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São inúmeras as iniciativas surgidas dos Indignados da Espanha, e o modo de pensar e se relacionar com a política no país já começa a se transformar em todos os níveis
Por Bernardo Gutiérrez
Esta matéria está na edição 124 da revista Fórum. Nas bancas ou compre aqui
Em tempos de revoltas, nada como olhar para as revoluções que estão acontecendo no mundo. As últimas semanas vividas pelo Brasil têm pegado muitas pessoas de surpresa. Em que espelho deve se olhar o Brasil para entender a radical novidade dos novos protestos? A comparação com a Primavera Árabe, que derrubou algumas ditaduras, é habitual. A semelhança com as revoltas da Turquia, a origem urbana, é nítida. A analogia com o movimento #YoSoy132 do México, que das redes às ruas questionou frontalmente o sistema político-econômico do país, é inspiradora. Mas se tem uma REDEvolução no planeta que possa servir de caso de estudo essa é a revolução do movimento 15M da Espanha, mais conhecido como os Indignados.
Dois anos depois da ocupação das principais praças do país, a mídia brasileira começou a falar de novo do esquecido 15M-Indignados. Mas a leitura costuma ser superficial e a conclusão, simplista: o Partido Popular (direita) ganhou as eleições em 2011. Pronto. Ninguém fala que quem perdeu as eleições (5 milhões de votos a menos) foi o Partido Socialista Obrero Español (Psoe). E que quem ganhou as eleições foi essa coalizão de abstenção, votos nulos e brancos (quase 40% do total de votos). Uma leitura macropolítica serve para explicar o que tem acontecido na Espanha nos últimos dois anos? Serve para explicar o último mês do Brasil? Definitivamente não.
O 15M está transformando a Espanha inteira, com uma luta constante, de baixo para cima, descentralizada, agregadora. Sem ter conseguido sucessos macropolíticos ou macroeconômicos, os Indignados espanhóis estão hackeando o sistema aos poucos. Estão hackeando as cidades, o sistema jurídico, a mídia. E têm conseguido duas coisas vitais: um impacto cognitivo que tem colocado 90% do país contra a direita (último estudo do Centro de Estudos Sociológicos, o CIS). E tem conseguido ressuscitar os velhos movimentos de esquerda. Nunca houvera tantos movimentos sociais na Espanha desde a luta contra a ditadura de Franco. Porém, os velhos movimentos têm entendido que a gramática social é outra: é horizontal, sem lideranças, em rede. E hoje já lutam juntos, nas redes e nas ruas, sem tantos conflitos entre apartidários e partidários.
Naquela Acampada Sol de maio de 2011 – que ocupou a mítica Puerta del Sol de Madri – não havia apenas pessoas protestando diante do colapso do sistema. Naquelas acampadas estava o novo protótipo de mundo. E isso estava nos detalhes. Em suas creches, em suas bibliotecas abertas, em suas hortas, em seus streamings, em seus mecanismos analógicos e digitais para propor mudanças.
O método 15M
[caption id="attachment_28714" align="alignright" width="420"] Postal do fotomovimiento.org[/caption]
O que esse movimento tem conseguido? O que o Brasil pode aprender com eles? E a recíproca? Em primeiro lugar, as acampadas de 2011 surpreenderam a velha política com um retorno às assembleias. Assembleias não hierárquicas, abertas, das quais qualquer pessoa podia participar. Assembleias políticas celebradas no espaço público. Assembleias que se converteram em método e hardware para articular a vida das cidades. Das acampadas nasceu uma estratégia da distribuição geográfica e temática. Cada bairro já tem sua assembleia popular no espaço público. Assembleias políticas conectadas entre si, que usam ferramentas digitais para unir redes e ruas. Assembleias que têm ressuscitado a vida política dos bairros, associações de vizinhos, centros sociais. O método participativo – aberto, com atas, em tempo real, transparente – tem cozinhado um imaginário de democracia em tempo real e distribuída pelo território. Tão bem está sendo feito, que o governo da Andaluzia – uma importante região de oito milhões de habitantes – tem encarregado aos membros do movimento 15M a redação do projeto da Lei Andaluza de Participação, que está a caminho de ser a mais avançada democracia participativa do planeta. As revoltas espanholas, como as brasileiras, têm um ponto em comum: o desejo de participar na vida política do país.
Em segundo lugar, o 15M está cozinhando uma verdadeira revolução urbana. As acampadas supunham uma dupla mutação do espaço urbano. Primeira: a passagem de espaço público a espaço comum. As praças, fustigadas pela privatização de seu uso e por excessivas proibições, renasceram como um comum urbano. Os cidadãos em rede, sem hierarquias nem líderes, organizaram um espaço urbano peer-to-peer (de pessoa a pessoa), de praças-nós conectadas entre si... A segunda mutação: o espaço híbrido. Não eram praças de cimento. Eram praças feitas de átomos e bits. A vida analógica estava intimamente entrelaçada com a digital. Durante a Acampada Sol, a ferramenta Twitômetro conectava redes e praças, espaços virtuais e físicos. A campanha #AbreTuWIFI, que incentivava as pessoas a abrirem o sinal de wi-fi dos apartamentos durante as manifestações, serviu de inspiração aos protestos de São Paulo.
Um grande sucesso do movimento 15M é o espaço Campo de Cebada, de Madri, que ganhou o prestigioso prêmio Golden Nica, do festival Ars Electrónica, na categoria de Comunidades Digitais. É um espaço ao ar livre, autogovernado, que usa tecnologia livre, tem aulas gratuitas, festivais culturais e conseguiu o apoio da prefeitura madrilenha. Só a cidade de Madri tem cerca de 40 novos espaços autogovernados: prédios, fábricas ocupadas, espaços abertos, praças... A diferença em relação às ocupações clássicas é que o 15M está dialogando com instituições e legitimando as práticas de baixo para cima, de forma legal e até com recursos públicos. O 15M está usando o termo Extituição, em contraponto à instituição, no qual o “dentro” e o “fora” não existem. No qual o vertical e o burocrático estão sendo substituídos por práticas líquidas e dinâmicas.
Por outro lado, o 15M defende o acesso à educação pública com alguns detalhes inovadores, que têm a ver com a questão urbana. A microutopia da Cidade da aprendizagem, o ensino impregnando a urbe, sem muros, sem a hierarquia do passado, está em marcha. No último 9 de março, as universidades madrilenhas tomaram a cidade durante a campanha #UniEnLaCalle (Universidade na rua), com 575 praças e pontos da cidade repletos de aulas públicas.
Mídia e comunicação
Se tem um campo onde o Brasil deveria estudar com detalhe o exemplo dos Indignados, esse é o comunicativo. Poucos países do mundo vivem na prática o conceito do sociólogo Manuel Castells, da “autocomunicação de massas”, como a Espanha. Diante do olhar de mídias de massa encerradas em seus clichês e limitações corporativas, o 15M criou um sistema de autocomunicação de massas sem paralelo na história. Instaurou a transparência como método: streaming de assembleias, atas/documentos abertos das reuniões. Uma transparência que é ação e comunicação ao mesmo tempo. O 15M fez os melhores streamings das manifestações, desde o início. A TV envelheceu um século em 2011, diante dos streamings cidadãos de People Witness o Toma La Tele.
As fotografias de agências (uma boa parte) perderam brilho diante dos canhonaços poéticos do FotoMovimiento, Audiovisol ou Agora Sol Radio. O Periódico 15M (impresso) completa a inovação autocomunicativa das multidões inteligentes. Alguns novos meios, como ElDiario.es, La Marea, Reset Project, Revista Números Rojos ou Café amb Llet nasceram empapados da microutopia comunicativa do 15M. E todos têm licenças Creative Commons! O ódio à mídia que o Brasil vive neste momento tem uma inspiração clara na Espanha em rede.
A cultura também tem vivido uma autêntica revolução graças ao 15M. A cultura copyleft – fixada como resistência ao copyright – é uma inspiração direta para o movimento. O Desejo Copyleft – que legitima a cópia e o reúso do conteúdo – alastrou-se nos meses anteriores ao 15M, num movimento contra a Ley Sinde (que procurava estabelecer controle sobre a internet). E converteu-se no processo vertebral da #GlobalRevolution. Depois da explosão do 15M no 2011, nasceu a Fundación Robo, diluindo o conceito de autoria individual, lançando canções assinadas com a identidade coletiva Robo. Nasceu o irmão literário de Robo, o projeto Asalto, literatura coletiva, pirulitas poéticas remixadas em intensos Asaltos coletivos. E a VocesConFutura, os gritos gráficos de criadores anônimos. E a Bookcamping.cc, uma biblioteca colaborativa de livros livres com estantes coletivas. Com suas playlists de títulos e suas visitas guiadas, a Bookcamping.cc é um excelente exemplo da nova cultura elaborada em rede e orientada para o bem comum.
[caption id="attachment_28715" align="alignleft" width="420"] Postal do fotomovimiento.org[/caption]
Talvez um dos maiores sucessos da explosão do 15M tenha sido a criação de um protótipo participativo sensacional, numa sociedade que ficou, durante os anos noventa e a primeira década do século XXI, dormente sob o “progresso” e o bem-estar. A criação de novos espaços de diálogo político nas praças deixou fora do jogo as instituições. O projeto/processo Parlamento a la Calle (Parlamento na rua), por exemplo, é um verdadeiro xeque à democracia estática, que só dialoga nas câmaras legislativas. Além disso, as assembleias nas praças consolidaram alguns mecanismos concretos. O desejo de participar é a essência da ferramenta Propongo (Proponho), uma plataforma que coleta ideias políticas e habilita a votação coletiva, o que inspirou o Gabinete Digital do Governo do Rio Grande do Sul.
Já a Assemblea Virtual (Assembleia Virtual) foi um verdadeiro laboratório de participação tecno-política. Outras iniciativas como Ahora tu decides (Agora você decide) – que incentiva referendos digitais sem mediação do Estado –, as Urnas indignadas – colocadas nas ruas em novembro passado – ou as mesas de consulta sobre a saúde da Marea Blanca têm um impacto simbólico poderoso, que podem forçar mudanças nos mecanismos participativos do sistema. Inclusive, a iniciativa Graba tu pleno (Grave sua assembleia), que estimula os cidadãos a gravar os encontros políticos para garantir a transparência, poderia ser considerada também um influente protótipo do 15M.
Porém, a mais inovadora talvez seja a Demo4Punto0 (Demo4ponto0), uma iniciativa híbrida de participação. É um mecanismo que permite a todos os cidadãos participar digitalmente da votação de qualquer lei. Calculando a presença de cada partido no parlamento, o mecanismo atribui proporcionalmente uma cadeira para cada 150 mil pessoas que participem.
Por outro lado, o 15M consagrou a “multidão” diante da “massa”. Diante do “homem massa” de que falava Ortega y Gasset, está se configurando o “homem multidão” (Toni Negri, Howard Rheingold), que conforma um corpo maior, autônomo, que supera a soma de suas partes. As multidões inteligentes do 15M deram como nunca visibilidade ao poder do conceito swarm (enxame) (Kevin Kelly/Steve Johnson), o da inteligência coletiva (James Surowiecki, Pierre Levy). Movimentos como Stop Desahucios (Parem os despejos), que tentam evitar despejos coletivamente, ações como os Escraches (escrachos), que expõem a público políticos e banqueiros, ou campanhas como Toque a Bankia são a prova empírica do poder de enxame.
A inteligência coletiva nutre a 15Mpedia (uma wiki do movimento ) ou o Glosario Abierto del Vivero de Iniciativas Ciudadanas (Glossário aberto do viveiro de iniciativas cidadãs). A inteligência coletiva alimenta o mundo paralelo, sustentável e alternativo, mapeado no projeto MeCambio.Net. O despertar coletivo dos cidadãos brasileiros tem um lado profundamente inspirador, que pode caminhar rumo à autogovernada, colaborativa e hiperconectada sociedade espanhola da era 15M.
Advogados em rede, advogados hackers
O 15M atravessou um dos pilares do Estado ocidental: o jurídico. A existência da Comisión Legal Sol, que nasceu na primeira noite da acampada em Madri, é uma mutação para o coletivo de uma profissão especialmente individualista. Na Espanha, alguns advogados já trabalhavam em rede havia alguns anos, compartilhando petições jurídicas e incentivando as licenças livres em sua documentação. O 15M multiplicou essa microutopia jurídica colaborativa, aberta e livre. Um exemplo são os métodos jurídicos modelados pelo Stop Desahucios e pela Plataforma de Afectados por la Hipoteca (PAH). A Operación Euríbor, elaborada, comunicada e lançada em rede, é outro espetacular exemplo da microutopia jurídica “made in 15M”. A Operación Euríbor tem colocado em xeque os principais bancos da Europa e tornou público o escândalo do Libor inglés que abalou o mundo.
O caso de Toma Parte é duplamente interessante. Trata-se de um coletivo de advogados em rede que trabalham anonimamente. E, ao mesmo tempo, é uma plataforma/ferramenta “desenvolvida para que nós cidadãos usemos nossos recursos para alcançar soluções”. Juristas fornecem o conhecimento necessário para encontrar a ação legal adequada. A documentação estará disponível sob licenças Creative Commons.
No entanto, a microutopia jurídica do 15M está marcada por uma ação concreta: 15Mparato. A campanha conseguiu reunir em menos 24 horas os 16 mil euros necessários para processar Rodrigo Rato (ex-diretor do FMI) por sua gestão suspeita à frente do Bankia. A cidadania em rede mostrou, na primeira ação jurídica com crowdfunding da história, que a elite político-econômica pode começar a tremer. “Acabou a impunidade. Na guerra dos de cima contra os de baixo, o medo mudou de time”, podemos ler no site 15Mparato. O Brasil conectado pode se espelhar na “guerrilla” jurídica do 15M contra as elites.
Revolução idosa
“Somos idosos, não temos medo.” Esse grito habitual do coletivo Yayoflautas desmantela qualquer clichê sobre o movimento 15M e os “jovens desempregados que saem às ruas”. Os Yayoflautas – os velhinhos dos Indignados – ocupam pacificamente a Bolsa em ações como #Labolsaolavida ou sequestram ludicamente ônibus para dar aulas de cidadania aos passageiros. Isso prova até que ponto o 15M está revolucionando todas as gerações do país. Esse ponto conecta com o que é, talvez, a maior revolução sociológica conseguida pelo 15M: o pós-sindicalismo em rede.
O fenômeno das Marés ciudadanas (Marés cidadãs) não está sendo suficientemente estudado pelos sociólogos ou antropólogos. A Marea Blanca (Maré Branca), que defende a saúde pública, a Marea Verde (Maré Verde), que luta pela educação pública, a Marea Azul (Maré Azul), defesa da gestão pública da água) ou a Marea Violeta (Maré Violeta), feminista, são uma mutação das mobilizações tradicionais convocadas por partidos políticos e sindicatos. O 15M modificou o código dos protestos. E por isso as Marés funcionam com horizontalidade, com trabalho em rede, sem hierarquias. A mobilização cria um novo imaginário (verde = educação) e ninguém comparece a uma manifestação com faixas sindicais ou de um partido, mesmo que pertençam a eles.
“As Marés são uma nova forma de sindicalismo?”, pergunta-se há alguns meses o site Madrilonia. Sem dúvida: as Marés são um pós-sindicalismo em rede que marca o início de uma nova era. No Brasil, onde os movimentos de esquerda já estão incorporados nos protestos, as Mareas espanholas podem ser uma referência. De fato, a militância de esquerda parece ter entendido rapidamente que a gramática social é outra, e que sem bandeira nem hierarquias, o esquerdista sempre será bem-vindo.
Para concluir, o 15M é um renascimento do internacionalismo operário do século XIX. Primeiro, o 15M, preâmbulo do movimento Occupy, expandiu suas redes por todo o mundo, ignorando os Estados-nações. Mitigou o nacionalismo exagerado que o sistema forja durante sua crise. Enquanto na Grécia cresce o ódio ao estrangeiro, nas ruas/redes da Espanha cresce a empatia. No meio da crise, um estudo da Fundación Bertelsmann revela que 89% dos espanhóis são a favor da migração (mais que o dobro do resto dos países da Europa). O 15M abraça a diferença. Protege seus imigrantes da polícia (vizinhos que expulsam a policia quando ela pede a documentação dos migrantes). Lança campanhas contra os Centros de Internamento para Estrangeiros (Cies). Funda as Brigadas de Vizinhança para Observação de Direitos Humanos. Até os médicos declararam-se objetores de consciência diante do corte de direitos e atendem imigrantes ilegais. O 15M está preparando um novo movimento internacionalista, que antecipa o futuro de um planeta conectado. Somos os 99%, gritam. Sonham com a República dos 99%.
O movimento tem criado um impacto subjetivo no país todo. E tudo aponta para uma mudança radical nas relações de poder nas prefeituras, regiões e no governo nacional nas eleições dos próximos anos. Até a monarquia está em perigo, rejeitada pela primeira vez pela grande maioria do país. O 15M pode ser uma bela inspiração para o novo Brasil indignado. Mas a recíproca também é verdadeira.
Os diferentes governos do Brasil já estão tendo mais vontade de diálogo que os governos espanhóis. Lá, um país com uma forte história anarquista e de autogoverno, a revolução surge de baixo para cima. Aqui, costuma ser mais de cima para baixo. O caminho pode ser uma mistura das duas fórmulas. A indignação, isso sim, será sempre uma fábrica de democracia. É o momento de continuar nas ruas. F
Bernardo Gutiérrez (@bernardosampa no Twitter), espanhol residente no Brasil, é jornalista, escritor e consultor de mídia e estratégias digitais. Fundador da rede de inovação Futura Media (FuturaMedia.net), sediada em São Paulo.
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