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Celebrar a história da luta antimanicomial e pela reforma psiquiátrica é parte da resistência à onda conservadora e aos retrocessos patrocinados pelo governo golpista
Por Julian Rodrigues*
No bojo do movimento pela redemocratização, no fim dos anos 1970 ganha força a luta pela reforma psiquiátrica, denunciando a violência dos manicômios, a mercantilização e a instrumentalização da loucura e o modelo “hospitalocêntrico” na assistência às pessoas com transtornos mentais.
Construindo o sistema único de saúde, o movimento antimanicomial foi fundamental no combate aos verdadeiros campos de concentração que eram os grandes manicômios.
Exemplo paradigmático: o Hospital Colônia de Barbacena, fundado em 1903, aprisionou, torturou e matou, durante décadas, milhares de pessoas. Com pacientes oriundos de diversos estados tornou-se um verdadeiro campo de extermínio de pobres e pretos – e de quem não se adequava aos padrões. Alcoólatras, prostitutas, pessoas LGBT, inimigos políticos das elites, todo tipo de gente “indesejada”. Estima-se 60 mil mortos nas oito décadas de existência desse hospício.
1987: com o crescimento luta antimanicomial foi possível realizar, na cidade de Bauru, o II Congresso Nacional dos Trabalhadores em Saúde Mental, momento chave que sintetiza o objetivo do movimento: “por uma sociedade sem manicômios”.
As gestões do PT em Santos, com Telma de Souza e David Capistrano (1989-1996), estabeleceram os fundamentos das novas políticas públicas de saúde mental, concretizando a reforma psiquiátrica. No mesmo período, o mineiro Paulo Delgado, deputado federal petista, coloca na agenda do Congresso Nacional o projeto de lei que “dispõe sobre a extinção progressiva dos manicômios e sua substituição por outros recursos assistenciais e regulamenta a internação psiquiátrica compulsória.”
[caption id="attachment_119197" align="alignleft" width="350"] Hospital Colônia de Barbacena em 1979. Foto: Jane Faria[/caption]
Mas foi só em 2001 que se aprovou o novo marco legal: a lei 10.216, instituindo a reforma psiquiátrica e os direitos das pessoas com transtorno mental. Foi o início de um longo processo de incidência política, diálogo e pressão social no sentido de construir os novos paradigmas para uma política nacional de saúde mental.
Aos trancos e barrancos, o Brasil avançou construindo a RAPS (rede de atenção psicossocial) que tem nos CAPS (centros de atenção psicossocial) seu alicerce. Uma política pública democrática, acolhedora, que promove os direitos humanos.
Ao invés de internação compulsória, atendimento integral. Os pressupostos dessa nova forma de lidar com as questões de saúde mental são a emancipação social e o não enclausuramento. O foco está no respeito à autonomia do indivíduo, no cuidado, no trabalho em rede, na inserção social. Daí a diversidade de recursos terapêuticos (tirando a centralidade da figura do médico e do hospital).
A política de saúde mental parte de uma abertura à complexidade e aos desafios de lidar com própria condição humana. É preciso abandonar preconceitos, descontruir as práticas de normatização e subjugação, entendendo e superando o processo histórico que descartou a “loucura” como manifestação subjetiva humana. Ou seja, no fundo, trata-se de despatologizar a vida – em todas suas dimensões.
Acontece que todo esse acúmulo civilizatório também está na mira dos golpistas. Enquanto Doria põe a polícia para reprimir e internar os pobres da Cracolândia, Temer acena com a volta do modelo manicomial. E as comunidades terapêuticas – grupos privados religiosos – ganham dinheiro público dos governos tucanos para internar e doutrinar dependentes químicos.
Daí que é preciso discutir, divulgar e celebrar os 30 anos da Carta de Bauru e os 40 anos da luta antimanicomial.
Em 8 e 9 de dezembro se reunirão de novo nessa cidade do interior paulista a militância nacional da saúde pública, da reforma psiquiátrica e da democracia – construindo trincheiras de resistência.
Por uma sociedade sem manicômios.
*Julian Rodrigues é da coordenação nacional do MNDH (Movimento Nacional de Direitos Humanos)
(Foto: CRP/RS)