Homens-bombas, versão ocidental

Fala-se de atentados suicidas, mas, qual seria seu antônimo? Não existe expressão específica para designar os que podem matar por explosão sem jamais exporem suas vidas

Drones em base dos EUA no Oceano Pacífico (U.S. Navy/Roberto Ruvalcaba)
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Fala-se de atentados suicidas, mas, qual seria seu antônimo? Não existe expressão específica para designar os que podem matar por explosão sem jamais exporem suas vidas Por Grégoire Chamayou, do Le Monde Diplomatique, edição francesa | Tradução: Antonio Martins para o Outras PalavrasPara mim, o robô é nossa resposta ao atentado suicida” Bart Everett1 Dois relatórios muito tardios – um da Anistia Internacional, outro da Human Rights Watch – focaram, esta semana, uma das marcas da degradação política de nossos tempos: os drones, aviões sem pilotos usados pelo governo dos EUA para assassinar supostos terroristas. Os documentos revelaram algo alarmante. Até mesmo a alegação capenga, segundo a qual os mortos são criminosos (como se isso tornasse aceitável executá-los…), é falsa. Já se sabia que parte das vítimas é assassinada por adotar “atitude suspeita”; e que os EUA efetuam, às vezes, um segundo disparo – voltado contra a população local, quando ousa socorrer eventuais sobreviventes ou participa do funeral dos mortos. Mas isso não é tudo. O relatório da Anistia narra, com riqueza de detalhes, episódios grotescos e até o momento inexplicáveis, sabendo-se da altíssima precisão das câmeras e do equipamento de disparo dos drones. Em 2012, na zona fronteiriça entre Paquistão e Afeganistão, dois mísseis disparados em sequência mataram Mamana Bibi, esposa de um diretor de escola aposentado, e feriram seis de seus netos. Na localidade de Zowi Sidgi, situada na mesma região, dezoito homens e adolescentes (alguns com 14 anos) sucumbiram a um único disparo, enquanto conversavam numa sombra. Ao todo, em menos de dez anos, os drones já mataram entre 2 mil e 4,7 mil pessoas, segundo uma terceira organização ocidental: o Bureau de Jornalismo Investigativo. É um número cerca de quinze vezes maior que o total de mortes provocadas pela ditadura brasileira, em duas décadas… O motor político que impulsiona esses assassinatos é conhecido. Desde a edição do Patriot Act, pouco após os atentados de 11 de Setembro de 2001, os EUA tornaram-se, em parte, um Estado policial. É esta lei – sancionada por George Bush e mantida no governo de Barack Obama – que abre espaço, entre outros atentados ao Direito internacional, à espionagem de chefes de Estado de outros países; á detenção de prisioneiros sem qualquer perspectiva de julgamento; ou à liquidação de seres humanos considerados “combatentes inimigos”. Mas quais as causas culturais e psicológicas da indiferença da opinião pública ocidental, diante destes atentados? No texto a seguir, o filósofo francês Grégoire Chamayou parte em busca de respostas. Ele inspira-se em Walter Benjamin. Já nos anos 1930, o filósofo alemão preocupava-se com as máquinas de matar à distância. Via-as como símbolo máximo do que chamou de “segunda técnica” – a que aparta ao extremo o ser humano das consequências de seus atos. Ao seguir as pegadas de Benjamin, Chamayou toca numa ferida extremamente incômoda. Ele compara a atitude de repulsa do Ocidente em relação aos homens-bombas islâmicos (ou aos matadores de aluguel, para ficar num exemplo mais próximo) com nossa dificuldade de sentir empatia pelas vítimas dos drones. Que ocorreu: teremos assimilado a ideia de que são mais “limpos” e menos repugnantes os assassinatos à distância – em que os matadores estão livres de qualquer contato com suas vítimas, além de permancer anônimos? Este alheamento será ainda maior pelo fato de os mortos estarem imersos em culturas distintas da nossa, viverem em regiões remotas, não serem notícia nos jornais? Nosso apreço ético pela vida humana estará se reduzindo a uma espécie da amor-próprio, que já não atribui humanidade ao “Outro”? Fique com o texto perturbador de Chamayou… (A.M.)

– O filósofo Walter Benjamin refletiu sobre os drones, os aviões radiocomandados que os pensadores militares imaginavam já em meados dos anos 1930. Eles permitiram-lhe ilustrar a diferença entre o que chamava de “primeira técnica”, que remonta à arte pré-histórica, e a “segunda técnica”, característica da indústria moderna. O que as distinguia, a seus olhos, não era tanto o arcaismo ou inferioridade de uma em relação à outra – mas uma “diferença de tendência”. “A primeira compromete o ser humano, tanto quanto possível; a segunda, o menos possível. O cúmulo da primeira, se ousamos dizer, é o sacrifício humano; o da segunda seria o avião sem piloto, dirigido à distância por ondas hertzianas2”.

De um lado, as técnicas do sacrifício; de outro, as do jogo. De um lado, o compromisso total; do outro o descompromisso total. De um lado, a singularidade de um ato vivo; de outro, a reprodutibilidade indefinida de um gesto mecânico. “De uma vez por todas – foi a divisa da primeira técnica (seja por meio do erro irreparável, seja do sacrifício da vida eternamente exemplar). Uma vez apenas não é nada – é a divisa da segunda técnica (cujo objetivo é repetir à exaustão suas experiências3”. De um lado, o kamikaze, autor do atentado-suicida, que se precipita de uma vez por todas, numa única explosão; do outro, o drone, que lança seus mísseis repetidamente, como se fosse um gesto banal.

Enquanto o gesto kamikaze implica a fusão completa do corpo do combatente e sua arma, o drone assegura a separação radical. Kamikaze: meu corpo é uma arma. Drone: minha arma é sem corpo. O primeiro implica a morte do agente. O segundo a exclui de modo absoluto. Os kamikazes são os homens da morte certa. Os pilotos de drones são os da morte impossível. Neste sentido, eles representam dois polos opostos sobre o espectro da exposição à morte. Entre ambos, há os combatentes clássicos, os homens que arriscam a morte.

Fala-se de atentados suicidas, mas, qual seria seu antônimo? Não existe expressão específica para designar os que podem matar por explosão sem jamais exporem suas vidas. Não apenas não lhes é necessário morrer para matar; sobretudo, é impossível, para eles, serem mortos, ao matar.

Sacrifício ou preservação de si

Ao contrário do esquema evolucionista, que Benjamin sugere, na verdade, apenas para melhor subvertê-lo, kamikaze e drone, arma de sacrifício e arma de autopreservação, não se sucederam de modo cronologiamente linear, um substituindo o outro, como a história à pré-história. Eles emergiram de modo conjunto, como duas táticas opostas que historicamente se contrapõem.

[caption id="attachment_34451" align="alignleft" width="336"] Drones em base dos EUA no Oceano Pacífico (U.S. Navy/Roberto Ruvalcaba)[/caption]

Em meados dos anos 1930, Vladimir Zworykin, um engenheiro da Radio Corporation of America (RCA), inquietou-se ao extremo quando leu um artigo sobre o exército japonês. Os nipônicos, soube ele, haviam começado a formar esquadrões de pilotos para aviões-suicidas. Bem antes da trágica surpresa de Pearl Harbour, Zworykin havia compreendido a amplitude da ameaça. “A eficácia deste método, é claro, ainda precisa ser demonstrada, mas se um treinamento psicológico das tropas neste nível fosse possível, este exército seria uma dos mais perigosos. Como dificilmente podemos esperar que algo semelhante seja introduzido em nosso país, devemos recorrer a nossa superioridade técnica para resolver o problema”4. Na época, já existiam, nos Estados Unidos, protótipos de “aviões radiocontrolados” que podiam servir de torpedos aéreos. Mas havia um problema: estes engenhos telecomandados eram cegos: eles “perdem eficácia assim que se rompe o contato visual com a base que os dirige. Os japoneses, ao que parece, encontraram uma solução para este problema”. Sua solução era o kamikaze: como o piloto tem olhos, e está preparado para morrer, ele pode guiar a máquina até o fim, rumo ao alvo.

Mas Zworykin também era, na RCA, um dos pioneiros da televisão. E a solução estava ali. “Um meio possível de obter praticamente os mesmos resultados do piloto-suicida consiste em equipar o torpedo radiocontrolado com um olho elétrico5. O operador estaria, então, em condições de enxergar o alvo até o fim e de guiar visualmente a arma, por comando de rádio, até o ponto de impacto.

Não deixar na cabine do avião nada além da retina elétrica do piloto, seu corpo recuado em outro lugar, fora do alcance das defesas antiaéreas inimigas. A partir deste princípio, o da acoplagem entre a televisão e o avião telecomandado, Zworykin descobriu a fórmula que iria se converter, bem mais tarde, em smart bomb (“bomba inteligente”) e, ao mesmo tempo, drone armado.

O texto de Zworykin é notável porque concebe o ancestral do drone – já numa das primeiras formulações teóricas – como o anti-kamikiaze. Não apenas do ponto de vista lógico (o da definição) mas também, e sobretudo, no plano tático: é a arma-resposta, tanto como antídoto quanto como estrela gêmea. Drone e kamikaze constituem duas opções práticas opostas, para resolver um único problema, o de dirigir a bomba até seu alvo. O que os japoneses acreditaram realizar por meio da superioridade de sua moral de sacrifício, os norte-americanos obterão pela supremacia de sua tecnologia material. O que os primeiros esperavam alcançar pela via do treinamento psicológico, será efetuado pelos segundos por procedimentos de pura técnica. A gênese conceitual do drone se dá numa economia ético-técnica da vida e da morte em que o poder tecnológico assume o lugar de uma forma de sacrifício inexigível. De uma lado, combatentes valorosos, prontos a sacrificar-se pela causa; de outro, máquinas-fantasmas.

O antagonismo entre kamikaze e telecomando está vivo hoje. Atentados-suicidas contra atentados-fantasmas. A polaridade é, em primeiro lugar, econômica. Ela opõe os que possuem o capital e a teconologia aos que só têm seu corpo como arma de combate. A estes dois sistemas materiais e táticos correspondem dois sistemas éticos – ética do sacrifício heróico de um lado; ética da preservação vital, do outro.

Drone e kamikaze contrapõem-se como dois padrões opostos da sensibilidade moral. Dois ethos que se enfrentam num espelho em que cada um é, ao mesmo tempo, antítese e pesadelo do outro. O que está em jogo nesta diferença, ao menos na superfície aparente, é uma certa concepção das relações diante da morte – a sua e a de outros –, do sacrifício ou da preservação de si, do perigo e da coragem, da vulnerabilidade e da destrutividade. Duas economias políticas e afetivas da relação com a morte – uma em que alguém a inflige, outra em que alguém se expõe a ela. Mas também duas concepções opostas do horror, duas visões do horror.

Richard Cohen, editorialista do Washington Post, expôs seu ponto de vista. “Os combatentes talibans vão além de não apreciar a vida, eles a desperdiçam gratuitamente em atentados suicidas. É difícil imaginar um kamikaze americano6. Ele insiste: “Não existe um kamikaze americano. Nós não exaltamos os autores de atentados-suicidas, nós não apresentamos seus filhos diante das câmeras de TV para que outras crianças as invejem. Para nós, isso é incômodo; provoca calafrios. É repugnante”. E acrescenta, complacente: “Mas talvez tenhamos nos apegado demais à vida7.

“Incomodar”, “provocar calafrios”, “repugnar” é, portanto, morrer na luta e glorificar-se por isso. O velho ídolo do sacrifício gerreiro, que cai de seu pedestal e é imediatamente saqueado pelo inimigo, converte-se no pior dos frustrados, no cúmulo do horror moral. O sacrifício, incompreensível e ignóbil, é automaticamente interpretado como desprezo à vida – sem levar em conta que ele talvez implique, mais que isso, desprezo à morte. E se opõe a ele uma ética de suposto amor à vida – da qual o drone é, sem dúvida, a expressão acabada.

Firula final, concede-se que “nós” prezamos tanto a vida que às vezes nos apegamos a ela de modo excessivo. Um amor demais, que seria desculpável se tanta autocomplacência não fizesse suspeitar de amor próprio. Porque, ao contrário do que o autor sustenta, são as “nossas” vidas – e não “a” vida em geral que amamos. Se um kamikaze norte-americano é inconcebível, lugar-nenhum no mapa do pensável, é porque seria um oxímoro. A vida, aqui, não saberia negar a si mesma. E com razão: ela só nega a dos outros.

Quem é covarde?

Interrogado por um jornalista interessado em saber se é “verdade que os palestinos não se preocupam com a vida humana, nem sequer a dos mais próximos”, Eyad El-Sarraj, diretor do programa de saúde mental de Gaza, deu a seguinte resposta: “Como você pode acreditar em sua própria humanidade, se não acredita na humanidade do inimigo8”?

Horror por horror, por que matar sem se expor a perder a vida seria menos horrível que fazê-lo compartilhando a mesma sorte das vítimas? Em quê uma arma que permite matar sem perigo algum seria menos repugnante que o oposto? A acadêmica britânica Jacqueline Rose, espantada pelo fato de que “despejar bombas de fragmentação é considerado pelos governantes ocidentais menos repugnante e, além disso, moralmente superior”, interroga-se: “A razão pela qual morrer com sua vítima deve ser considerado um pecado maior que poupar a própria vida ao matar não está clara”9. Hugh Gusterson acrescenta: “um antropólogo que viesse de Marte poderia notar que muitos, no Oriente Médio, ressentem-se dos ataques de drones norte-americanos exatamente como Richard Cohen [o editorialista do Washington Post] diante dos atentados suicidas. Os ataques de drones são vistos amplamente como covardes, porque seus pilotos matam gente em terra a partir do espaço seguro de um casulo climatizado em Nevada, sem o menor risco de ser morto por aqueles que ataca10.”

O antropólogo Talal Asad sugere que o horror suscitado pelos atentados suicidas nas sociedades ocidentais repousa no fato de que o autor do crime, por meio de seu gesto, interdita a priori qualquer mecanismo de justiça retributiva. Ao morrer com sua vítima, ao coagular num único ato crime e castigo, ele torna a punição impossível e desativa o recurso fundamental de uma justiça pensada a partir de lógica penal. Ele não poderá jamais “pagar por aquilo que fez”.

O horror suscitado pela ideia de morte provocada por máquinas sem piloto tem, é claro, algo de similar. “O operador do drone”, prossegue Gusterson, “é igualmente uma imagem-espelho do atentado suicida no sentido em que também se afasta, mesmo em direação oposta, de nossa imagem paradigmática do combate.”  

1Diretor de robótica no Centro dos Sistemas de Guerra Naval e Espacial de San Diego (Spawar). Citado por Peter W. Singer, Wired for War : The Robotics Revolution and Conflict in the 21st Century, Penguin Books, Nova York, 2009.

2Walter Benjamin, A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica, 1955, disponível na internet.

3Ibidem

4Vladimir K. Zworykin, “Flying Torpedo with an Electric Eye” [“Torpedo voador com olho elétrico”], 1934, em Television, vol. IV, RCA, Princeton, 1947.

5Ibidem

6Richard Cohen, “Obama needs more than personality to win in Afghanistan”, The Washington Post, 6/10/2009.

7Richard Cohen, “Is the Afghanistan surge worth the lives that will be lost?”, The Washington Post, 8/12/2009.

8“Suicide bombers: Dignity, despair, and the need for hope”. Entrevista com Eyad El Sarraj”, Journal of Palestine Studies, Washington, vol. 31, nº 4, verão de 2002 (citado por Jacqueline Rose, em “Deadly embrace”, London Review of Books, vol. 26, nº 21, 4/11/2004.

9Ibidem 10Hugh Gusterson, “An American suicide bomber?”, Bulletin of the Atomic Scientists, 20/1/2010.