Nesta quinta-feira (11), durante o evento no Palácio do Planalto que marcou os cem primeiros dias de governo, Jair Bolsonaro assinou inúmeros decretos. Entre eles, chama a atenção o decreto nº 9761, que institui a nova Política Nacional sobre Drogas (PNAD).
O decreto intensifica, através de inúmeras medidas, uma postura ainda mais ostensiva do governo contra a descriminalização das drogas e dá fim à lógica de redução de danos, priorizando a abstinência dos usuários e estimulando os "tratamentos" em comunidades terapêuticas.
A partir das novas diretrizes, o governo irá, inclusive, financiar ainda mais comunidades terapêuticas que, em sua maioria, são administradas por entidades religiosas que misturam o "tratamento" dos dependentes químicos com espiritualidade, indo na contra-mão da lógica de redução de danos já instituída na maioria das nações desenvolvidas ao redor do mundo.
De maneira geral, o decreto de Jair Bolsonaro endurecerá ainda mais o tratamento dado aos usuários de drogas e reforçará a lógica proibicionista que já se mostrou falida não só no Brasil como no mundo inteiro. Psicólogos, redutores de danos, assistentes sociais e outros especialistas no assunto estão assustados com o que pode vir pela frente e indignados com a falta de destaque do decreto na imprensa como um todo.
Para ampliar o debate sobre o tema, Fórum entrevistou Bruno Logan, que se debruça há anos no estudo da área e atua na recuperação de dependentes químicos como redutor de danos.
Para Logan, que também é psicólogo, o decreto de Jair Bolsonaro faz o Brasil voltar no tempo. "São 30 anos de retrocesso. Há 30 anos começou a redução de danos no Brasil. Quase em todos os outros lugares do mundo estamos discutindo legalização e descriminalização. Agora, aqui, estamos discutindo tratamento forçado."
De acordo com o redutor de danos, que mantém o canal no YouTube "RD com Logan", além de não reduzir o número de dependentes químicos, a nova política do governo só vai fazer aumentar ainda mais a criminalização e a estigmatização do usuário de drogas.
Na entrevista, Logan chama a atenção para o fato de que aqueles que têm problemas com o uso de drogas são minoria entre os usuários, que muitos sequer querem parar de usar e explica como o tratamento forçado em comunidades terapêuticas, no geral, não é efetivo. Ele ainda detalha como funciona o trabalho focado em redução de danos.
Confira.
Fórum - O que significa, em linhas gerais, dar fim à política de redução de danos para priorizar a abstinência?
Bruno Logan - De forma geral, qual é a grande questão? As pessoas que trabalham no modelo de abstinência, como, inclusive, são as comunidades terapêuticas que são reconhecidas como espaços de cuidado e tratamento de usuários de drogas nesse decreto, não reconhecem a redução de danos. E esse modelo de abstinência é o seguinte: pessoas querem parar de usar drogas, vão lá e fazem tratamento. Agora, existe um grande problema: há pessoas que não querem parar de fazer uso de drogas. E aí não há oferta de nenhum tipo de cuidado? Ou você vai criminalizar essa pessoa? Qualquer uma dessas alternativas só vai trazer mais problemas para o usuário. Isso, por si só, já mostra que essa política é um fracasso. A redução de danos vem justamente para isso: fazer com que as pessoas que não querem ou não conseguem parar de fazer uso de drogas tenham alguns tipos de cuidado e até mesmo para aquelas que querem parar de fazer uso. A redução de danos visa uma construção junto com o usuário para que ele consiga ter uma estratégia de cuidado que faça sentido para ele. Se eu chegar pra você e dizer "Ivan, deixe de ser corintiano", você vai olhar para minha cara e dizer "vai cuidar da sua vida". Nós trabalhamos todas as possibilidades do sujeito. Ter uma política única de tratamento para o usuário não vai dar certo. Cada pessoa é uma pessoa. Eu não acho que, como redutor de danos, não deveria ter um modelo de abstinência. Para algumas pessoas funciona. O grande problema é ter uma política de pública nacional só de abstinência. Não vai funcionar para todos os usuários. Isso vai ser um baita tiro no pé.
Fórum - E como vinha funcionando a política de redução de danos até então?
Bruno Logan - Temos um grande problema porque na prática a política de drogas prevê a redução de danos através de portarias. A própria diretriz de funcionamento de um CAPS AD (Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas) visa a redução de danos. Mas na prática a redução de danos foi pouco incentivada pelo governo federal. Isso é importante dizer. Era uma política mas, na prática, a gestão estadual e municipal meio que faziam da forma como achavam melhor. Faltava muita fiscalização e muito incentivo, inclusive de financiamento. Mas era uma política nacional. A abstinência ficava como uma coisa velada. Agora é descarado. Está sendo colocado que a única forma de lidar com o usuário é forçar ele a parar de usar droga. Como se usar droga necessariamente colocasse o sujeito em uma condição de doença que, além de tudo, precisaria ser tratada de maneira forçada.
Fórum - Com a priorização da lógica da abstinência na Política Nacional de Drogas há o risco de intensificar a prática de internação forçada?
Bruno Logan - É um enorme risco que a gente corre. Principalmente porque este decreto institui as comunidades terapêuticas como espaço de cuidado. É importante explicar que as comunidades terapêuticas tiram o sujeito do contexto onde ele faz o uso de droga, do contexto onde ele tem oferta, dos espaços de risco, e o leva para um lugar. A pessoa fica longe desse contexto de uso. Quando sai dessa comunidade terapêutica e vai para a clínica de tratamento, ele não aprendeu ainda a lidar com o contexto que está inserido. Logo, ele volta para casa e tem recaída. Por isso esse modelo é tão problemático. Não estou dizendo que internação não deveria acontecer, mas é para 2% das pessoas que têm problema com uso de drogas, quando estão se colocando em risco e colocando risco à terceiros. Estão pegando uma política que deveria ser exceção e a transformando em regra.
Fórum - Neste sentido, como funciona o trabalho de redução de danos?
Bruno Logan - A redução de danos nada mais é que uma política pública, uma forma de ver a problemática das drogas respeitando a autonomia do sujeito e respeitando, acima de tudo, seu protagonismo. Não adianta eu como, como psicólogo de álcool e drogas, impor o que é melhor para o outro porque ele pode não reconhecer aquilo como melhor. Então, a gente respeita a autonomia e tenta construir com ele uma estratégia de reduzir o uso ou parar de usar que faça sentido. Para ele. Na abstinência, não. A pessoa força o usuário a parar sob o argumento de ficar sadio. Ponto. E desconsidera qualquer outra possibilidade na vida do sujeito. [Confira ao final da matéria vídeo do canal RD com Logan sobre os 10 princípios da redução de danos]
Fórum - Como é esse trabalho de redução de danos na prática, como nos CAPS AD?
Bruno Logan - Isso é muito interessante porque trabalhamos com uma equipe multiprofissional. A gente vai ver se a pessoa precisa de documento, temos assistente social, verificamos se há algum problema de mobilidade, temos terapeuta ocupacional, psicólogo, psiquiatra para poder medicar, clínico para ver se tem alguma questão clínica associada à dependência... Então, a gente vê o sujeito como um todo.
Fórum - Levando em consideração que boa parte do mundo vem revendo suas políticas de drogas, acredita que o Brasil, com este decreto, está voltando no tempo?
Bruno Logan - A redução de danos começa no Brasil no dia 24 de novembro de 1989. Esse ano a redução de danos iria fazer 30 anos no país. Estamos retrocedendo exatamente 30 anos com esse decreto do "despresidente". É um absurdo. São 30 anos de retrocesso. Há 30 anos a gente começou a fazer tratamento com usuário de droga, fazendo com que ele não compartilhasse seringa e não fosse contaminado com a HIV. Quase em todos os outros lugares do mundo estamos discutindo legalização e descriminalização. Agora, no Brasil, estamos discutindo tratamento forçado. Deveriam fazer moradia forçada para quem está em situação de rua. Quer fazer alguma coisa forçada que presta, vai dar trabalho para as pessoas, alimentação. Agora vai forçar a parar de usar drogas? É um negócio que não faz o menor sentido.
Fórum - Que outras consequências esse tipo de decreto que endurece a criminalização das drogas pode trazer?
Bruno Logan - Criminalização das drogas mais do que já existe acho difícil avançar. Meu receio é criminalizar o usuário, aumentar ainda mais o estigmas de usuários de drogas como bandidos, doentes, marginais, vagabundos, esse tipo de coisa. Esse tipo de política transforma o usuário de droga em uma pessoa mais estigmatizada. Para além do bizarro que é essa política de oferta única de "tratamento", é o aumento significativo do estigma do usuário.
Fórum - E como você enxerga essa relação das religiões com tratamento de drogas presente na maioria das comunidades terapêuticas?
Bruno Logan - É complicado. Existem comunidades e comunidades. A comunidade terapêutica, quando surgi nos EUA, era uma ideia muito interessante em que a comunidade se juntava para fazer uma autogestão dos usuários de droga. E funcionava, inclusive. Uma comunidade terapêutica de verdade não interna a pessoa à força, não há nada compulsório. Quando isso vem para o Brasil, muitas entidades religiosas começam a fazer esse modelo que não é comunidade terapêutica de verdade. Por isso digo que é complicado, pois há algumas comunidades terapêuticas que são boas. O problema é que muitas delas, mais da maioria, são comunidades que fazem esse processo de internação forçada, que força uma religiosidade, que viola os direitos humanos. Isso é um grande problema. Mas não podemos colocar todas no mesmo balaio. Agora, também não dá para falar que as comunidades terapêuticas que não têm profissionais da saúde, que atendem com pastor e e fazem a pessoa rezar o dia inteiro, são instituições de tratamento e de saúde porque nem profissional de saúde têm. Não dá para dizer quantas são, mas boa parte delas são assim.
Fórum - O secretário nacional de Cuidados e Prevenção às Drogas do Ministério da Cidadania, Quirino Cordeiro Júnior, que participou da elaboração do decreto, disse que o posicionamento claro do governo contra a descriminalização das drogas respeita uma posição majoritária da população. Somando essa declaração ao fato de que as diretrizes vão na contramão dos estudos sobre drogas, é possível afirmar que esse decreto tenha um caráter mais populista do que técnico?
Bruno Logan - Com certeza. Eu acho que, inclusive, a ideia de descriminalizar as drogas não passa pelo crivo da população porque a população é muito mal informada por essas mídias que ficam fazendo sensacionalismo, que falam que droga mata, que quem usa droga é bandido. As pessoas se influenciam por essas mídias e vão ter uma opinião enviesada, obviamente. Se a população tivesse informação sobre o que, de fato, acontece com quem usa drogas, que na verdade, a pessoas que têm problemas são a ponta do iceberg entre as que usam, e que a proibição mata muito mais sistematicamente as pessoas que o uso de drogas em si, muito provavelmente pediria a descriminalização. Famílias inteiras estariam na Marcha da Maconha pedindo a legalização das drogas. Se houvesse um plebiscito, seguramente a descriminalização das drogas não seria aprovada porque as pessoas são muito má informadas sobre essa realidade.
Os 10 princípios da redução de danos