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[caption id="attachment_139361" align="alignnone" width="700"] Trindade: "Eu notei que grande parte dos discursos era camuflado atrás de piadas de cunho fortemente depreciativo" - Foto: Arquivo pessoal[/caption]
Durante quatro anos, o sociólogo brasileiro Luiz Valério Trindade se debruçou no estudo das redes sociais, utilizando o seguinte recorte: descobrir o perfil das principais vítimas de discriminação e discursos de ódio no Facebook. O resultado de sua tese de doutorado, defendida na Universidade de Southampton, na Inglaterra, apontou que 81% dessas pessoas são mulheres negras entre 20 e 35 anos e bem-sucedidas profissionalmente. Trindade tem uma explicação: “Ao ascender socialmente, as mulheres negras brasileiras rompem esta ‘linha invisível’ e frustram a ideologia que nutre a enraizada percepção estereotipada de que elas não são merecedoras de ocupar espaços sociais associados com privilégio, prestígio e visibilidade qualificada. Pelo contrário, de acordo com tal ideologia, elas deveriam estar engajadas unicamente em atividades de baixa qualificação, subserviência e pouca ou nenhuma visibilidade social”.
Fórum - O que o motivou a desenvolver sua tese de doutorado em cima do tema discriminação nas redes sociais?
Luiz Valério Trindade - Eu comecei o meu doutorado em setembro de 2014 e, por volta de janeiro-fevereiro de 2015, durante o processo que se chama revisão da literatura (onde você pesquisa o que estudos anteriores investigaram sobre o tema), notei que havia uma lacuna interessante no campo de estudos étnicos-raciais. Percebi que as redes sociais no Brasil estavam se tornando terreno fértil para a construção e disseminação de discursos racistas contra pessoas negras e decidi ir mais a fundo para entender o que estava acontecendo. Nesse momento eu notei, inclusive, que grande parte dos discursos era camuflado atrás de piadas de cunho fortemente depreciativo. Por ser uma forma de comunicação socialmente aceita, as piadas estavam (e continuam) servindo de mecanismo bastante conveniente para transmitir ideologias preconceituosas, porém, sem que a pessoa pareça flagrantemente racista, pois, afinal de contas, se trata somente de uma “brincadeirinha”, como é comum alegarem. Sendo assim, foi neste contexto que decidi me aprofundar no tema.
Fórum - Qual foi a reação dos acadêmicos da Universidade de Southampton, na Inglaterra, quando souberam por você que 81% das vítimas de discurso depreciativo nas redes sociais brasileiras são mulheres negras entre 20 e 35 anos?
Luiz Valério Trindade - Durante os quase quatro anos de duração do meu doutorado, eu tive a oportunidade de apresentar a pesquisa em andamento em 15 conferências internacionais (a maioria delas aqui na Inglaterra onde resido, mas também na Polônia, em Portugal e na Romênia), e a receptividade foi sempre muito grande por conta do tema da pesquisa, o qual gera uma grande empatia, entre os pesquisadores, e admiração pela novidade da abordagem metodológica. Eu realizei a pesquisa de campo em São Paulo e no Rio de Janeiro, entre julho-setembro de 2016, para a coleta de dados do Facebook e também conduzi uma série de oito entrevistas em profundidade com diferentes atores sociais (líderes de ONGs, secretaria municipal de direitos humanos, secretaria municipal de igualdade racial, entre outros). Foi a partir desse momento que os dados coletados trouxeram à tona esse quadro onde as mulheres negras constituem a vítima preferencial de discursos de cunho racista no ambiente virtual, sobretudo, camuflados em piadas fortemente depreciativas. Diante disso, tanto meus pares e corpo docente no Departamento de Sociologia na Universidade de Southampton, quanto nos demais contextos acadêmicos onde circulo apresentando a pesquisa, têm ficado bastante espantados e surpresos com os resultados; sobretudo porque aqui no exterior, muitas pessoas que não conhecem a dinâmica das relações raciais no Brasil com muita propriedade creem que a ‘democracia racial’ é um fato concreto. Portanto, ao se depararem com um quadro dessa natureza, elas começam a questionar, a se interessar em conhecer o tema mais a fundo e estabelecer analogias com a realidade de alguns países europeus.
Fórum - Você analisou mais de 109 páginas de Facebook, 16 mil perfis de usuários, 224 artigos jornalísticos que abordaram casos de racismo nas redes sociais brasileiras. Quanto tempo demorou para concluir o estudo e você usou algum critério para escolher esses veículos para consultar?
Luz Valério Trindade - Pois bem. A pesquisa, como um todo, demandou quase quatro anos de estudo em tempo integral. Como as redes sociais englobam diversas plataformas (Facebook, Twitter, YouTube, Instagram etc.), não seria viável que eu explorasse o tema de discursos racistas em todas elas. Caso contrário, o projeto assumiria proporções muito grandes para um doutorado de quatro anos. Dessa forma, decidi me concentrar unicamente no Facebook como uma escolha metodológica. Além disso, por ser a rede social mais popular no Brasil, entendi que seria a plataforma que me municiaria com o maior volume de dados válidos para a análise crítica do tema. Inclusive, a título de informação e conhecimento, os dados mais recentes sinalizam que o Brasil representa o terceiro maior mercado do Facebook no mundo, atrás somente dos EUA e da Índia em termos de números absolutos de usuários ativos mensalmente, que, no caso do Brasil, está em torno de 120 milhões de pessoas (ou cerca de 58% da população). Portanto, esses dados sinalizam que a plataforma é bastante representativa para esse tipo de investigação.
Fórum – Por que as mulheres negras são as principais vítimas de discriminação nas redes sociais?
Luiz Valério Trindade - O estudo revelou que as mulheres negras em ascensão social constituem o grupo mais vulnerável nesse contexto por ultrapassarem o que se chama de ‘linha invisível’, que separa os espaços sociais de privilégio e oportunidades, dos demais de subserviência e inferioridade social e racial. Esse conceito foi cunhado pelo sociólogo negro norte-americano W.E.B. Du Bois em seu clássico livro “The Souls of the Black Folk”, de 1903, e também proferido de forma ligeiramente distinta (porém, mesmo significado) pela atriz negra Viola Davis, em seu comovente e emblemático discurso ao receber o prêmio de melhor atriz dramática no Emmy de 2015. Em outras palavras, ao ascender socialmente, as mulheres negras brasileiras rompem esta ‘linha invisível’ e frustram a ideologia que nutre a enraizada percepção estereotipada de que elas não são merecedoras de ocupar espaços sociais associados com privilégio, prestígio e visibilidade qualificada. Pelo contrário, de acordo com tal ideologia, elas deveriam estar engajadas unicamente em atividades de baixa qualificação, subserviência e pouca ou nenhuma visibilidade social. Nesse contexto, me recordo que um dos inúmeros posts altamente depreciativos que analisei trazia o seguinte comentário a respeito de uma mulher negra que havia publicado fotos dela e de seu parceiro quando em viagem de férias pela Europa: “O lugar de mulher negra não é viajando pela Europa, mas sim no campo colhendo algodão”.
Fórum - Uma das constatações de seu estudo é que os principais alvos são médicas, jornalistas, advogadas e engenheiras negras. Por que acha que essas profissões são as mais atingidas pelos agressores?
Luiz Valério Trindade - Historicamente, três profissões se tornaram clássicas no Brasil desde o período colonial: engenharia, direito e medicina. Naturalmente que hoje em dia as coisas mudaram bastante e surgiram diversas outras profissões de elevado prestígio. Contudo, ainda assim, no imaginário coletivo essas três profissões clássicas ainda estão associadas com ideias de privilégio e prestígio, exercidas, essencialmente, por homens brancos de classe média e alta, e quando pessoas fora desse perfil se engajam nelas, isso causa espanto, estranheza e até mesmo incredulidade. Sendo assim, na medida em que mulheres negras se engajam nessas profissões e outras que lhes conferem prestígio e elevada visibilidade qualificada (como jornalismo, por exemplo), elas rompem essa corrente de pensamento e acabam se tornando alvos, já que na mente dos defensores de ideologias racistas, elas não deveriam estar ocupando tais espaços. A propósito, em um dos diversos posts depreciativos que analisei, o usuário teceu o seguinte comentário a respeito de uma médica negra: “Nossa, não sabia que negros poderiam se tornar médicos. Quem se arriscaria em uma consulta?”.
Fórum - Você acredita que devem ser criados mecanismos de combate a essas agressões, por parte do Poder Público ou das empresas que administram as redes sociais?
Luiz Valério Trindade - O que defendo são basicamente três iniciativas. Primeiramente, desenvolver campanhas educacionais em âmbito nacional, voltadas para o público geral, com o objetivo de conscientizar as pessoas a respeito de que atos praticados no ambiente virtual tem, sim, consequências na vida real, e que os dois ambientes não estão dissociados um do outro. Ainda nesse contexto, é preciso desmitificar a crença errônea que muitas pessoas têm de que o que se faz no ambiente virtual é isento de responsabilidades civis e criminais. Sendo assim, campanhas educacionais explorando esses temas seriam muito válidas. Em segundo lugar, entendo que as escolas de ensino fundamental e médio têm um importante papel formador de novas gerações, e discutir esses temas com os jovens em sala de aula ajudaria na desconstrução de ideologias racistas e preconceituosas. Só para dar uma ordem de grandeza, no Brasil, mais de 11 milhões de usuários do Facebook são jovens na faixa etária de 13 a 17 anos. Portanto, preparar a juventude para aceitar e respeitar a diversidade é de suma importância. Por fim, o poder público deveria pressionar as corporações para implementarem mecanismos mais eficazes para a célere remoção de conteúdos depreciativos sinalizados por seus usuários, bem como detectados por seus poderosos algoritmos. Há diversas vozes no Brasil revelando que, na maioria das vezes, o tempo de resposta das empresas é demasiado lento. A consequência da demora na remoção de tais conteúdos é que isso permite que ele circule pelo ambiente virtual, engaje ainda mais pessoas na mesma conversa depreciativa, reforçando o insulto original, se tornando como um prolongado eco no cyberespaço.
Fórum - Quais seriam as medidas eficazes para combater essa prática? Isso se passa pela mudança das políticas de privacidade das redes sociais, com punições mais rígidas a quem propaga o discurso de ódio?
Luiz Valério Trindade - Veja bem, o estudo revelou que as pessoas que se engajam na prática de construção e disseminação de ideologias racistas e preconceituosas nutrem uma forte crença de que o pseudo-anonimato das redes sociais representa uma espécie de “escudo”, que lhes protegem e asseguram uma certa “licença”, por assim dizer, para liberarem seu ódio irrestritamente. Ou seja, elas creem que não podem ser localizadas e responsabilizadas por seus atos. Contudo, essa crença se mostra falaciosa, pois a partir do momento em que as ofensas proferidas circulam nas redes sociais, ganham certa repercussão e os casos são capturados pelos meios de comunicação, estas pessoas tomam uma das seguintes providências: 1) modificam o status de seu perfil de público para privado, 2) apagam o post, 3) deletam sua conta na rede social, ou 4) alegam que tudo não passava de uma “brincadeirinha”. Sendo assim, essas iniciativas são indicativos de que elas tinham consciência de que sua atitude era inapropriada e inaceitável. Ademais, a crença no “escudo” propiciado pelo pseudo-anonimato cai por terra, pois se ela fosse real não haveria necessidade de tomar nenhuma dessas providências. E, na verdade, é importante que se diga, que há, sim, mecanismos técnicos que permitem às autoridades localizarem os usuários quando necessário. Portanto, acredito que as corporações deveriam deixar bem claro para seus usuários que suas plataformas de redes sociais não são paraíso de impunidade e “terra de ninguém”, como diversos deles creem. Além disso, quando formalmente requisitado por autoridades competentes, genuinamente constituídas, seus dados pessoais podem vir a ser fornecidos e eles devem responder por suas atitudes em conformidade com o ordenamento jurídico brasileiro.
Fórum - Em que medida as agressões pelas redes sociais têm o potencial de se transformar em violência verbal e física?
Luiz Valério Trindade - Essa é uma pergunta bastante pertinente. No momento, eu não posso afirmar que exista essa relação direta no contexto brasileiro, porque não me debrucei sobre esse aspecto em minha pesquisa. Contudo, o que posso dizer é que, aqui na Inglaterra e em alguns outros países europeus, já existem estudos recentes relacionando o crescimento na disseminação de discursos de ódio nas redes sociais com violentos crimes de ódio no ambiente off-line. Um desses estudos, por exemplo, revelou um incremento de discursos de cunho xenófobo nas redes sociais e ataques a imigrantes do leste europeu pouco tempo após o resultado do referendo do Brexit na Inglaterra, em junho de 2016. Portanto, é provável que no Brasil possa haver uma relação entre ofensas disseminadas nas redes sociais (não somente raciais, mas também homofóbicas, misóginas, de intolerância religiosa, entre outras) e violência física, mas é preciso conduzir estudos nesse sentido.
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