O jornalista e historiador Gilberto Maringoni acredita que o chavismo sobreviverá sem seu mentor, mas o país tem o desafio de diversificar sua base produtiva. Esta é uma matéria da edição 121 da Fórum, em bancas.
Por Felipe Rousselet. Foto de capa por http://www.flickr.com/photos/rufino_uribe/.
Morto em 5 de março, Hugo Chávez tem uma presença fortíssima na Venezuela. Mas a continuidade do chavismo não estaria tão atrelada à figura do comandante. “O abalo da perda de Chávez, embora tenha sido grande, não foi estrutural. Não compromete o futuro das transformações sociais que acontecem na Venezuela”, acredita o jornalista e historiador Gilberto Maringoni, autor de A revolução venezuelana.
Para Maringoni, um dos grandes desafios do próximo governo do país será tentar diversificar a base produtiva do país, muito dependente da exportação de petróleo. “Todos os presidentes, desde os anos 1950, tentaram industrializar o país. O problema é que o petróleo é uma riqueza constante. Você fura o poço e está exportando, ganhando dinheiro”, explica. “Essa entrada de dinheiro faz com que o país fique com uma reserva muito grande de petrodólares e com uma propensão a importar. Lá, é muito mais fácil importar automóveis do que gastar 10 ou 15 anos para instalar uma fábrica, que vai maturar o investimento e demorar para começar a dar lucro.”
Confira abaixo trechos da entrevista com Maringoni.
Fórum – Após quase um mês da morte de Hugo Chávez, como o senhor avalia o impacto desta perda para a Venezuela e para o próprio chavismo?
Gilberto Maringoni –Vamos começar pelo fim, pelo chavismo. Entender o que ele é, quais as bases dessa expressão política das mudanças que aconteceram na Venezuela nos últimos 14 anos. A grande incógnita que havia durante todo esse processo era se dependia de um homem só ou se já tinha ganhado sua autonomia. Nos primeiros anos, parecia que a dependência da figura de Chávez era umbilical, no entanto, o que parece ter acontecido é que ele, desde quando assumiu o poder, conseguiu, de maneira direta ou indireta, tocar em algumas demandas estruturais da sociedade venezuelana que não tinham sido atendidas ao longo do século XX.
Houve no país uma crise profunda motivada pela queda no preço do petróleo nos anos 1980 e 1990. Essa crise, que parecia restrita a um produto, desmantelou o mercado de trabalho e cortou o ingresso de recursos para o Estado. Historicamente, paga-se pouco imposto na Venezuela. A receita fiscal venezuelana chega a 10%, 12% do PIB, quando no Brasil isso gira em torno de 36% e nos países europeus onde há Estado de bem-estar social está acima de 42%. Como que o Estado se financiou? Com o ingresso da renda petroleira.
Com a queda brutal da renda do petróleo, cortou-se o financiamento do Estado. Isso fez com que os serviços públicos se deteriorassem de uma maneira abrupta, muito acentuada, em um período curto de tempo. Todos os serviços, saúde, segurança, educação, o próprio Judiciário, perdem o dinamismo. Para uma população que também ficava mais pobre com o desemprego em massa, quando o Estado se deteriora, o mercado de trabalho se desorganiza e a qualidade de vida cai.
A crise econômica atingiu as bases da organização social e se tornou institucional e também uma crise de credibilidade. Ou seja, o venezuelano parou de acreditar no país, no Estado, no funcionamento das instituições. Quando Chávez assumiu o poder, a Venezuela estava em uma crise de vinte anos e ele fez uma reunião da Opep em Caracas, na qual voltaram a elevar o preço do petróleo, superando vinte anos de queda. Assim, conseguiu reorganizar o Estado venezuelano. Esse é o grande centro da ação chavista, reorganizar o Estado.
Como ele fez isso? A primeira ação foi reconstitucionalizar o país. A partir daí, o Estado começou a ter novamente credibilidade, baseada em duas coisas: na figura do presidente, o homem que está fazendo isso, e na Constituição. Ao fazer isso, Hugo Chávez começou a religar os cacos de um país fragmentado.
Atrás disso é que vem a recuperação do poder de compra, o aumento do índice de emprego, a criação de serviços sociais que deixaram de existir na saúde e na educação, a eliminação do analfabetismo... Tudo isso estava, no início, muito centrado na figura do Chávez, que transcende um pouco a figura do líder político tradicional. Ele tentou tomar o poder à força, no meio dessa crise dos 20 anos, em 1992. Não conseguiu, foi para a cadeia, voltou, e se elegeu presidente com votação esmagadora. Então, tem esse componente heroico, salvador, da figura providencial.
Ao longo dos anos, quando a situação da Venezuela se estabilizou, e os serviços e o Estado voltaram a funcionar, houve uma diluição do chavismo, a figura dele [Hugo Chávez] deixou de ser tão característica e passou a se diluir no Estado. Tanto isso é verdade que, nas eleições para governador, que aconteceram em dezembro, quando Chávez já estava doente e não participou, os candidatos aliados do chavismo ganharam em 20 dos 23 estados. A oposição tinha sete estados e perdeu quatro. Já existe uma consolidação do chavismo sem o Chávez que era perceptível ali. Agora, existe também o fato de a população venezuelana, em 14 anos, ter se acostumado com uma vida melhor. O abalo da perda de Chávez, embora tenha sido grande, não foi estrutural. Não compromete o futuro das transformações sociais que acontecem na Venezuela.
Fórum – Como fica a integração política da América Latina, algo que sempre esteve na agenda política do ex-presidente venezuelano?
Maringoni –O movimento de integração da América Latina, embora o Chávez tenha sido um grande defensor, não dependia tanto dele. Já havia uma integração anterior, o Mercosul, embora ela tenha ganhado em qualidade na última década, quando aconteceu a eleição de governos reformistas na América Latina, antiliberais. Estreitou-se essa relação entre os países.
Mas essa relação depende da dinâmica econômica dos países. No caso venezuelano, dependeu da alta dos preços do petróleo e dessa identidade política maior com os presidentes eleitos nessa maré dos anos 2000 em diante. É o Chávez, Correa, Lula, é o Evo, o Nestor e a Cristina Kirchner, o Tabaré Vasques, o Mujica, de certa maneira, o Lugo.
Há essa proximidade, mas o principal é que existia uma tentativa anterior representada nestes mecanismos. Ela ganha um impulso com esses novos governantes, com a criação da Alba, com a tentativa de criação do Banco Comum do Sul, mas vai depender muito do andamento da economia.
A integração é fundamentalmente uma integração de políticas de Estado e não depende de empresas privadas. Muitas delas, inclusive, trabalham contra a integração, possuem lógicas globais. Por exemplo, o Santander está pouco se lixando para a integração latino-americana; a Telefônica, idem; as automotivas, o mesmo. A integração depende de empresas estatais: do BNDES, da PDVSA, da Repsol estatizada na Argentina, e vai depender da política que o governo brasileiro tiver junto a estes organismos.
Fórum – Neste contexto, Chávez sempre colaborou diretamente com países latino-americanos, vendendo petróleo em condições especiais, como é caso da Bolívia, Equador e Cuba. Como fica esta relação comercial e política após a morte de Chávez?
Maringoni – Primeiro, não é verdade que a Venezuela vende a qualquer país petróleo com preços menores que o mercado mundial. O que a Venezuela faz é vender petróleo em condições de pagamento diferenciadas. Para Cuba, por exemplo, vende com carência de até 15 anos. Ou então com condições vantajosas de financiamento, com juros mais baixos. O preço continua o mesmo, é o crédito que faz toda a diferença. Aliás, é muito mais efetivo vender o petróleo com prazos de pagamento maiores.
Caso o [Henrique] Caprilles vença as eleições, isso acaba, o que já ficou demonstrado na tentativa de golpe, em 2002, quando ele foi um personagem que cercou a embaixada cubana e falou – episódio reproduzido no filme A revolução não será televisionada – que mais nenhuma gota de petróleo seria vendida para Cuba. Com o [Nicolás] Maduro, isso não deve ser interrompido.
Fórum – Como você vê essa nova disputa política polarizada entre Nicolás Maduro e Henrique Caprilles?
Maringoni – A polarização é a mesma em termos de projetos. O Caprilles vai tentar uma aproximação maior com os EUA, a retomada de algumas bandeiras liberais, de liberação de capitais, de privatização da PDVSA, não da empresa em si, mas colocando o seu funcionamento baseado na lógica de uma empresa privada, deixando de direcionar recursos do petróleo para programas sociais. Dizem que a PDVSA gasta demais, mas esse gasto resulta em moradia, em elevação de salários e do padrão de vida da população. O Caprilles deve interromper isso, enquanto o Maduro deve manter.
Agora, existe uma diferença na tática eleitoral. Como a morte do Chávez está muito recente – a eleição vai se realizar 40 dias depois da morte –, o clima de comoção é tão grande que nem mesmo o Caprilles irá se colocar abertamente contra Chávez. Ele argumenta que o país está perdendo a eficiência, que Maduro não irá levar para frente uma série de demandas populares. Tenta, de certa maneira, também capitalizar a popularidade do Chávez. Hoje, na Venezuela, ninguém consegue ir contra o que está se tornando um mito no país.
Fórum – Pesquisas apontam grande vantagem de Maduro sobre Caprilles nas eleições. Você acredita que esta vantagem é fruto somente do capital político de Chávez, herdado por Maduro, ou o novo líder do chavismo na Venezuela começa a ganhar capital político próprio?
Maringoni – Nas eleições de outubro de 2012 existiam seis institutos cujos números não coincidiam. Alguns davam vantagem maior para Chávez e, outros, uma margem menor. Acho que Maduro ganha e, ao que tudo indica, por uma larga margem. É bem possível que amplie a margem que Chávez teve em dezembro, por conta dessa comoção nacional. A margem da vitória indicará com qual legitimidade Maduro irá começar o seu governo. Quanto maior ela for, menos contestada será a sua liderança. Se for uma diferença pequena, de 1 ou 2 pontos, a contestação irá aumentar. Afinal, ele não é o Chávez e essa margem apontaria para um país dividido.
O objetivo do chavismo hoje não é só ganhar, e sim aumentar a diferença para mostrar que o Maduro é um líder incontestável.
Fórum – No caso de vitória de Maduro, o senhor acredita que a direita venezuelana aceitará a derrota democraticamente?
Maringoni – Hoje, a direita venezuelana não tem outro caminho para chegar ao poder que não seja pelas vias democráticas. Com uma economia que, no ano passado, cresceu 5,6% e que vai crescer 3% esse ano, segundo dados da Cepal, do início do ano, a direita venezuelana tentar uma saída não democrática, golpista, significa voltar ao isolamento que teve entre 2002 e 2006. Ela tentou um golpe, se deu mal, tentou fazer um locaute, paralisar a economia no final de 2002, e se deu mal. Em 2005, disseram que as eleições parlamentares eram fraudulentas, que iriam fazer uma turnê internacional de denúncias e que não participariam das eleições. Resultado: ficaram fora da Assembleia Nacional.
Isso favoreceu muito Chávez, uma vez que ele podia falar que a direita venezuelana não queria a democracia, que queriam uma saída ruim para o povo, não democrática. Com isso, conseguiu se tornar o campeão da legalidade da cena política venezuelana. A direita foi empurrada para a marginalidade do espectro político. O isolamento que ela colheu, até 2005, foi brutal.
A partir daí, a direita se dividiu e uma parcela majoritária resolveu entrar no jogo democrático, aceitar a legalidade chavista e disputar eleições. Conseguiram até bons resultados. A eleição do Caprilles no final de 2002 foi muito expressiva, com 44% dos votos. Chegaram a ganhar um referendo em 2007, ou seja, a via democrática se mostrou vantajosa para a oposição. Já a via não democrática pode levar a direita, de novo, para a marginalidade política. Acho que não existe risco nenhum de uma saída golpista hoje para a Venezuela.
Fórum – Na sua visão, quais reformas deveriam ser priorizadas em um eventual governo Maduro para a Venezuela assegurar e ampliar as conquistas sociais obtidas nos últimos anos?
Maringoni – A primeira medida, dificílima de ser implantada, é a diversificação da base produtiva do país. Na Venezuela, mais de 90% do valor de produtos exportados é coberto pelo petróleo e seus derivados. Isso faz com que, embora estejamos em um período de alta do petróleo, isso possa se inverter com uma queda nos preços.
A Venezuela tem esta tarefa urgente de diversificar sua base produtiva, industrializando o país e aumentando o valor agregado dos produtos. Isso não é fácil, não depende de um ou outro presidente. Todos os presidentes, desde os anos 1950, tentaram industrializar o país. O problema é que o petróleo é uma riqueza constante. Você fura o poço e está exportando, ganhando dinheiro. Não tem muito segredo. Essa entrada de dinheiro faz com que o país fique com uma reserva muito grande de petrodólares e com uma propensão a importar. Lá, é muito mais fácil importar automóveis do que gastar 10 ou 15 anos para instalar uma fábrica, que vai maturar o investimento e demorar para começar a dar lucro.
Outro fator adicional é que o mercado interno é muito pequeno. O mercado interno argentino é três vezes maior que o venezuelano. As grandes empresas vão se instalar em locais que, além de ter melhores condições econômicas, possuam um mercado interno maior, oferecendo a oportunidade de exportar para os países vizinhos. O investimento em industrialização na Venezuela é mais difícil. Isso depende de o Estado investir de forma constante e maciça, mas vão ser utilizados recursos da PDVSA sem retorno por muito tempo.
Essa é a grande tarefa. Além disso tudo, o petróleo gera poucos empregos. Em um país de 30 milhões de habitantes, com 10 milhões de pessoas economicamente ativas, cem mil trabalham no ramo do petróleo. A indústria possui uma capacidade de geração de empregos muito maior.
Fórum – A possível vitória de Maduro nas eleições de abril pode ser considerada uma resposta para aqueles que afirmam que a Venezuela não vivia uma democracia durante o governo de Hugo Chávez?
Maringoni –Essa história de que a Venezuela não vive uma democracia, ninguém sério fala isso. As pessoas que falam não o fazem por uma posição política ou outra, é uma questão de a análise não estar fincada na realidade. Um país que teve sete eleições desde 1999, cinco delas presidenciais... Não só foi eleita uma Assembleia Constituinte, mas depois de aprovada no Congresso, a Constituição foi referendada pela população. Um país em que se pode tirar do poder o presidente, o governador e o prefeito por meio de um referendo revogatório após a metade do mandato, de jeito nenhum é um país não democrático.
Isso é atestado por observadores internacionais insuspeitos como o presidente Jimmy Carter, que fez declarações sobre a eficiência e a lisura do processo eleitoral venezuelano. Esses críticos não são sérios. Não possuem base real.