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A paralisação política que vive Washington de modo algum terminou. E os problemas estruturais que na última década estiveram na raiz do declive dos Estados Unidos continuam vigentes
Por John Feffer*
Em seu livro The World Without Us (O Mundo Sem Nós), um sucesso de vendas de 2007, o jornalista Alan Weisman imagina o planeta Terra se regenerando após o desaparecimento dos seres humanos.
Os arranha-céus desabam e as pontes se quebram nos rios, mas prevalecem as florestas primitivas e os búfalos voltam a perambular.
É uma visão otimista do futuro… No caso de ser um búfalo ou um golfinho ou uma barata. Não há mais guardas-florestais. Não há mais enormes redes de arrasto ou pesticida d-Con.
Contudo, não é um futuro tão grandioso para o ser humano. Em sua perspectiva desapaixonada e não centrada nas pessoas, o livro de Weisman está desenhado para nos sacudir em nossa ingênua pretensão de que sempre existiremos, independente das ameaças existenciais que cobrem nossos ombros qual túnica de Neso.
Por algum motivo, a evolução nos fez incapazes de enfrentar nosso próprio desaparecimento. É quase como se nunca pudéssemos equilibrar nosso talão de cheques ou planejar nossas férias, a menos que consideremos as armas nucleares, a mudança climática e as pandemias simplesmente como outra série de “fantasmas” que nos deixam com o coração na boca, mas que sempre desaparecem com a luz da manhã.
Agora passemos do existencial ao geopolítico. Como seria o mundo sem os Estados Unidos?
O recente fechamento das repartições do governo fez com que muitos pensassem em um mundo no qual os Estados Unidos não chegassem a desaparecer, mas que sofressem um colapso sobre si mesmo. Centrado nas questões internas, Washington cancelaria a Pax americana – ou Pox (sífilis) Americana, como gostam de dizer os anti-imperialistas – e renunciasse ao seu papel de polícia e tesouraria do mundo.
Estaria o mundo economicamente melhor? Como ocorre no universo hipotético de Weismnan, responder a essa pergunta depende em grande parte do que se trata. Nós, os norte-americanos, sem dúvidas, nos beneficiamos da hegemonia econômica e militar de nosso país: nossa pegada de carbono, nosso produto interno bruto por pessoa, nosso poderoso dólar, nossa dependência do inglês como idioma do mundo por defeito.
Damos tudo isso como certo. No entanto, os que não são norte-americanos podem sentir de maneira um pouco diferente. Como o búfalo, os golfinhos ou as baratas em um mundo sem seres humanos, fora dos Estados Unidos todos podem muito bem aplaudir o fim do superpoderio norte-americano.
No auge da recente crise política em Washington, um artigo de opinião publicado em inglês pela agência chinesa de notícias Xinhua fez uma exortação para que “o ofuscado mundo comece a considerar construir um mundo ‘desestadunizado’”.
O texto reitera muitos argumentos que soam conhecidos. Os Estados Unidos “abusam de seu status de superpotência e semeiam ainda mais caos no mundo, desviando os riscos financeiros para o exterior, instigando as tensões regionais em meio a disputas territoriais e travando guerras injustificadas sob a fachada de mentiras descaradas”.
A solução, segundo esse artigo, é fortalecer a Organização das Nações Unidas (ONU), criar um substituto para o dólar como divisa global e dar mais poder às economias emergentes nas instituições financeiras internacionais. Todas essas sugestões parecem sensatas.
No entanto, como destacam vários analistas norte-americanos, esse provocativo ensaio não necessariamente reflete a opinião do governo chinês. Pequim continua dependendo do poderio econômico dos Estados Unidos, seja sob a forma de consumidores norte-americanos ou de liquidez de Wall Street.
E, na medida em que os Estados Unidos combatem o terrorismo, controla as rotas marítimas do mundo e continua limitando em maior ou menor medida as ambições de seus principais aliados na Ásia Pacífico, a China também depende do poderio militar norte-americano.
As autoridades chinesas valorizam a estabilidade interna, regional e internacional. Em outras palavras, querem preservar um entorno no qual possam perseguir seu objetivo principal: o crescimento econômico interno. Se conseguir uma carona gratuita no todo-terreno norte-americano, blindado e devorador de combustível, a China subirá a bordo alegremente.
Mas se o todo-terreno começar a interferir com seu crescimento econômico, sua estabilidade política e seus interesses internacionais, descerá. No momento, depois que um acordo legislativo evitou a suspensão de pagamentos (default) e pôs fim ao fechamento de repartições governamentais, as reclamações chinesas de “desestadunização” se aplacaram.
Porém, a paralisação política que vive Washington de modo algum terminou. E os problemas estruturais que na última década estiveram na raiz do declive dos Estados Unidos continuam vigentes.
A maioria dos observadores desse declive, desde Paul Kennedy até Fareed Zakaria, compartilha, em geral, a mesma ambivalência que a China. Consideram que a deterioração dos Estados Unidos é relativa e gradual, e que é preciso haver um duelo por eles na falta de uma alternativa viável.
O mesmo se poderia dizer das nações latino-americanas, que durante muito tempo condenaram o imperialismo norte-americano. Os últimos sinais desse conflito tiveram a ver com o caso Edward Snowden e as revelações de que a Agência de Segurança Nacional vigiava as comunicações além de suas fronteiras.
No entanto, como a China, a América Latina depende muito do comércio com os Estados Unidos, por isso também seja ambivalente em relação ao declive dos Estados Unidos.
Alguns dos que participam desse debate, naturalmente, não têm nenhuma ambivalência em absoluto. O documentário O Mundo Sem os Estados Unidos, dirigido por Mitch Anderson em 2008, descreve o estado de anarquia que reinaria se no futuro um presidente progressista reduzisse o orçamento militar e retirasse soldados de todo o mundo.
O filme se baseia particularmente nas elogiosas avaliações que o historiador britânico Niall Ferguson faz da hegemonia norte-americana. A certa altura, Ferguson sugere que uma retirada militar dos Estados Unidos provavelmente colocaria o mundo no mesmo caminho de destruição que experimentou a Iugoslávia nos anos 1990.
A União Europeia foi irresponsável na época, e continua sendo hoje. Não foi oferecida nenhuma outra garantia de paz. Só a China se avizinha no horizonte, e o filme termina com imagens de explosões nucleares no Japão, em Taiwan e na Coreia do Sul, presumivelmente causadas por mísseis chineses lançados após a partida das forças norte-americanas da região.
No livro de Alan Weisman, a floresta original prevalece sobre o mundo antes civilizado. No filme de Mitch Anderson as forças primatas da anarquia dominam um mundo que antes a presença militar dos Estados Unidos tornava estável.
É, em muitos sentidos, um filme perigosamente bobo. Os Estados Unidos apoiaram muitos ditadores em nome da estabilidade. Geramos uma instabilidade considerável – no Afeganistão, no Iraque – cada vez que isso foi funcional para nossos interesses. Nossa estabilidade é frequentemente injusta: nossa instabilidade é devastadora.
Além disso, reduzimos nossa presença militar na América Latina e a região prosperou. Reduzimos a presença de nossos soldados na Coreia do Sul, legendário detonador de conflitos, e na península não se desatou a anarquia. Finalmente, estamos fechando muitas bases da era da Guerra Fria na Europa, e a Europa está calma.
Lembrem-se: a mensagem real do livro de Weisman é que ainda há coisas que podemos fazer, como seres humanos, para cooperar mais com a natureza e impedir o Apocalipse. De modo semelhante, os Estados Unidos podem tomar medidas positivas para evitar que o cenário mundial se “balcanize”.
Não é questão de designar um sucessor como guardião mundial ou de enfrentar a China para impedir que Pequim pare em nossos sapatos. Não se trata de nos fecharmos e fazer cara feia porque o mundo já não quer cumprir nossas ordens.
Estamos no mundo, não há como escapar disso. Assim com os seres humanos devem reconfigurar sua relação com a natureza, os Estados Unidos devem reconfigurar sua relação com o mundo. Nos dois piores cenários, as únicas ganhadoras serão as baratas.
* John Feffer é codiretor do Foreign Policy In Focus.