ENTREVISTA

Joice Berth: O poder, tal qual conhecemos, nasceu para oprimir

Em entrevista ao Fórum Café, a escritora destacou a necessidade de aprofundar temas como o empoderamento, que pode ser uma ferramenta de manutenção de sistemas opressores.

Joice Berth, arquiteta, urbanista e psicanalistaCréditos: Reprodução/Instagram
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Na manhã desta segunda-feira, 31, Mauro Lopes e Rebeca Motta receberam a arquiteta, urbanista e psicanalista Joice Berth em uma conversa sobre empoderamento e direito à cidade. Berth tornou-se referência no debate desses temas, pois desenvolveu diversas teses sobre como a manutenção das desigualdades atravessa várias camadas sociais, desde as relações de poder na sociedade até o planejamento urbano que segrega os mais pobres às margens das cidades.

Joice lançou recentemente a obra "Se a cidade fosse nossa - racismos, falocentrismos e opressões nas cidades", que traça paralelos entre os conceitos da arquitetura e a vivência pessoal sobre feminismo e a crítica racial. No livro, a autora narra o processo de formação das cidades brasileiras desde a colonização e evidencia o quanto os projetos de urbanização, mesmo os mais recentes, estão contaminados por uma herança higienista que insiste em perpetuar.

Um exemplo disso é o PL (Projeto de Lei) 127/2023 aprovado em São Paulo pela câmara dos vereadores há pouco mais de um mês e que alterou diversos pontos do plano diretor em benefício dos mais ricos e define uma série de diretrizes para a urbanização da cidade, incluindo a atuação das grandes construtoras pelos próximos anos.

De acordo com dados do IBGE, a cidade de São Paulo possui 600 mil imóveis vazios, ao passo que concentra um número expressivo de pessoas vivendo em situação de rua - número que corresponde a 25% da população. Como se não bastasse esse cenário, o mercado imobiliário vive um "boom" enquanto a população amarga a maior crise habitacional do século.

Joice também é autora do livro "Empoderamento - Feminismos Plurais", que aprofunda, por meio da construção de um referencial teórico, os debates em relação ao que é tido como empoderamento, principalmente na era digital.

"Nos últimos dez anos, as militâncias e movimentos sociais conseguiram, através da internet, ter uma voz mais pronunciada e se colocar no debate público com suas questões. Só que isso tem um preço, porque a internet não é favorável ao debate mais aprofundado. A interface e as intenções não colaboram para isso - a gente não é boba! Estamos na rede social, mas sabemos que existe toda uma máquina capitalista sustentando aquilo", diz a entrevistada.

Para a autora, não evidenciar as estruturas das desigualdades é um perigo, pois pode direcionar a culpa da opressão para o oprimido. Aprofundar o debate é importante para chegar à raiz do problema, só assim será possível encontrar soluções palpáveis para as disparidades que a população enfrenta.

"É muito importante: quem está nos movimentos sociais precisa estudar, saber do que está falando e o que significa cada conceito. Essas definições são ferramentas de luta e não só palavras bonitas que a gente usa para dar um ar intelectual nas discussões. Quando se debruça sobre o conceito real do que é empoderamento, interseccionalidade, racismo estrutural, intolerância religiosa, entre outros, é possível que tudo isso se converta em política pública", defende a escritora.

Joice revela que, para se encontrar neste lugar de fala como uma mulher, negra e produtora de saber, precisou beber da fonte de outros pensadores, como Paulo Freire, Djamila Ribeiro, Lélia González, Milton Santos e outros que embasam sua narrativa. Foi com eles que ela aprendeu a nomear aquilo que antes estava no campo das ideias.

"A gente, como pessoa preta, pobre e periférica, já nasce dentro da ciranda das opressões, a gente sente as coisas muito fortes e nem sempre conseguimos verbalizar", conta ao explicar a importância de entender os conceitos para o desenvolvimento do conhecimento pessoal.

Joice defende que é um erro pensar que o empoderamento se encerra nas pautas da mulher; pelo contrário, para ela, o termo está para todas as lutas sociais e se materializa na retomada do poder social e político por meio dos atores envolvidos nelas.

"Enquanto houver um feminicídio, uma violência doméstica, genocídios contra jovens negros e perseguição contra a população LGBTQIA+, não haverá empoderamento. Se a gente não recolocar o poder numa perspectiva coletiva, fica muito difícil pensar em uma emancipação completa dentro da sociedade", conta.

A partir do viés da psicanálise, Joice reflete sobre como o bolsonarismo se tornou um agente de mitigação do empoderamento, uma vez que a luta contra o fascismo é uma guerra desigual e afeta a saúde mental de quem atua na linha de frente pela manutenção dos direitos básicos da população.

"Não é porque o Lula ganhou que vivemos em um novo mundo. Nesse momento do Brasil, onde o conservadorismo parece que foi, mas não foi, porque a gente tem um Bolsonaro inelegível, mas, como eu gosto de brincar, tá aí correndo gira pra permanecer de alguma forma conectado com os acontecimentos".

A luta política e psicológica está circulando na sociedade. O governo Bolsonaro tem a característica de ter feito uma guerra de nervos com a população que estava lúcida e lutando contra tudo o que ele representava, e a maneira como o bolsonarismo se articulou ficou muito no campo psíquico.

Joice encerra a entrevista parafraseando outro grande nome para o movimento negro, Lélia Gonzales, que diz em um de seus escritos que "Se você não traz a sua militância para a sua área de atuação profissional, você está fazendo alguma coisa errada".

Apesar de não se considerar militante, a autora revela que abraçou o desafio proposto por Lélia e busca entender o que a arquitetura tem a dizer sobre a questão racial ou o que o urbanista vê na cidade que está conectado com as opressões que estruturam a sociedade. No Brasil, não há outros escritores que pensam a metrópole por esse viés; Joice Berth é uma pioneira no pensamento crítico da formação das cidades em detrimento de quem vive nelas.

Para assistir ao episódio completo do Fórum Café, que contou também com a participação do jornalista Jeferson Miola e Elenira Vilela, acesse:

 

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