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Quando parecia que a tensão entre Chile e Peru, pela iminente decisão do Tribunal de Haia sobre uma disputa de limites marítimos, marcaria apenas a agenda internacional de ambos, aparece um novo jogador no cenário. Evo Morales apresenta, diante da mesma corte, uma demanda na qual pretende recuperar a saída boliviana para o mar
Por Victor Farinelli
Era uma tarde de segunda-feira, 28 de janeiro de 2013. Na reunião de encerramento da Cúpula da Comunidade de Estados Latino Americanos e Caribenhos (Celac), em Santiago, sem a presença de Dilma Rousseff, que abandonou o evento devido à tragédia de Santa Maria (RS), o presidente anfitrião, Sebastián Piñera, iniciou uma áspera discussão com seu colega boliviano Evo Morales.
Morales começou dizendo, a respeito do sucesso das novas instâncias de integração entre os países da região, que os presidentes deveriam aproveitar o momento propício de amizade pan-americana para resolver as pendências históricas e citou como exemplo, evidentemente, a questão da saída marítima que a Bolívia tenta recuperar há mais de um século, sem sucesso. Piñera respondeu duramente, dizendo que o Chile não cederá nem um milímetro de mar para os vizinhos do altiplano, e que exigia do colega que paresse “de chatear os demais participantes com temas bilaterais”.
[caption id="attachment_27777" align="alignright" width="374"] Evo Morales cobrou que os países da região deveriam resolver suas pendências históricas... (Joel Alvarez)[/caption]
O episódio teve certa repercussão internacional, mas não terminou aí. A reação intempestiva de Piñera levou Morales a tirar da manga uma cartada, que há tempos era citada por ele apenas em tom de ameaça. Dois meses depois, a Bolívia apresentou formalmente uma demanda ao Tribunal de Haia, para recuperar uma saída marítima soberana.
O novo litígio cria uma situação bastante complexa. Na mesma corte internacional, no final deste ano, deverá se conhecer o resultado de uma disputa por limites marítimos entre chilenos e peruanos, que já se vem se arrastando desde 2007. Caso o pedido boliviano prospere em Haia, pode configurar um fator a mais contra o Chile e apontar para duas derrotas que podem se alimentar mutuamente: o processo em si, apresentado pela Bolívia, enfraquece a posição chilena na demanda contra o Peru, enquanto uma derrota diante dos peruanos, por outro lado, pode fortalecer bastante a iniciativa boliviana.
Apesar de ainda estar em seu nascedouro, a iniciativa boliviana se baseia no mesmo princípio usado pela defesa peruana: a de que o Chile considera como tratados limítrofes documentos de origem controversa e de validez duvidosa. Já os chilenos se defendem justamente reforçando a relevância dos documentos contestados pelos vizinhos.
A jogada de Evo não chegou a surpreender os diplomatas transandinos. Em dezembro de 2011, durante a entrega das respectivas teses de defesa do caso contra o Peru, o advogado chileno Alberto von Klaveren, que atua no caso, reconheceu a presença de uma comitiva boliviana acompanhando especialmente a apresentação da tese peruana.
Na época, Klaveren pediu para não se dramatizar a visita dos bolivianos. “É claro que a disputa é de interesse deles, mas não há indícios de que eles pretendam tomar a precipitada decisão de anunciar outra demanda sem antes conhecer o resultado desta.” Quatro meses depois, porém, a opinião do jurista, que foi subsecretário de Relações Exteriores durante o governo de Michelle Bachelet (2006-2010), ganhou um tom de incerteza. “É momento de ter paciência, de reunir todos os documentos que sustentam a nossa tese e observar bem o panorama, pois ainda não está claro o que a Bolívia pretende alegar para justificar seu pedido”, afirmou o diplomata em abril, em uma coletiva de imprensa, após se reunir com o presidente Sebastián Piñera e o chanceler Alfredo Moreno.
Tratados ilegítimos
No entanto, a passividade momentânea, ressaltada como virtude por Klaveren, pode ser somente um blefe. É de conhecimento dos próprios chilenos que pelo menos a apresentação inicial, com a qual esperam que o Tribunal de Haia julgue o caso procedente, está baseada na contestação de um documento de 1904, que o Chile considera um tratado limítrofe, e a Bolívia desconhece, por afirmar que foi assinado por pessoas que não eram legítimas representantes da nação à época.
Para entender o contexto no qual nasce a controvérsia entre os dois países, é preciso recriar o cenário da Guerra do Pacífico (1879-1883), na qual o Chile enfrentou Bolívia e Peru, em uma disputa por limites territoriais. Originalmente, as duas províncias mais ao norte do Chile, Parinacota e Tarapacá, pertenciam ao Peru, e a terceira, Antofagasta, era território da Bolívia, por onde o país possuía uma saída ao mar soberana.
Na falta de uma fronteira melhor delimitada entre Antofagasta e Atacama (região mais ao norte do Chile original), com o tempero das intrigas criadas pelas embaixadas britânicas nos três países, deu-se início à guerra, vencida pelos chilenos e cuja principal consequência foi a expansão do território do país vencedor.
O historiador chileno Leonardo Jeffs, da Universidade de Valparaíso, explica que a derrota na Guerra do Pacífico afetou politicamente a Bolívia por muitos anos. “Houve um vazio de poder que se manteve por décadas, e foi aproveitado por diversos grupos oligárquicos sem legitimidade democrática para exercer o poder, mas que ainda assim o exerciam. Um desses grupos foi o que assinou o documento com o qual o Chile tenta defender sua postura”, contextualiza o professor.
Jeffs, que colaborou com o governo boliviano na formulação dos argumentos contidos na demanda apresentada em Haia, acredita que a iniciativa de La Paz tem grandes chances de prosperar, pelas razões históricas que estão a seu favor e pela proposta moderada que apresenta como solução.
A Bolívia não quer recuperar o território de Antofagasta, o que derivaria em um cenário muito mais complexo, e sugere a criação de um corredor que bordeie a fronteira setentrional chilena, ligando os departamentos de La Paz e Oruro com um pequeno pedaço de costa, no Oceano Pacífico, suficiente para a construção de um porto. “Essa hipótese contém diversas vantagens: não avança no território peruano, não altera a situação política de Arica [cidade mais ao norte do Chile] e Tacna [cidade mais ao sul do Peru], não divide o território chileno ao meio e permite à Bolívia ter uma saída para o mar com total soberania”, considera Jeffs.
Mesmo assim, a proposta esbarra no nacionalismo chileno, ainda mais exacerbado com o atual governo de direita. Historicamente, sempre existiu, ademais, a suposta barreira do interesse peruano em manter uma fronteira direta com o Chile, o que sempre foi defendido por analistas, mas nunca confirmado por autoridades do país inca.
Hoje, porém, essa impressão mudou radicalmente. Desde a chegada ao poder de Ollanta Humala, o Peru passou a ter melhores relações internacionais com o altiplano, o que se verifica na sintonia das teses defendidas pelas equipes jurídicas dos dois países. A viagem da comitiva boliviana que protocolou a demanda perante o Tribunal de Haia foi antecedida por uma reunião entre os chanceleres David Choquehuanca e Rafael Roncagliolo, e teve uma primeira escala em Paris, onde visitaram o escritório francês que auxilia a defesa peruana.
O boliviano Choquehuanca desmentiu rumores, ao enfatizar que “nem o Peru participará da nossa demanda, nem nós pretendemos interferir no caso deles, que já está na fase final; o que existe é apenas o respeito mútuo entre dois chanceleres e suas respectivas políticas exteriores”. O historiador Leonardo Jeffs acredita que, independentemente das demandas nas cortes internacionais, a melhor solução para o problema seria uma decisão trilateral, o que só seria possível se essa boa relação fosse mantida.
Unasul em alerta
O que se vê é um cenário no qual o Chile se encontra cada vez mais isolado. Em entrevista coletiva, Piñera fez alusão ao caso, dizendo que o Chile não pretende abandonar sua crença na integração com os países do continente, incluindo a Bolívia, “mas essa convicção não deve ser confundida com uma atitude de debilidade, pois sempre apostaremos na forte defesa de nossa soberania territorial”.
[caption id="attachment_27778" align="alignright" width="374"] ...e Sebastián Piñera respondeu dizendo que não cede um milímetro do mar para os vizinhos (Foto: Foreign and Commonwealth Office)[/caption]
As palavras do presidente chileno geraram preocupação do lado leste da cordilheira. Em La Paz, o ministro da Defesa, Juan Ramón Quintana, denotou certo incômodo ao comentar as palavras de Piñera. “Queremos entender as declarações do presidente chileno como uma questão de retórica, mas não podemos esquecer que o vizinho é o país com o maior gasto militar da região.”
Proporcionalmente, o Chile é o país que mais compra armamentos na América do Sul. Segundo relatório do Instituto Internacional de Estudos para a Paz, com dados de 2011, o Chile aparece em primeiro lugar entre os países do continente, com 4,06% do PIB investidos em novas armas, o que representa mais que a soma dos gastos da Bolívia (quinto sul-americano da lista, com 1,9% do PIB) e do Peru (oitavo, com 1,5%) – o Brasil aparece em quarto lugar no ranking continental, com um orçamento militar de 2,6% do PIB.
No âmbito mundial, os números chilenos equivalem aos dos Estados Unidos, país com o qual aparece empatado, no 27º lugar da lista. Talvez essa idêntica porcentagem não seja só mera coincidência. O governo de Piñera tem promovido uma aproximação militar com os Estados Unidos que não se via desde a ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990). Os encontros do então ministro de Defesa chileno Andrés Allamand (que se afastou do cargo para ser pré-candidato presidencial) com o colega estadunidense Leon Panetta renderam diversos acordos bilaterais nos últimos três anos, e uma agenda que inclui o treinamento de soldados chilenos, ministrado por oficiais do exército dos Estados Unidos, em algumas bases chilenas.
O inegável isolamento chileno é o fator mais complexo, pois poderia desencadear um cenário de conflito. Enquanto a Bolívia conta com o apoio incondicional da Venezuela e do Equador, e goza de uma melhor relação com Brasil e Argentina, o Chile sequer pode contar com seu único grande aliado na região, a Colômbia, que costuma assumir neutralidade em disputas regionais, para manter a diplomata María Emma Mejía como secretária-geral da Unasul.
A imagem negativa do Chile na região também é acentuada por alguns desatinos. Em fevereiro, o exército do país prendeu três soldados bolivianos que cruzaram a fronteira por engano, durante uma operação de perseguição a contrabandistas. O Ministério de Defesa chileno considerou o caso como “agressão grave” e manteve os soldados presos até a Justiça ordenar sua libertação.
Para o cientista político Raúl Sohr, da Universidade do Chile, esse caso mostra a falta de bom senso da diplomacia chilena durante o governo Piñera. “Os bolivianos foram algemados e apresentados diante da imprensa como verdadeiros delinquentes, e foi preciso que Justiça atuasse para corrigir o equívoco. Foi algo que deve ter inquietado muitos países da região”, analisou Sohr.
O cenário que mais preocupa é o de que o Chile enfrente duas derrotas no Tribunal Internacional, ou tenha que lidar com perdas territoriais importantes, mesmo não tendo derrotas absolutas. Segundo Raúl Sohr, “existem setores mais nacionalistas dentro da direita que estão em silêncio desde a ditadura, mas que podem voltar a se manifestar, caso se sintam ameaçados e estejam no governo, como agora”. Sohr recorda que foram esses setores que, em 1978, quase levaram o país a uma guerra contra a Argentina por um problema fronteiriço na Patagônia, em um incidente que, posteriormente, justificou o apoio dado por Pinochet à Grã-Bretanha durante a guerra das Malvinas (1982).
A chance do Chile perder parte do seu território nas duas demandas é grande, ainda em caso de uma sentença favorável. Isso devido ao caráter salomônico que costuma incidir sobre as decisões da corte sobre fronteiras. Em novembro de 2012, Haia resolveu repartir os territórios marítimos de Nicarágua e Colômbia, em decisão que levou em conta os argumentos de ambos os lados, mas que agradou muito mais os centro-americanos, já que conquistaram soberania em parte do território marítimo que antes era controlado exclusivamente pelos colombianos.
Uma eleição no meio do caminho
O panorama chileno poderia sofrer uma mudança significativa em 2014, caso a socialista Michelle Bachelet confirme em novembro o favoritismo que tem hoje. Durante seu governo, entre 2006 e 2010, ela demonstrou ter um perfil mais conciliador que o do atual governo, tanto que conseguiu para o Chile a primeira presidência pró-tempore da Unasul, em 2008. Foi através de uma gestão sua, aliás, que o organismo venceu sua primeira grande prova, evitando o golpe de Estado contra Evo Morales em 2008.
Por outro lado, uma possível derrota de Bachelet para um dos candidatos da direita, seja Andrés Allamand ou Laurence Golborne, resultaria em um Chile ainda mais distanciado do resto da região, o que poderia favorecer interesses alimentados em outras latitudes.
Alguém conhece algum país que ganharia em influência na região com uma possível extinção ou perda de força da Unasul? F