Escrito en
GLOBAL
el
A batalha no Egito é por uma democracia que reflita a diversidade política do país, contra o que parece ser um autoritarismo remodelado, liderado pela Fraternidade Muçulmana e seus aliados
Por Ahmad Shokr, Middle East Research and Information Project, MERIP. Publicado no Redecastorpohoto.
“Why the Anti-Mursi Protesters Are Right”. Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Quem passe os olhos pela cobertura da mídia nos EUA e as análises sobre a crise do Egito nas duas últimas semanas, acabará desapontado. Os protestos contra o presidente Mohamed Mursi (eleito) estão em escalada, mas os principais atores e os projetos em disputa aparecem sempre mal caracterizados. Alguém perguntará: e por que isso importa?
As discussões sobre o atual momento do Egito são importantes nos EUA, precisamente porque a Fraternidade Muçulmana está em plena campanha para construir legitimidade internacional. O fato de que tenham equipe de especialistas em política exterior, altamente qualificados, trabalhando para eles em Washington, quando ainda sequer conseguiram criar condições razoáveis para discutir com a oposição externa, é eloquente.
Analistas e comentaristas norte-americanos liberais, desejosos de se afastarem do legado de islamofobia que restou do pós-11/9, e querendo dar aos islamistas recém-eleitos uma chance justa, parecem ter posto de lado as adesões que os motivem no plano interno nos EUA, para modelar alguma compreensão do que está acontecendo no Egito. Nesse processo, estão reforçando inúmeras preconcepções erradas.
Primeira preconcepção errada: “Há no Egito, sobretudo, uma divisão entre islamismo e secularismo”
Essa é, com certeza, a linha que a Fraternidade Muçulmana tentou projetar por seus porta-vozes e representantes. Mas, olhada a questão pelo outro lado, tudo é bem diferente. Nenhum dos líderes da oposição rejeitou a ideia, sempre presente, de que os princípios da Xaria, a lei islâmica, devem ser fonte de direito, como estipula o artigo 2º da Constituição. Nem qualquer deles exige total separação entre religião e política. Nas ruas, tanto quanto sei, não se vê nenhum slogan ou canto que clame por secularismo. A fúria da oposição tem alvo mais bem definido: a Fraternidade Muçulmana, que, para a oposição, está tentando dominar a política egípcia. Esses medos fundamentam-se nas ações da FM, ao longo dos últimos dois anos.
A desconfiança entre a FM e os que lhe fazem oposição vem crescendo há muito tempo. Tem menos a ver com convicções religiosas e, mais, com escolhas políticas. Desde a deposição de Mubarak, a FM sempre manifestou desprezo pelos demais grupos de oposição e pouco interesse em construir algum consenso e um mapa do caminho de alguma transição política , com os fundamentos de uma nova ordem política. Em vez disso, apressaram as eleições, sabendo que, naquelas circunstâncias melhoravam suas chances eleitorais; e emergiram como poder eleito, não como parceiros de uma revolução democrática. Quando os manifestantes voltaram à Praça Tahrir, em novembro de 2011, para exigir transferência menos abrupta e mais genuína de poder aos civis, os Irmãos afastaram-se e disseram que os protestos estariam sendo instigados por sabotadores, trabalhando para prejudicar o bom andamento das eleições parlamentares.
Depois de trair a promessa que tinham feito de não apresentar candidato à presidência e de vencerem as eleições em junho (em parte porque atraíram os votos de não islâmicos que temiam uma restauração do velho regime de Ahmad Shafiq), os Irmãos não constituíram Assembleia Constituinte mais inclusiva (a Assembleia continuou dominada pelos islamistas). Depois de uma série de boicotes e deserções, muitos grupos – cristãos, mulheres, liberais, a esquerda – acabaram praticamente sem representantes.
Nesse contexto, surgiu o decreto de Mursi do dia 22/11, o qual, para muitos, foi a gota d’água que fez transbordar o copo. Ao assegurar-se poderes para ele mesmo e correr a convocar um referendo, já para 15/12, para confirmar a nova Constituição, Mursi deixou os egípcios sem outras opções: ou ser governados por uma Constituição pouco representativa, ou por um ditador. Muitos recusaram esse tipo de chantagem política.
Figuras destacadas da oposição, muitos dos quais dissidentes da época de Mubarak, exigiram que Mursi revogasse o decreto [o decreto foi revogado hoje, 8-9/12. [Ver, sobre isso de 9/12/2012, Al-Jazeera em: “Egypt’ s Morsi rescinds controversial decree” (com vídeo) (NTs)], e ampliasse o processo de redação da nova Constituição. Grupos egípcios de direitos humanos, praticamente com unanimidade, fizeram eco a essas demandas. Dezenas de milhares que participaram dos protestos que derrubaram Mubarak voltaram às ruas. Não lutam por qualquer espécie de secularismo mal definido; querem, isso sim, inclusão e democracia.
Segunda premissa errada: “Os islamistas são autênticos representantes da maioria dos egípcios”
O corolário, claro, é que a oposição representaria uma minoria secular contrária ao governo dos islamistas e que não estaria disposta a aceitar o resultado de eleições legítimas. Um analista do International Crisis Group disse ao New York Times que os protestos persistem, porque a oposição não consegue “aceitar essas derrotas; e tenta deslegitimar a Fraternidade Muçulmana”. Embora essa interpretação talvez se aplique às elites da era Mubarak, que perdem espaço sob o novo regime, absolutamente não explica os milhares de manifestantes que se opõe, de fato, às manobras antidemocráticas de Mursi.
Não há qualquer tipo de constatação empírica que demarque maioria definitória, no Egito. Os dois campos, a Fraternidade Muçulmana (e seus aliados islamistas, inclusive os salafistas) e a oposição são capazes de reunir centenas de milhares de manifestantes nas ruas – o que se viu claramente nas duas últimas semanas, prova de que a polarização aprofunda-se na sociedade egípcia. Mursi venceu as eleições por diferença muito pequena, maioria de 51% dos votos, o que sugere que o campo islamista não seja tão claramente representativo das grandes massas eleitorais no Egito, como diz ser.
Aí parece estar o impasse crucial da crise política no Egito. Com a Fraternidade Muçulmana convencida de que conta com o apoio da maioria dos egípcios, e de que a oposição não passaria de uma pequena elite já sem poder, os Irmãos agiram como se tivessem mandato democrático de direito e de fato para abrir atalhos pelo processo político. Até que seus líderes parem de pensar em termos de maiorias e minorias, e reconheçam que há grupos eleitorais diferentes no Egito, que vários deles são gigantescos e têm aspirações legítimas a partilhar os frutos da revolução, o impasse, mais provavelmente, persistirá. E as coisas podem piorar: os Irmãos podem tentar recorrer à repressão policial contra a oposição.
O incitamento entre Irmãos da FM, para entrarem em confronto aberto com manifestantes da oposição na 4ª-feira (5/12/2012); e as ameaças de Mursi de que usaria força policial legal contra figuras políticas que, para ele, estão financiando o caos e a violência, podem empurrar o Egito para caminho perigoso.
Terceiro erro de análise: “Mursi deu grandes passos na direção da democracia civil; se cair, pode facilitar a volta de uma ditadura dos militares”.
Acusações de que, ao bloquear o processo político, a oposição visa a um golpe interpreta erradamente o papel dos militares na atual crise. O exército também está interessado na atual versão da Constituição, que preserva intactas suas prerrogativas centrais: orçamento secreto, controle militar sobre o Ministério da Defesa, voz ativa nas decisões de segurança nacional e o direito de julgar civis em tribunais militares. Os generais livram-se de ter de encontrar parceiro civil que administre o dia a dia do governo, ao mesmo tempo em que mantêm a autonomia para cuidar de seus próprios interesses, bem longe dos olhos de qualquer controle democrático.
Essas concessões fazem perfeito sentido com o padrão dos Irmãos, de não hostilizar os generais no caso de qualquer ameaça ao caminho da FM até o poder.
A versão hoje existente de Constituição, a ser votada, não manifesta um consenso democrático, como muitos da oposição diziam que teria de manifestar. Reflete um relacionamento nascente entre a Fraternidade Muçulmana e as instituições já existentes no Estado egípcio, como o Exército, além de cuidar de acalmar os salafistas, que os Irmãos adotaram como novos parceiros.
A pressa para obter o referendo sugere profunda ansiedade entre as elites do Estado com a instabilidade crescente, e um desejo de aproveitar a oportunidade para cimentar, o mais rapidamente possível, um novo quadro político. Mais preocupante do que o próprio texto, é a visão que esses líderes têm sobre que vozes contam mais e que alianças são mais importantes no novo Egito. Se ninguém contestar essa visão, os principais perdedores serão os que mais clamam por um sistema mais pluralista e inclusivo.
Em mensagem do dia 6/12, Jason Brownlee escreve: “É importante que o debate ideológico entre o secularismo liberal e o islamismo não seja visto como batalha entre democracia e autoritarismo”. Talvez os recentes eventos no Egito exijam que se repensem esses termos. Claro que secularismo liberal e democracia não são automaticamente co-ocorrentes; como o islamismo e o autoritarismo tampouco o são. A batalha no Egito é, de fato, batalha por uma democracia que reflita a diversidade política do país, contra o que mais parece ser um autoritarismo remodelado, liderado pela Fraternidade Muçulmana e seus aliados, que tentam assumir o controle.