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Para a crise da democracia representativa, há duas saídas possíveis: o autoritarismo tecnocrático, mesmo que decorado com alguns elementos participativos; e a democracia participativa. O M5S contém nele as duas possibilidades
Por Loris Caruso, Il Manifesto, Itália. Original em “Un movimento bifronte”. Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu e publicado em Redecastorphoto
Até os analistas estão divididos entre os que consideram o Movimento 5 Estrelas [orig. Movimento 5 stelle (M5S), de Beppe Grillo] uma “costela da esquerda” e os que veem ali uma organização populista, predominantemente de direita, e quase, pelo menos tendencialmente, fascista. As coisas estão realmente confusas.
Já se disse mais de uma vez que o conteúdo “ambientalista” do programa e a insistência na democracia direta e participativa aproximam o M5S, da esquerda “libertarista” e ambientalista dos anos 70 e 80.
Chama a atenção a força da mensagem participativa, lançada pelo M5S com radicalidade e eficácia que nenhum movimento político da esquerda conseguiu ter: o anulamento da diferença entre representados e representantes; a substituição da delegação pela participação; o fim dos políticos profissionais. Onde, então, estaria “a direita”, no M5S?
Em primeiro lugar, numa possível modificação desse mesmo ideal democrático. Se se põe como objetivo que uma única força social possa autenticamente enfrentar todas as outras (partidos, sindicatos etc.), essa hiper-democracia pode converter-se em seu contrário. Força política que, como o M5S, avoque para si e só para si uma real natureza democrática, pode apresentar como se fosse hiper-democrática todas as suas escolhas, inclusive as que limitam o agir democrático. Se a democracia radical prevê o fim dos partidos, não é impossível imaginar que, ante uma oposição previsível dos partidos à autoextinção, a extinção seja determinada, num eventual governo do M5S, por intervenção não democrática.
Em segundo lugar, a pressuposição de “virtude” com que o M5S beneficia seus próprios representantes e ativistas é tão absoluta (por exemplo, pressupõem o anulamento de todas as ambições pessoais), quase impõe a “virtude”, o que exigirá rigidíssimo controle centralizado. Esse controle centralizado, de fato, já se vê no M5S, quando trabalha para impedir que surjam, seja qualquer protagonismo individual sejam organismos coletivos que façam algum contrapeso ao papel de Grillo e Casaleggio. Abaixo dos líderes e de tantos ativistas e eleitos, que devem, pelo menos tendencialmente, permanecer anônimos, não é o caso de todos se converterem em nada. Não, advertem Grillo e Casaleggio. “Sejamos um partido”. O resultado é que atualmente, na estrutura nacional, o M5S é organismo muito menos democrático que um partido. Se esse é o modelo de Estado que os dois líderes do M5S têm em mente, não é muito tranquilizador. De fato, é modelo que tem a forma do chamado “capitalismo cognitivo”.
Como já disse várias vezes, dentre outros, Carlo Formenti, a economia da Rede é caracterizada por vasta participação em baixo (os usuários, os consumidores, os midiativistas etc.) e por participação-zero no topo – onde se vê o domínio oligopolista de pouquíssimas empresas gigantes (Google, Amazon, etc.). O M5S parece organizado de modo análogo. É possível que a analogia entre a forma do movimento e a economia da Rede explique, em parte, o sucesso do movimento.
Se o modelo é esse, pode-se pensar na relação que o M5S estabelece com os movimentos. Em recente comício eleitoral em Susa, Grillo mandou que recolhessem a bandeira No-Tav [movimento de ativistas que se opõe ao Trem de Alta Velocidade]: “não somos mais grupo de protesto, agora somos todos cidadãos”. A mensagem é: agora, eu os represento todos. No meu “tudo” há espaço também para vocês. Logo, não é mais necessário que vocês manifestem, com autonomia, seu específico ponto de vista. Essa, de fato, é a relação prevalente que Grillo instaura com os movimentos cuja luta dirige. Raramente essa relação é trabalho comum, um compartilhamento de objetivos ou finalidades. Mais frequentemente, o M5S trabalha de forma independente e “paralela” sobre os mesmos temas dos movimentos, tentando representá-los nas eleições e apresentar essas lutas como sua própria luta.
A ideia de ser uma Totalidade, a representação de um mundo de cidadãos sem qualquer diversidade por condição social e orientação política é o antípoda da história e da natureza da esquerda, que se baseia na construções de “parcialidades organizadas”. A crise dessa ideia de parcialidade, a emergência dessa “vontade de Totalidade” é, provavelmente, uma das causas da crise histórica da esquerda. Grillo foi progressivamente incorporando a direita no seu discurso político, abraçando os temas da direita – protestos contra impostos, promoção do pequeno empresário como referência social, a “liberdade de imprensa” apresentada como bem em si – como temas seus.
Em terceiro lugar, a figura do criador do M5S é estranha à esquerda. A empresa Casaleggio & Associati é empresa de ponta do web-marketing. Na sua rede de relações estão a Confindustria, lobbies à italiana como Aspen, lobbies internacionais como a Câmara de Comércio Americana, grandes empresas multinacionais, sobretudo de informática e do espetáculo. Projeto nascido nesse ambiente poderia, fosse como fosse, favorecer os interesses populares? Ou se deve pensar que é boa oportunidade, sobretudo, para as elites econômicas? O fato de os resultados eleitorais do M5S ter provocado entusiasmado em ambientes como Goldman Sachs e Confindustria obriga a pensar melhor. E então?
A conclusão é que o Movimento 5 Estrelas é tanto de esquerda quanto de direita, ao mesmo tempo hiper democrático e autoritário. Compreende nele todas as formas sob as quais a política representativa foi desafiada de alto a baixo nos últimos anos: é, ao mesmo tempo, um movimento social, um partido-feudo, um partido de um homem só. Contém nele uma ideia de politização total da sociedade (“não vote: mexa-se”) e também a ideia de uma politização tecnocrática, na qual a “gestão”, a “administração”, substitui a política (a competência, em vez do pertencimento). É profético (a utopia acrítica da “rede”) e anti-profético, pelo menos contra esse específico tipo de profecia política que é a ideologia moderna.
Para a crise da democracia representativa, há duas saídas possíveis: o autoritarismo tecnocrático, mesmo que decorado com alguns elementos participativos; e a democracia participativa. O M5S contém nele as duas possibilidades. Seu sucesso deriva também dessa co-presença: a dificuldade de uma construção “assembleística” é contornada pelo centralismo verticalista.
O sucesso do M5S mostra que, usando terminologia de Gramsci, há na política contemporânea uma nova oscilação entre “guerra de trincheiras” (na qual as alternativas políticas são comprimidas nos instrumentos existentes) e “guerra de movimento” (na qual se disputam os próprios instrumentos sociais, as formas gerais da política e da economia).
Esse trânsito abre um campo inédito de possibilidades para a esquerda. Se e somente se souber jogar esse jogo, nesse nível. Se e somente se foi capaz de organizar, juntamente com o seu próprio modelo de democracia radical, um projeto seu de sociedade global. Em crise, não está só a representação: o capitalismo também está em crise. Sobre isso, Grillo (quase) nada diz. E esse é o nosso terreno de luta.
Agir nesse nível significa, me parece, construir um novo sujeito plural que atraia e arraste as lutas pelos bens comuns, os movimentos anti-austeridade, as lutas do trabalho, o mundo do trabalho dependente e do trabalho “cognitivo”, construindo uma alternativa global de sociedade, um projeto de “democracia dos bens comuns”: a ideia inovadora de um “socialismo do século 21”. [Chávez vive![1]]
Nota dos tradutores
[1] O “socialismo do século 21” é conceito que surgiu em 1996, em trabalho de Heinz Dieterich Steffan. O termo ganhou difusão mundial depois que apareceu em discurso que o presidente Hugo Chávez da Venezuela fez, dia 30/1/2005, no V Fórum Social Mundial. Antes, numa das emissões do programa “Aló Presidente”, em 2003, Hugo Chávez já havia apresentado a ideia de Giulio Santosuosso para o Socialismo do século 21: socialismo num paradigma liberal; o autor sugere que o mundo está em processo de realinhamento ideológico, consequência da mudança de paradigma em curso na economia; o velho modelo morreu, mas ainda não surgiram os novos critérios que permitirão o realinhamento conceitual.