De tradição ancestral do maracá, instrumento que é símbolo de resistência para diversas etnias, os povos da Teko Haw Maraka’nà, localizada na Zona Norte do Rio de Janeiro, lutam pelo reconhecimento como território indígena em contexto urbano. Essa luta, travada há quase 20 anos, se junta ao anseio pelo reconhecimento do Estado de uma Universidade Indígena Pluriétnica na aldeia.
Estabelecidos no território desde 2006, a Aldeia Maracanã é um desdobramento do Centro de Etnoconhecimento Socioambiental Cauyeré (Cesac), no Complexo do Alemão, e funciona como um “ponto de acolhimento” para os indígenas que chegam aos centros urbanos e não encontram um “refúgio”. Potyra Guajajara, líder da aldeia, conta que quando chegou ao Rio de Janeiro, vinda do Maranhão, não encontrou nenhum polo indígena que realmente abordasse a cultura dos povos originários.
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“A gente viu que não tinha nada falando da cultura indígena no Rio de Janeiro, mesmo com tantos indígenas. Tinha o Museu do Índio, que tinha saído [da aldeia], mas era apenas a estrutura e fotos. Não tinha o ser humano. Não era discutido”, conta.
Junto a Urutau Guajajara, também liderança do local, eles iniciaram o Cesac. Posteriormente, ocuparam o espaço da Aldeia Maracanã, onde está o antigo Museu do Índio, estabelecido em 1953 após a criação do Serviço de Proteção ao Índio (SPI).
O prédio, que hoje se encontra deteriorado e abandonado pelo poder público, guardava o que Urutau e outros indígenas chamam de “o processo mais pesado do Brasil”. “O meu discurso não é romântico. A questão indígena, em todo território nacional, é muito grave, de denúncia o tempo todo. Só que não é ouvida não, nós somos invisíveis”, afirma Urutau.
Esse processo trata-se do Relatório Figueiredo, um documento com 1350 páginas sobre a história do genocídio dos povos originários desde 1500. Grande parte foi queimada em dois grandes incêndios: um em Brasília, em 1980, e outro na tragédia do Museu Nacional em 2018.
O documento é um levantamento minucioso do genocídio das comunidades indígenas. “São denúncias e denúncias de genocídio, maus tratos, mortes, assassinato dos povos originários”, conta Urutau. O processo é defendido pelo advogado Arão Guajajara.
Ataques
Desde a ocupação do território, em 2006, os integrantes da comunidade são alvos de ataques de pessoas e autoridades que os acusam de serem “menos indígenas” porque se localizam em ambiente urbano.
Em 2012, na preparação do Rio de Janeiro para receber a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016, a aldeia que se localiza ao lado do Estádio do Maracanã começou a sofrer um processo violento de remoção. “Nós tínhamos o Estado com um projeto para fazer o estacionamento, a princípio, para a Copa do Mundo e depois o shopping e todo o processo de mercantilização aqui dentro”, conta Mônica Lima Mura Manaú Arawak, professora da aldeia.
A empresa Odebrecht, que ganhou a licitação de concessão do estádio, iniciou as obras em um dos prédios anexos à Aldeia Maracanã, que abrigou o antigo Laboratório Nacional Agropecuário do Ministério da Agricultura.
Em 2013, desrespeitando o processo judicial em andamento pela demarcação do território, a aldeia virou alvo da ação constante de dezenas de policiais da Tropa de Choque. Os indígenas resistiram. Urutau, por exemplo, passou três dias em cima de uma árvore como forma de protesto. A ação chegou a ser reproduzida em reportagens e a liderança foi levada para a delegacia.
Outras quatro mulheres, também da etnia Guajajara, ocuparam o prédio do Museu do Índio. “Tinha uma que entrou com uma criança, depois veio mais um rapaz e o Urutau. Foram uns três carros, helicópteros e mais de 100 policiais só para tirarem elas”, conta Potyra. “Foi muito forte, porque como foi na época da Copa, eles tinham que tirar de qualquer forma ou matar."
Em 2014, porém, o prédio anexo foi demolido, os indígenas expulsos e o espaço transformado em estacionamento durante a Copa do Mundo.
Após os eventos esportivos, os indígenas retomaram o local, mas encontraram ainda mais dificuldades. A demolição do prédio anexo representou a retirada do acesso à água e luz da aldeia. “Eles tiraram toda a água para a gente não resistir aqui, e a gente ficou quatro anos sem água nenhuma na aldeia, você imagina?”, desabafa Potyra. Até hoje, a questão do recurso ainda é um problema. A aldeia tem apenas uma fonte de água.
Outra remoção foi a de árvores e plantas da aldeia para colocar cimento no lugar. Hoje, os indígenas realizam projetos e oficinas de reflorestamento, baseados na agroecologia, para restaurar a natureza.
Ainda sem o processo de demarcação oficializado, os indígenas continuam a sofrer ameaças de despejo. Em 2019, o deputado estadual Rodrigo Amorim (PSL-RJ) declarou que “a Aldeia Maracanã é um lixo urbano”. “Aquele lixo urbano chamado Aldeia Maracanã é um absurdo. [...] O espaço poderia servir como estacionamento, shopping, área de lazer ou equipamento acessório do próprio estádio do Maracanã. Como carioca, me causa indignação ver aquilo do jeito que está hoje. Quem gosta de índio, que vá para a Bolívia, que, além de ser comunista, ainda é presidido por um índio”, disse.
“Os ataques continuam, esse cara [Rodrigo Amorim] é o verdadeiro discurso do ódio contra os povos originários”, declara Urutau.
Aldeia "Reexiste"
Na aldeia, eles oferecem diferentes oficinas tanto para indígenas de fora da comunidade, quanto para o público de visitantes, escolas, universidades e projetos sociais. Essas atividades são uma forma dos indígenas reafirmarem que eles “reexistem”, lema que surgiu em 2014, e são um polo de educação e cultura.
“Se existe isso aqui até hoje é porque nós estamos aqui na resistência. Mas tá aí, se deteriorando [o prédio]. O Estado deixando destruir para apagar de vez é a cultura indígena. Eles querem um museu, mas um museu morto, não nós, os indígenas vivos”.
Estudo de cantos e línguas indígenas, oficinas de maracás, ervas medicinais e filtro dos sonhos, pesquisas sobre animais e peças arqueológicas são algumas das atividades oferecidas.
Além disso, há projetos para recuperação ambiental da aldeia, como mutirões de limpeza e reciclagem. Também acontece um Ciclo Sagrado para mulheres indígenas e não indígenas, sempre durante a Lua Cheia e é guiado por Potyra. Já Mônica realiza o Laboratório de Protagonismo Feminino.
“A gente acredita que a cura vem através do feminino, entendendo que a Terra é o grande útero. A Terra é a fertilidade, é o feminino e por isso o patriarcado, o desenvolvimento e capitalismo destroem a floresta”.
Todas essas atividades integram a Universidade Indígena Pluriétnica, que os indígenas lutam para que seja oficialmente reconhecida pelo Ministério da Educação.
Universidade Indígena
Com a proposta de ser um centro de referência sobre as culturas indígenas para o Brasil e o mundo, os indígenas da Aldeia Maracanã lutam pelo reconhecimento de uma Universidade Indígena Pluriétnica na comunidade.
“Para gente, ela já funciona, porque temos diversos cursos, recebemos escolas e universidades, mas estamos na luta há mais de 30 anos para sermos reconhecidos pelo MEC”, esclarece Potyra.
“A universidade indígena vem fazer esse processo de ‘indianizar’, que nada mais é do que você voltar para dentro de você mesmo, ouvir a floresta, ouvir a natureza. E a Aldeia Maracanã funciona sendo esse laboratório de articulações, porque a gente chega aqui e encontra a natureza em pleno caos”, diz Mônica. E acrescenta falando sobre o contraste entre o concreto da cidade e da natureza dentro da aldeia.
“Somos essa Universidade que vem colocar tudo isso em xeque, toda essa contradição, porque a sociedade que a gente vive não está dando certo. A gente está destruindo esse grande útero, a Mãe Terra e toda a vida que há nela: as águas, os rios, as rochas, os animais e as plantas”.
A educação indígena, por outro lado, defende que as coisas estão interligadas, e não “separadas em caixinha”. “O branco separa lá nas disciplinas, mas nós temos outra pedagogia, outra cosmovisão e princípios para trabalhar o conhecimento, que deve ser principalmente para resolver os nossos problemas sociais”, explica Mônica.
Além disso, a Universidade Indígena é um local onde o “conhecimento é compartilhado, in loco, ao vivo e em cores”, diz Urutau. “As crianças aprendem com os adultos e os adultos aprendem com as crianças.”
Apesar de já funcionar há anos, a Universidade ainda não é reconhecida pelo governo federal, como são outros centros indígenas no México, Bolívia, Nicarágua e Estados Unidos, por exemplo. Apesar das faculdades tradicionais oferecerem cursos voltados a indígenas e cotas, “não são universidades indígenas, apenas oferecem cursos para indígenas”, esclarece Urutau, e reforça que a luta é por uma “universidade pensada, arquitetada gerida e administrada por indígenas. Aí, sim, é uma universidade, se não vai continuar a mesma coisa”.
Essa luta conta com apoio de outros centros acadêmicos, como a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) e a Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), além de reitores de faculdades no exterior.
Enquanto o MEC não reconhece a Universidade Indígena Pluriétnica, os indígenas da Aldeia Maracanã continuam se organizando de forma autônoma e oferecendo atividades abertas ao público durante todo o mês.
Urutau Guajajara resume seu sentimento diante do processo de descaracterização que o branco tenta impor aos povos origiários: “O europeu quando invadiu essa terra que hoje chama-se Brasil, ele pisou duro, tão duro, que os rios subiram, aumentaram suas águas, as águas do mar ficaram muito mais salgadas com a lágrima do nosso ancestrais, do nosso povo. Quebraram nossos galhos, cortaram nossos troncos mas não conseguiram arrancar nossas raízes. Nos trucidaram, nos genocidaram e até nos enterraram, mas esqueceram que nós somos sementes, nós somos a terra, a própria terra. Esqueceram que sementes brotam, sementes nascem se forem enterradas, e essas sementes estão aí pela Aldeia Maracanã, esses brotos que nasceram a partir de nós estão por aí. Todas essas crianças que não morreram e estão aí brotando dessas sementes que os europeus enterraram pensando que estavam nos enterrando. Katu haw (obrigada)”.