ATIVISMO

Raull Santiago: empreendedorismo com consciência de classe, do Alemão a Nova York

Em conversa com a Fórum, embaixador da Brazilian Week 2024 conta um pouco de sua trajetória e diferencia: empreendedor não é "sobrevivedor"

Raull Santiago: do Complexo para o mundoCréditos: Divulgação
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Raull Santiago é um nome importante para entender o ativismo antirracista no Brasil nos últimos anos. O jovem cria do Complexo do Alemão e fundador do coletivo Papo Reto se tornou uma importante voz do movimento negro nas redes e nas ruas, mas também coleciona sucessos em sua carreira como empreendedor.

Hoje, Santiago é um dos embaixadores do festival Brazilian Week 2024, que ocorrerá na Universidade de Columbia, em Nova Iorque, e busca promover uma plataforma de negócios e sustentabilidade com protagonismo brasileiro.

Mas seu papo sobre negócios não é despido de política: o ativista destaca que não é possível se esquecer da consciência de classe e das desigualdades na hora de ter uma conversa séria sobre negócios. E ele compartilhou um pouco de suas ideias com a Fórum.

Revista Fórum: Raull, a Fórum sempre cobriu seu trabalho como ativista contra o racismo e contra a violência policial, inclusive a sua prisão, um caso ilegal e racista, no início de 2020. Hoje, você é um dos embaixadores da Brazilian Week. Como conciliar essa postura de, simultaneamente, ser um empreendedor de sucesso e, simultaneamente, um ativista contra a violência racista nas periferias do Brasil?

Raull Santiago: Eu gosto muito dessa pergunta, pois antes de me perceber ativista, eu sempre fui um sobrevivedor, que é a palavra que uso para resumir o que é ter que empreender por sobrevivência. Quando jovem eu trabalhei na obra com meu pai, vendia água na rua, "vendia" força braçal em troca de alguma moeda, carregando as compras das pessoas, favela acima, realizei alguns eventos culturais, tinha barraca de rua nos carnavais, vendendo bebida e comida, ou seja, eu sempre empreendi, principalmente como alguém bom de vendas, bom com as palavras. E nesse fluxo, também encontrei os projetos sociais na minha favela, que me salvaram e trouxeram consciência crítica. Alguns anos depois, criei meu primeiro projeto social, onde com a astúcia das ruas, a vivência dos becos e vielas e os aprendizados dos projetos pelos quais passei, tenho conseguido, ao lado de pessoas incríveis, entregar muito resultado. Porém, vindo de uma família rica de amor, mas sem muita grana, eu sabia que precisava continuar empreendendo, ainda mais tendo quatro filhos, foi assim que consegui equilibrar as coisas e voltei aos negócios. 

Acredito que esses conjuntos de expertises, junto a consciência de classe é que me dão força para lidar com a desigualdade perpetuada pelo racismo, ainda tão presente neste país. E apesar das violências já vividas, minha resposta sempre será com mais trabalho, focando em mudar essa realidade. 

RF: Como você avalia o cenário para os empreendedores no Brasil a partir das políticas recentes e o clima econômico para o empreendedorismo periférico no nosso país?

RS: Em um país continental como o nosso, a desigualdade é gigante e empreender não é fácil. E vindo de uma realidade de favelas e periferias, isso é ainda mais difícil. Há alguns anos atrás, se eu tentasse conseguir um curso ou emprego no Rio de Janeiro, eu precisava mentir meu endereço, pois falar que sou do Complexo do Alemão fechava as portas. 

Isso é algo brutal, violento, marcante e infelizmente ainda acontece. Não há romantismo ou mérito em realidades de desigualdade tão profundas. É preciso investir em educação real e em formatos diversos, para que cada mais vez a as pessoas desse país percebam que ser antirracista, agir pelo bem estar climático e ambiental, garantir direitos a todas as pessoas e ter diversidades desde o espaço de criação até o de tomada de decisão, é a única possibilidade de transformação real e impacto positivo da nação. 

Somos um país enorme e diverso, que nos permite ter possibilidades incríveis de empreender. As próprias favelas movimentam bilhões de recursos e são as massas populacionais que constroem a riqueza desse país, mas o que vemos é que elas ainda não participam da divisão desses lucros. Equalizar esse fato se faz necessário e é preciso debater incansavelmente e testar soluções diversas. 

RF: De que maneira você enxerga o papel do empreendedorismo no Brasil para o desenvolvimento econômico?  

RS: Eu acredito que o empreendedorismo é algo central para reduzirmos a desigualdade e impulsionar o desenvolvimento do país, mas precisamos pensar que empreendedorismo é esse, certo? Mais que isso, saber de que empreendedoras e empreendedores estamos falando… Se queremos ter um empreendedorismo forte e crescente, trazendo inovação e criatividade, isso precisa estar alinhado com investimentos direcionados para que isso aconteça.

O ambiente mais criativo que conheço são as favelas e periferias, mas também é lá que o termo empreendedor pode ser substituído por sobrevivedor, pois as pessoas empreendem inicialmente por sobrevivência, numa realidade em que você não tem "verba de risco" que possa ser perdida, muito menos um endereço que permita com tranquilidade abrir um CNPJ, mesmo um MEI. 

Ainda assim, as pessoas criam soluções financeiras e de impacto social que transformam pequenas realidades, mas que acessando investimento  e outras possibilidades de escalabilidade, aquele empreendimento pode se tornar uma solução bem maior e transformadora. 

Das frentes de negócios que criei,  a nossa agência BRECHA.hub e o espaço Central CPX estão entre os mais recentes e os desafios de manter os mesmos existindo são enormes. Eu sou um devorador das dicas da Nath Finanças por exemplo, pois eu acredito que educação financeira é central no empreendedorismo.

RF: Além do crédito, que outras políticas públicas devem acompanhar o apoio ao empreendedorismo no país?

RS: Crédito é central para que empreendedores experimentem e testem seus negócios e encontrem a maneira de escalar o que fazem. Mas em realidades de desigualdade, é preciso criar políticas públicas que possam reduzir o distanciamento, destinando soluções específicas, por exemplo, para quem está empreendendo a partir da favela. 

Além disso, é preciso promover uma cultura do empreendedorismo, usando a educação como ferramenta, trabalhando educação financeira, por exemplo. 

Ao mesmo tempo, acredito que já temos boas ferramentas, como o Simples Nacional, o MEI, o Programa Nacional de Apoio às Microempresas e Empresas de Pequeno Porte, mas que precisam ser constantemente melhorados e evoluídos, para realmente se tornarem acessíveis numa realidade de país onde ainda tem pessoas sem à água potável, alimentação segura ou mesmo acesso a internet.

RF: Durante as eleições de 2022, o Complexo foi alvo de uma campanha de desinformação contra o povo periférico. Hoje, você está representando o Alemão em NYC e Columbia. Qual é a sensação? E como a luta tem que continuar?

RS: É uma honra, enquanto um cria de favela, estar participando desse momento internacional que tem como objetivo exaltar e impulsionar o meu país. Sendo cria do Complexo de Favelas do Alemão, essa é uma responsabilidade enorme, pois é sobre a construção das novas narrativas que serão contadas num futuro próximo, contrapondo justamente o horror vivido durante as eleições de 2022 e ao longo da história.

A sensação que eu tenho é essa, de alegria e de muita responsabilidade. Ao mesmo tempo, eu vejo como um canal importante, justamente de fortalecimento do movimento que eu faço, através das lutas que queremos travar para reduzir desigualdades e garantir mais direitos no Brasil. Estou empolgado e pronto.

Sobre o Brazilian Week 2024

Em sua edição de estreia, a Brazilian Week ocorrerá de 12 a 15 de setembro no Lincoln Center e na Universidade de Columbia, em Nova Iorque.

Além de Raull, o festival vai reunir personalidades diversas como Bela Gil, Preto Zezé, em diálogos sobre desenvolvimento sustentável, nova economia, transição energética e inovação e tecnologia. 

Sob os eixos de economia criativa, desenvolvimento sustentável, tecnologia e inovação e transição energética, a plataforma-festival incluí uma conferência, rodada de negócios, festival cultural e a inauguração de escritório permanente no país mais rico do mundo e um dos maiores parceiros comerciais do Brasil.