sociedade que deu origem ao tirano precisa ser completamente transformada. Somente os que estão prontos para se engajar nesse trabalho duro permanecem fiéis ao núcleo radical da unidade entusiástica inicial. Esse trabalho duro de fidelidade é a obra de dividir, de traçar a linha que separa a ideia de comunismo de ilusões imaginárias sobre solidariedade e unidade que permanecem dentro das coordenadas ideológicas da ordem existente. Esse trabalho paciente de esclarecimento é o trabalho revolucionário propriamente dito; embora, para seus opositores, esse trabalho seja uma tentativa de “manipular” pessoas, de seduzir manifestantes bem intencionados para uma radicalização violenta perigosa imputando-lhes o que eles nunca realmente quiseram, para um revolucionário propriamente dito esse trabalho nada mais é que o trabalho de tirar as consequências e implicações do evento extático original: vocês querem justiça e solidariedade de verdade? Eis o que terão de fazer, e mais, e mais. Não espanta que momentos revolucionários genuínos sejam tão raros: nenhuma teleologia os garante, eles dependem da existência de um agente político capaz de agarrar uma abertura (contingente, imprevisível).