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O artigo “A insurgência trans e seu alvo impreciso”, de Valência Losada, publicado originalmente na revista Cult, tem como ponto de partida os protestos de grupos LGBTQ na estreia do espetáculo Gisberta, no Centro Cultural Banco do Brasil de Belo Horizonte, contra o fato de um ator cisgênero interpretar pessoas trans.
Na peça "Gisberta", Luis Lobianco conta a história de transexual brasileira morta em Portugal em 2006 (Foto: Divulgação)
Ao defender o “conceito aristotélico que garante à arte os atributos da semelhança, verossimilhança e representação, ou seja, a liberdade é premissa do fazer artístico”, a produtora cultural Valência foi duramente atacada em carata aberta do Movimento Nacional de Artistas Trans:
“Vocês todos juntes de mãos dadas fortalecem e contribuem para que essa estrutura permaneça rígida e intacta. Deslegitimando e reforçando o apagamento das nossas presenças e identidades. Marginalizando-as, tornando-as ficção, satírica e caricatural.”
No espetáculo Gisberta, o ator Luis Lobianco conta a história de Gisberta Salce Junior, transexual morta em Portugal em 2006. Valência diz em seu texto que “tais manifestações exigem da sociedade brasileira, em especial da classe artística, uma reflexão profunda sobre paridade, empregabilidade e legitimidade no que se refere aos movimentos identitários e sua pauta reivindicatória que, nesse momento, recai sobre a arte.”
Para ela, o critério de exclusividade na escolha dos atores trans é “novamente guetificado e, portanto, excludente.... ...Logo, me parece injustificável os impropérios disparados contra atores cisgênero que protagonizam espetáculos de imenso sucesso junto às mais variadas plateias”.
Ao final, Valência Losada conclui que “ao pensar o fazer político como uma categoria também afetiva, cabe-nos refletir se somos capazes de compreender que atitudes que promovem o ódio são sempre um desserviço aos processos identitários e civilizatórios. E quanto a isso, a arte não foi, nem nunca será, o único reduto capaz de aplacar essa desigualdade histórica”.
Leia aqui o artigo completo de Valência Losada.
Abaixo a carta aberta em resposta ao artigo.
Carta aberta do Movimento Nacional de Artistas Trans para todos os artistas cisgênero
Vamos conversar?
Precisamos que vocês nos escutem.
Então parem, se acomodem e abram seus corações e mentes.
Precisamos falar sobre empregabilidade, transfobia e REPRESENTATIVIDADE.
E sobre essa tal liberdade artística também… Vamos começar pelo cinema?
E hoje, precisamos falar de “Pantera Negra”, desde a estreia, o filme vem levantando algumas questões.
Começando por ser o primeiro filme da Marvel dedicado a um super-herói negro (incluindo o elenco, direção e pessoas da produção serem majoritariamente negras), e segundo pelos números alcançados desta película, em um final de semana prolongado por exemplo, o filme ganhou em bilheteria, mais que alguns filmes ganharam em todo o tempo que ficaram em cartaz, como: Capitão América, o primeiro vingador (2011) e Hulk: o homem incrível (2008).
Com tanto sucesso nos números, por que, mesmo assim, não vemos tantos filmes protagonizados por pessoas negras?
Entre os 100 títulos de maior bilheteria em 2016, 70,8% dos personagens com falas são representados por artistas brancos, restando para os artistas negros apenas 13,6 % dessa fatia, de 4.583 personagens com falas, isto sem colocar em pauta de como o negro está sendo retratado no filme.
Quando pensamos em filmes, heróis, escritores, médicos, políticos, intelectuais, empresários, advogados e em pessoas bem sucedidas, nossa referência universal é a do homem, branco e cisgênero (inclusive no universo LGB), até a gramática os prioriza, mesmo em uma sala com 99 mulheres e um homem, o pronome dominante será o “O”.
Pergunte ao Movimento Negro o que é ir ao cinema assistir Pantera Negra, aliás, melhor, pergunte ao Movimento Negro, o que é levar os seus filhos para assistirem um filme com HERÓIS NEGROS. O que é ter uma boneca preta em uma loja de brinquedo? O que é ter maquiagem para peles negras? Sabem o significado da REPRESENTATIVIDADE deste filme ao movimento negro? Vocês sabem que é sentir-se REPRESENTADO?
Quantos filmes, novelas, livros, espetáculos, revistas e afins você teve contato nos últimos meses, e se em alguns deles, você se enxergou ou se viu, então é por que você está representado, isto é REPRESENTATIVIDADE. Mas se você não for branco, magro, cisgênero e preferencialmente homem, você dificilmente se sentirá REPRESENTADO.
REPRESENTATIVIDADE é o ato de estarmos presentes. Não existe meia REPRESENTATIVDADE. Ou se tem ou não.
Foi exatamente esta palavra: REPRESENTATIVDADE que nos faz escrever esta carta a vocês.
No último dia 19 de fevereiro, nesta mesma revista Cult, na coluna da Marcia Tiburi, foi publicado uma “opinião” (precisamos saber diferenciar opinião de uma atitude artística e/ou discursos incrustados na transfobia) da produtora Valência Losada, intitulado: A insurgência trans e seu alvo impreciso.
Bom, não para nossa surpresa, a produtora é da Quintal Produções.
Nos faz lembrar imediatamente de Simone de Beauvoir: “O opressor não seria tão forte se não tivesse cúmplices entre os próprios oprimidos”.
A Quintal Produções é a produtora do coletivo “As Travestidas”, fundado pelo ator e diretor Silvero Pereira (este é o ator brasileiro que mais pratica o TRANS FAKE na atualidade), que tem na sua cartela “de diversidade trans”: Uma flor de Dama (TRANS FAKE), BR Trans (TRANS FAKE) e Trans-Ohno (TransFake), salvando-se apenas o espetáculo Quem tem medo de travesti?, mesmo com vários equívocos sobre a vivência trans, pelo menos, os corpos trans estão presentes. E é obvio ululante que você, Valência, defenderia o TRANS FAKE do ator Luis Lobianco (pena que o encontro em BH não te afetou, Luis, uma pena mesmo), você lucra com o TRANS FAKE (e não tem problema em lucrar, só vamos dividir?). É insurgente, sim, mas que o alvo não é, e nunca foi, impreciso. Nosso alvo é a transfobia estrutural que exclui nossos corpos dos lugares de poder. Impreciso e confuso é o seu texto, que verticaliza na profundidade de um pires. Para, colega, tá feio, já viu! Mas capitão do mato defende capitão do mato, né?
Vocês todos juntes de mãos dadas fortalecem e contribuem para que essa estrutura permaneça rígida e intacta. Deslegitimando e reforçando o apagamento das nossas presenças e identidades. Marginalizando-as, tornando-as ficção, satírica e caricatural.
Procure nos livros de história as nossas histórias. Nós não fazemos parte da história. Não fazemos parte do conceito de humanidade, não somos humanos, somos falsos, de brincadeira. Os livros existentes que nos mencionam são exatamente para contar sobre nossa marginalização histórica. Vocês senhores feudais, produtores, artistas, capitães do mato, diretores e açoitadores, vocês nos apagam, nos excluem, nos deixam sem rosto, sem voz, e o pior, tentam nos calar, nos tornar risíveis (mais uma vez).
Mudam-se as histórias, nunca os protagonistas: Os homens brancos e cisgêneros.
Sabemos também que o teatro não pode dar conta de tudo, ai que bom seria, né, menina? Mas mesmo vocês sabendo que o Teatro pode sim mudar paradigmas, trazer reflexões, abrir corações e mentes, levantar discussões e temas, e que sim, enquanto artistas devemos, precisamos e se é necessário questionar o nosso tempo. Plínio Marcos diria que devemos ser “repórteres de um tempo mau”.
Vamos entrar num acordo? Num grande acordo nacional, com as instituições, com tudo?
O acordo é:
1 – Que vocês parem AGORA de nos representar (estanquem esta sangria) por no mínimo 30 anos. Vocês (homens) brincam com o feminino desde que o teatro é teatro, 30 anos não é nada.
2- Que substituem atores cisgêneros representando papéis trans por artistas trans (e nos incluam dentro dos processos artísticos).
3- Que nos incluam efetivamente nos seus coletivos, grupos, filmes, peças…
4 – Que pesquisem de fato nossas vivências, vocês nos retratam de qualquer maneira, sem respeito nenhum.
5- Cansamos de servir apenas (aliás queremos parar de servi-los) como experimentos cênicos e acadêmicos, queremos ser corpos sujeitos.
E sabem o que vai acontecer ao final de 30 anos?
Nós vamos parar de morrer. Vão parar de nos matar. Simples assim.
Ao final deste acordo, temos a certeza que este país deixará de ser campeão em assassinatos de pessoas trans, não teremos como segunda causa de morte o suicídio, nossa vida média não será mais de 35 anos, como é hoje. E sabem por quê?
Porque nossas identidades, corpos e presenças serão naturalizadas e humanizadas nos espaços de poder, passará a ser uma identidade legitima, verdadeira, real e palpável, e é só a partir daí, nascerá o afeto, o conhecimento, o entendimento e a empatia.
Mesmo vocês com todas essas informações, vão novamente nos virar as costas e nos tratarem como se fossemos artistas imbecis, medíocres ou de menor categoria? Vão continuar fingindo que não existimos, não nos respondendo, nos bloqueando nas redes sociais? Vão sair escoltados pela polícia novamente? Vão nos resumir a pessoas “violentas e bélicas”?
Falando em violência, ficamos nos perguntando se esses artistas já viram um grupo de pessoas Trans espancando uma pessoa cisgênera, pelo fato dela ser cisgênera? Ou se, já viram pessoas Trans expulsando pessoas cis de algum ambiente, por ela ser cis? Ou se eles já viram pessoas Trans rindo, debochando ou xingando uma pessoa cis, pelo simples fato dela ser cisgênera? Mas ao contrário temos notícias diuturnamente. Somos o país responsável por 40 % dos assassinatos a pessoas Trans no mundo, nos últimos 10 anos, sendo que 85% dessas mortes são com violência hiperbolizada, ou seja, esquartejamentos, muitos tiros e facadas. Tem certeza que a violência está aqui do nosso lado?
Nos também concordamos que está muito violento, somos nós que estamos morrendo, então somos nós que ditamos as regras ( transpofagizamos do filme “120 batimentos por minuto” fica a dica)
Aliás nós do MONART questionaremos as instituições que corroboram com o discurso dos vossos espetáculos e artistas envolvidos, contratando-os: as unidades dos SESCs, o Itaú Cultural, os Centros Culturais da Caixa e do Banco do Brasil, os editais, Leis de Incentivo e Fomentos, e principalmente os com especificidades LGBTs, eles não existem, inclusive, para inclusão? Como eles podem contribuir com obras artísticas que excluem os corpos retratados?
E além disso fortaleceremos e valorizaremos as instituições que já perceberam a urgência do nosso debate e, além de se colocarem ao nosso lado, também abrem seus espaços, de forma concreta, para desenvolvermos nossos trabalhos e nos expressarmos artisticamente. Visibilidade não nos tira da marginalidade.
Estamos falando de TRANS FAKE e também de BLACK FACE (em todos os níveis), vocês brancos, cisgêneros, adoram dar um truque e inventar nossas formas de representarem as vivências negras, sem um corpo negro presente.
Fora (Temer) Intuições como os SATEDs, colocando-se como representante dos artistas. Quais artistas? Nosso nome social e gênero não são respeitados no DRT por exemplo, muito menos se posicionaram a respeito do TRANS FAKE. E sobre o BLACK FACE, já posicionaram?
E para terminar transpofagiando Angela Davis: “Quando uma pessoa Trans se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela”.
Segurem-se, mas soltem os privilégios.
É preciso partilhar.
E você, conhece nosso movimento?
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