Por séculos, capitalismo espalhou indústrias, trabalho assalariado e poluição pelo mundo, fugindo de salários altos. Esta ciranda está no fim
Por Immanuel Wallerstein. Tradução de Gabriela Leite para o Outras Palavras
Desde que existe uma economia mundial capitalista, um dos mecanismos essenciais para que seu funcionamento tenha sido bem-sucedido foi a relocalização industrial. Após um período de acumulação significava de capital, nos ramos industriais mais dinâmicos (normalmente por volta de 25 anos), o nível de lucro costumava cair, tanto por causa do enfraquecimento do quase-monopólio desse ramo principal quanto por conta do crescimento dos custos de trabalho, devidos a diversas formas de ação dos sindicatos.
Quando isso acontecia, a solução para a indústria era relocalizar-se. Significa que o local da produção era transferido para alguma outra parte do sistema mundial, que tinha “níveis de salário historicamente mais baixos”. Na verdade, os capitalistas que controlavam as principais indústrias estavam trocando custos de transporte maiores por custos de trabalho reduzidos. Isso mantinha uma receita significativa para eles — embora menor que no primeiro período, quando ainda mantinham um quase-monopólio.
O motivo pelo qual os custos de trabalho diminuíam é que a nova fábrica, relocalizada, recrutava trabalhadores de áreas rurais, com menor envolvimento no mercado econômico. Para estes trabalhadores rurais, a oportunidade de trabalhar nas indústrias deslocadas oferecia um aumento na renda real. Ao mesmo tempo, para os donos da indústria, estes trabalhadores estavam sendo menos remunerados que aqueles que trabalhavam na localização anterior. Isso é o que chamamos de uma solução na qual todos ganham.
O problema com essa saída aparentemente maravilhosa é que ela nunca é duradoura. Depois de mais ou menos outros 25 anos, os trabalhadores na nova localização iniciam nova ação sindical, e o custo de seu trabalho começa a subir. Quando subiu o bastante, os donos da indústria relocalizada têm apenas uma solução real — deslocar-se novamente. Enquanto isso, novas indústrias dinâmicas são construídas em zonas que já haviam acumulado riqueza. Assim, tem havido um constante movimento de indústrias de todos os tipos. Quase-monopólios atrás de quase-monopólios! Indústrias relocalizadas atrás de indústrias relocalizadas!
Isso foi um segredo do ajuste capitalista a um longo processo de constante mudança das circunstâncias. Este sistema complexo tem, no entanto, dependido de um elemento estrutural — a possibilidade de encontrar novas áreas “virgens” para realocação. Essas áreas intocadas são as zonas rurais que estavam relativamente afastadas da economia de mercado global.
Contudo, ao longo dos últimos 500 anos, estamos “gastando” tais áreas. Isso pode ser medido, de modo simples, pela desruralização, da população mundial. Hoje, tais áreas estão reduzidas a uma parte minoritária da superfície terrestre, e parece certo que até 2050, elas serão uma minoria muito muito reduzida.
Para compreender as consequências de tal desruralização massiva, basta olhar para um artigo no New York Times de 9 de abril. Seu título de capa é “Olá, Camboja”. O texto descreve a “migração”, para o Camboja, de fábricas que estão fugindo da China por causa do aumento do nível dos salários no país — que, antes, recebia as tais fábricas relocalizadas. Agora, continua o artigo, “as multinacionais estão percebendo que podem fugir do aumento de salários na China, mas não podem esconder-se de verdade”.
O problema, para as multinacionais, é que a incrível expansão dos meios de comunicação causou o fim da situação “boa para todos”. Trabalhadores de Camboja estão iniciando ações sindicais em apenas alguns anos, não mais 25. Fazem greves e pressionam por salários mais altos e benefícios mais amplos. Isso, é claro, reduz a vantagem para as multinacionais moverem-se para o Cambodja, Mianmar, Vietnã ou as Filipinas. Parece agora que os lucros obtidos pela mudança da China não são mais tão bons…
O artigo nota que “algumas indústrias relocalizaram-se de qualquer maneira, a pedido dos compradores ocidentais, que temem depender de um único país”. A conclusão de um consultor de produção: existem riscos em mudar-se para Cambodia, mas “há um risco em continuar na China, também”. De qualquer maneira, existe algum outro lugar para uma indústria relocalizada correr? Ou Camboja é o fim da linha?
O ponto de partida é a combinação entre entre a crescente desruralização e a rapidez com a qual os trabalhadores descobrem que seus salários são relativamente baixos e começam a tomar ações sindicais. Estes dois fenômenos resultaram em um contínuo crescimento nos níveis do pagamento dos trabalhadores menos hábeis e, em seguida, numa pressão negativa mundial sobre as possibilidades de acumular capital. Não são boas notícias para as grandes multinacionais.
Todo este cenário compõe um dos elementos da crise estrutural do sistema-mundo moderno. Estamos vivendo uma combinação de pressões crescentes por redução de direitos, entre os 99%, com um sistema capitalista que já não é tão lucrativo para os capitalistas. Essa combinação sugere que o capitalismo como sistema mundial está em declínio.
Ambos os lados estão em busca de alternativas – de sentido distinto, é claro. Vamos enfrentar coletivamente uma “escolha”, nas próximas décadas. Uma possibilidade é um novo sistema não-capitalista que replique (e talvez piores) as três características essenciais do capitalismo – hierarquia, exploração e polarização. Outra hipótese é um novo sistema, relativamente democrático e relativamente igualitário. Este último, devemos sublinhar, nunca existiu na história do mundo. Mas é possível.
De qualquer forma, o Camboja não é o futuro do sistema mundial moderno. Expressa, muito mais, os últimos vestígios de um mecanismo que já não desempenha seu papel em salvar o capitalismo.