O novo arcabouço fiscal (Projeto de Lei Complementar (PLP) 93/23, do Poder Executivo) vai ser votado nesta quarta-feira (24) na Câmara e, se aprovado, vai substituir o atual teto de gastos, aprovado no governo Temer, em 2016, após o golpe contra Dilma Rousseff. Na opinião do professor de economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Marcio Pochmann, a aprovação das novas regras fiscais é essencial para o governo Lula enfrentar a herança golpista e ainda se livrar de uma espécie de parlamentarismo que se instalou no País. "Deputados e senadores se tornaram cada vez mais gestores públicos, responsáveis pelo orçamento. Não apenas por meio de emendas, mas também pelo controle dos gastos, estabelecido pelo teto de gastos.
Pochmann acredita que o texto apresentado pelo governo Lula reflete uma postura de não enfrentamento ao Legislativo, ao contrário do que fez Dilma em seu segundo mandato e de João Goulart. O economista ainda aposta num crescimento maior do Brasil apenas em 2024 e relembra como foram os anos de 2002 e de 2003, primeiro ano de governo Lula. Pochmann ainda comenta a influência da alta taxa de juros do Banco Central para a economia.
Confira a entrevista na íntegra concedida aos jornalistas Dri Delorenzo, Cynara Menezes e Renato Rovai no programa Fórum Onze e Meia exibido no canal da Revista Fórum no YouTube.
Qual é a sua opinião sobre a votação novo arcabouço fiscal?
Esta semana é bastante interessante no âmbito legislativo porque há vários temas em pauta, inclusive diversas medidas provisórias que vencem agora em maio, as quais foram adotadas no início do governo. Isso é preocupante, pois se essas medidas provisórias não forem votadas, perdem validade. Isso inclui a montagem do poder executivo atual, os ministérios e as decisões tributárias, entre outros.
Mas, em relação às novas regras do arcabouço fiscal, parece que está relativamente acordado devido à atuação do presidente Lula e sua equipe junto ao parlamento. Certamente, essa é a primeira grande decisão importante para o governo. Tivemos poucas votações, o parlamento parecia estar parado devido a questões internas e disputas, mas agora temos a chance de avaliar até que ponto o governo e o presidente Lula têm influência, pelo menos em questões mais específicas como essa que teremos nesta semana, com destaque para o tema do arcabouço. Parece que como a urgência foi aprovada, na semana passada, teremos uma margem considerável para o governo. Então, parece que temos condições de aprovar isso nesta semana.
Quais as consequências para o país da aprovação do arcabouço? Quais as consequências para a economia do país? Tenho me preocupado em abordar não apenas a economia, mas também aspectos relacionados à economia política. Entendo que esse tem sido o tom do presidente Lula, colocando a economia subordinada à política, desde a campanha passada. O tema da economia, que era preponderante antes, perdeu o sentido em relação aos aspectos de condução e articulação política.
Nesse sentido, considero muito importante a aprovação dessas regras fiscais por um aspecto decisivo no enfrentamento da herança golpista que o presidente Lula assumiu. Portanto, além das consequências econômicas, é essencial entender que essa aprovação tem um papel fundamental no contexto político atual.
Vamos lembrar que em 2016 tivemos três medidas que estão sendo questionadas pelo governo atual. Uma delas, relacionada à privatização da Petrobrás, já está encaminhada. A nova diretoria e a política de preços para os combustíveis apontam para uma direção diferente do que vinha sendo feito. Há muito a fazer no campo do petróleo e gás, mas desde o início do governo, podemos perceber uma mudança em relação ao período pós-golpe de 2016.
Outro aspecto é a lei do teto, aprovada em 2016. Essa lei não foi cumprida, tanto no governo Temer quanto no governo Bolsonaro. No entanto, o ponto fundamental é que essa lei, na minha opinião, funcionava como um parlamentarismo sem partidos. Ou seja, saímos do presidencialismo de coalizão que marcou a Nova República para um período em que o poder parlamentar se tornou maior do que o poder do Executivo. Isso representou uma transformação profunda no papel do Legislativo, com deputados e senadores se tornando cada vez mais gestores públicos, responsáveis pelo Orçamento.
Não apenas por meio de emendas, mas também pelo controle dos gastos, estabelecido pelo teto de gastos. Assim, os dois presidentes anteriores tiveram interesse e necessidade de ampliar os recursos além do teto de despesas, e isso foi possível, mas condicionado ao Poder Legislativo.
Acredito que o presidente Lula está fazendo um movimento importante para se desvencilhar desse parlamentarismo sem partidos, considerando a quantidade de partidos que temos e a falta de uma base ideológica programática. No ano passado, foi aprovada uma emenda constitucional de transição que recompôs o orçamento para 2023, deixando de fora a proposta do governo anterior de reduzir o orçamento em R$ 150 bilhões em comparação a 2022. Isso já sinalizava uma contração econômica no país. Além disso, a lei do teto de gastos precisa ser regulamentada em uma lei ordinária.
Se isso for aprovado, acredito que o governo fica mais distante de sofrer pedidos de impeachment relacionados a problemas fiscais, que foram a base do impeachment da presidente Dilma. Isso tem importância política. No entanto, é importante ressaltar que ainda não sabemos como será aprovado, já que o relator apresentou um substitutivo. Mas, na minha opinião, o que o governo enviou ao parlamento é melhor do que o teto de gastos, mesmo que continuemos tendo um limite para os gastos. Isso não resolverá o problema da falta de crescimento do país nos últimos dez anos.
Entendo que a agenda de crescimento, reindustrialização e economia para os próximos quatro anos está sendo desenvolvida em outra esfera, por meio dos esforços do presidente Lula em reconstruir o tripé do investimento. Isso envolve a atração de recursos externos, o que ele tem feito com propriedade e ousadia, além do uso de recursos públicos, considerando a grande reserva internacional que o Brasil possui. Talvez não seja necessário o volume atual de recursos, e o Brasil possui recursos internos que poderiam ser direcionados se tivéssemos taxas de juros mais baixas.
Portanto, acredito que a questão econômica, que tem chamado a atenção de muitos colegas, devido às restrições impostas pelo arcabouço fiscal, não será a principal alavanca para o crescimento econômico. Acredito que a retomada dos investimentos nesse novo tripé de investimento brasileiro, com investimentos externos articulados com investimentos público e privado nacionais, será a saída para a economia.
Para concluir, durante o governo do presidente Lula, tanto no primeiro como no segundo mandato, enfrentamos uma forte austeridade fiscal, com superávits fiscais expressivos, e mesmo assim a economia continuou crescendo. Isso se deu, em parte, pelo ciclo de commodities e pelas exportações. Portanto, acredito que a solução para a economia virá por meio do investimento externo articulado com o investimento público e privado nacional, e não apenas pelas regras fiscais, que considero mais um componente de proteção contra riscos políticos, como um impeachment em um contexto parlamentar complexo.
Entendi. Eu ia te perguntar justamente isso porque o pessoal mais crítico em relação ao novo arcabouço fiscal argumenta que é apenas uma variação do teto de gastos, e você está rebatendo essa linha de raciocínio, afirmando que não é bem assim, certo?
Exatamente, não é a mesma coisa. No entanto, as pessoas e os estudiosos que chamam atenção para os problemas econômicos relacionados aos gastos têm suas razões. Mas, na verdade, do ponto de vista político, o presidente Lula adotou uma postura de não confronto com o Legislativo. Ele poderia ter seguido a trajetória da presidente Dilma em seu segundo mandato, quando fez oposição ao que estava em curso no Parlamento.
O presidente Lula poderia ter seguido a trajetória do governo João Goulart, que propôs reformas interessantes e avançadas, mas não tinha base política e social. Entendo que o presidente Lula venceu as eleições, mas não tem uma maioria parlamentar. Isso não é um impedimento para o avanço do país, mas leva um pouco mais de tempo. Pelo menos é assim que vejo. Ele está buscando construir uma maioria além do Parlamento, uma maioria com o povo.
É importante ressaltar vários pontos que estão sendo conduzidos em um governo com um início muito curto. Primeiramente, a formação do conselhão parece ser um ponto importante de reconexão do governo com a sociedade civil. A ampliação dos ministérios também permite que cada área, como a questão ambiental mencionada sobre a Marina e os ambientalistas, abra-se para a sociedade, promovendo a construção de uma maioria por meio da articulação do debate.
Foi lançado recentemente um movimento de participação na elaboração do Plano Plurianual, o qual demonstra o esforço do governo em se abrir para a sociedade. Também está sendo encaminhada ao parlamento uma proposta de novo financiamento das entidades sindicais, visando a recuperação dos sindicatos. O governo está buscando uma nova maioria e isso se assemelha ao que o governo de Juscelino Kubitschek fez na segunda metade dos anos 1950, quando não tinha maioria na câmara. Ele promoveu um projeto, o Plano de Metas, em articulação com a sociedade civil e a comunidade internacional.
O presidente Lula está muito vocacionado nessa mobilização para desmanchar a herança do golpe e, ao mesmo tempo, estabelecer bases sólidas para dar passos firmes e largos. Minha fala pode parecer otimista, mas baseio-me em fundamentos econômicos e políticos. Em termos econômicos, vejo que o esforço pelo arcabouço fiscal e pelo PPP (Plano Plurianual) pode levar o Brasil a retomar um crescimento em torno de 3% a 4% ao ano. No entanto, não acredito que isso ocorrerá já este ano, em 2023. A economia deve crescer menos que no ano passado.
De certa forma, isso pode ser comparável ao que aconteceu há cerca de vinte anos, em 2003, no início do governo do presidente Lula. Naquele momento, enfrentamos a opção de elevar a taxa de juros e lidar com questões inflacionárias, além de implementar medidas de ajuste fiscal. Em 2002, a economia cresceu cerca de 3,9%, segundo o IBGE, e no primeiro ano do governo do presidente Lula, em 2003, cresceu 1,1%.
Começamos o governo com um ritmo menor. No entanto, em 2004, quando ocorreram as eleições municipais, a economia cresceu mais de 5%, e o Partido dos Trabalhadores teve seu melhor desempenho eleitoral nas eleições municipais, apesar de ter perdido a prefeitura de São Paulo.
Entendo que esse cálculo político-econômico está sendo conduzido. Temos um ano mais fraco, o momento de organizar o Estado e articular com a sociedade civil para que possamos ter um crescimento melhor no ano que vem. Esse primeiro ano de governo não é operado apenas com o orçamento proposto. O presidente Lula realizou uma ação importante com a emenda em dezembro do ano passado, mas a estrutura do governo não era do PT.
É um ano de preparação, quase um passo atrás para dar dois passos à frente. Eu entendo que, a partir do próximo ano, que é decisivo em termos eleitorais, precisamos ter uma economia mais ajustada, com uma forte articulação dos investimentos. Essa é uma questão central que pode viabilizar tanto a transição ecológica que está sendo pensada quanto a reindustrialização em novas bases.
Vejo que esse tem sido um sentido muito importante nas saídas do presidente Lula em visita a outros países. Ele está recolocando a questão do Brasil no mundo, o que é muito relevante para abrir espaço para investimentos atrativos e promover a expansão do país.
Vale lembrar que o governo anterior foi marcado pela saída de empresas, como a Ford, por exemplo, após muitos anos de presença no Brasil. Este é um momento de construção. Isso não invalida as críticas que algumas pessoas fazem. Eu considero essas críticas válidas como um alerta ao governo.
No entanto, o governo opera em uma esfera mais ampla, que é a esfera política, além da esfera econômica. Não podemos pensar apenas na economia, pois uma parte importante da condução econômica está nas esferas política e interna. Resumindo para o público em geral, o crescimento econômico será menor em 2023. Estimam-se taxas em torno de 1,5%, conforme as últimas previsões. Tinha chegado até a falar em 0,8%, mas estou mais inclinado a acreditar em um pouco mais. Posteriormente, poderia chegar a cerca de 3% de crescimento.
Acredito que seja possível alcançar isso se conseguirmos garantir decisões de investimento de grandes empresas. Na verdade, precisamos de um salto na infraestrutura. As conversas realizadas, por exemplo, na China, parecem alvissareiras para a retomada de investimentos e financiamentos de médio e longo prazo. O papel da presidenta Dilma no Novo Banco de Desenvolvimento é outro elemento significativo nesse contexto histórico, em que há um deslocamento do centro do mundo do Ocidente para o Oriente.
No entanto, é importante mencionar que estamos falando sobre hipóteses, pois não sabemos como a economia internacional irá se comportar, por exemplo. Há uma certa controvérsia sobre o que está ocorrendo no Brasil, com dados apontando em direções diferentes. Precisamos aguardar até o 1º de junho, quando o IBGE irá divulgar o PIB do primeiro trimestre deste ano. Se for negativo, o governo, a equipe econômica e o presidente Lula terão que fazer uma mudança, uma intervenção diferente na economia. Mas se o PIB for positivo, em termos de variação, pois os dados antecedentes do Banco Central mostraram um trimestre melhor, também é importante lembrar que esses dados antecipatórios não têm sido muito precisos.
Se observarmos a série histórica, mesmo o Banco Central não tem acertado muito. Há informações de que determinados setores não estão bem, como o imobiliário e o automobilístico, por exemplo, mas há outros setores em que a economia aparenta estar melhor. Portanto, precisamos aguardar um pouco mais para compreender o que está realmente acontecendo, o que o IBGE revelará e assim ter uma visão mais clara do desempenho do país ao longo do ano de 2023.
A expectativa de um crescimento menor em 2023 está relacionada à presença de Roberto Campos Neto no Banco Central, especialmente no que diz respeito à taxa de juros?
Essa questão é central na determinação dos investimentos, especialmente em um país onde uma parcela significativa de empresas e famílias está endividada. A manutenção da taxa de juros em um patamar elevado implica, na verdade, transferência de recursos para os credores em detrimento da atividade econômica em si. Isso é um elemento perturbador e o presidente Lula tem destacado como essa posição do Banco Central tem limitado as possibilidades de um melhor crescimento econômico em 2023.
No entanto, acredito que as medidas adotadas pelo governo atual em relação ao Banco Central, como a aprovação de novas regras que sinalizam responsabilidade fiscal, podem influenciar uma possível alteração na trajetória dos juros. Essa é uma questão de natureza política, visto que o atual presidente do Banco Central parece expressar mais a visão do governo passado do que as intenções do governo presente.
Vamos aguardar para ver o desfecho da votação na quarta-feira. Alguns estrategistas indicam que seria melhor o governo Lula ter oferecido uma proposta com um nível mais alto para então poder ser negociado e rebaixado, pois essa é uma parte das negociações com o legislativo. Quando se leva algo muito justo, as alterações podem ser perturbadoras. O substitutivo apresentado possui mudanças que podem complicar de certa maneira, mas é necessário aguardar o resultado final para uma avaliação mais definitiva