Alteridade na areia: a diversidade batendo um bolão

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Vivemos um mundo de internet, redes sociais, nos quais as pessoas se “protegem” de sua ignorância, mas pouco viajam, pouco se dão a possibilidade de conhecer grupos que se pensam diferentes. A mídia insiste em dizer desde a abertura das Olímpiadas, que o “radicalismo” islâmico não permite participação das atletas na competição sem o uso do hijab. Nada novo, quando se trata de mídia brasileira, querendo a todo momento criar um papel de subjulgação à mulher muçulmana e repetem a falácia de que as mulheres ganham menos, que as mulheres param de ser esportistas quando tem filho para justificarem a subjulgação Por Francirosy Campos Barbosa* “Uma imagem vale mais que mil palavras”...Qualquer pesquisador de Islam no Brasil diante desta imagem diria que os estereótipos sobre mulheres muçulmanas podem sim serem desconstruídos, mesmo quando o texto que a acompanha vem repleto de desconhecimento do Egito (país de origem da jogadora), das mulheres muçulmanas e das práticas religiosas. Neste sentido, esta matéria é só mais uma que vai dizer que as mulheres são subjulgadas. Vivemos um mundo de internet, redes sociais, nos quais as pessoas se “protegem” de sua ignorância, mas pouco viajam, pouco se dão a possibilidade de conhecer grupos que se pensam diferentes. A mídia insiste em dizer desde a abertura das Olímpiadas, que o “radicalismo” islâmico não permite participação das atletas na competição sem o uso do hijab. Nada novo, quando se trata de mídia brasileira, querendo a todo momento criar um papel de subjulgação à mulher muçulmana e repetem a falácia de que as mulheres ganham menos, que as mulheres param de ser esportistas quando tem filho para justificarem a subjulgação. Mais do que antropologia, precisamos de uma antropologia da paciência para ler tantos estereótipos, um verdadeiro caldeirão de estigmas, talvez, se elas, não usassem lenço, nada disso apareceria. A luta pela igualdade de gênero, pelo respeito às mulheres independe de contextos, religiões. O machismo é algo entranhado na vida social, basta perceber o incomodo de alguns homens com as vitórias sucessivas das MULHERES nos jogos. Foucault ao escrever sobre as “artes de julgar” pode nos ajudar a pensar este efeito que causa uma mulher muçulmana vestida com um dos seus trajes tradicionais: “A norma, está inscrita entre as “artes de julgar”, ela é um princípio de comparação. Sabemos que tem relação com o poder, mas sua relação não se dá pelo uso da força, e sim por meio de uma espécie de lógica que se poderia quase dizer que é invisível, insidiosa”1. A imprensa, quase sempre usa expressões de efeito para desviar a atenção daquilo que importa, e dá visibilidade a elementos que não são questões para o grupo em evidência. Não vou aqui repetir a importância do hijab(que infelizmente tive que ouvir a pronúncia de Jihad... “elas usam jihad” disse um jornalista), porque já o fiz em outro texto que pode ser consultado: “Dialógos sobre o uso do véu...” http://seer.fclar.unesp.br/perspectivas/article/view/6617 , mas vale destacar alguns pontos: 1) muçulmanxs não são proibidxs de realizarem práticas esportivas. Há um hadith (dito, prática do Profeta Muhammad) copilado por Bukari que comprova isso:“O mensageiro de Deus reuniu um grupo de pessoas que estavam competindo no tiro com arco de Bani Aslam. Ele lhes disse; “Ó filhos de Ismail! Atire suas flechas; seus antepassados eram bons em tiro com arco. Atire! Eu apoio tal e tal tribo...” e depois corrigiu: “apoio ambos os grupos”, consubstanciando a importância de torcer pelos seus competidores; 2) Para um muçulmano praticante nada pode ser maior que Deus, por isso, repetem constantemente: Allahu Akbar, que significa Deus é Maior. No esporte não seria diferente, Deus vem em primeiro lugar e tudo é atribuído a ele, seja o resultado positivo ou negativo. É comum ver um muçulmano antes de iniciar sua atividade, seja ela qual for, dizer: Bismillah, Rahmani, Rahim), o que significa "Em nome de Deus, o Clemente, o Misericordiador". Na acepção islâmica o esforço é individual, mas a concretização é de Deus, é Ele que define o resultado, por isso repetem: “se esforçar é da nossa parte, concretizar é com Allah o Altíssimo”. 3) mulheres muçulmanas que usam lenço, em situação nenhuma fora de sua casa apareceriam sem o mesmo, portanto, se a jovem atleta usa lenço em seu cotidiano, jamais se permitiria a prática esportiva sem o lenço, lendo a matéria ficamos sabendo que a sua parceira não usa lenço, mas o foco será sempre a mulher que usa lenço; 4) Mais do que um sinal diacrítico, o lenço é um elemento que contribui para construção da noção de pessoa (para usar uma categoria maussiana) de uma mulher muçulmana. Retirá-lo é também retirar sua persona, aquilo que a identifica como pessoa que professa uma religião. Mas este texto tem que voltar para beleza da imagem, para o seu punctum, para o subjetivo como definiria Barthes: “(…) é aquilo que eu acrescento à fotografia e que, no entanto, já está lá” (1980:32). Para mim, a beleza de ver uma mulher muçulmana coberta fazendo o que gosta, e da maneira que gosta é o punctum desta imagem. Bom seria se todas as mulheres muçulmanas pudessem usar seus lenços sem que fossem apontadas nas ruas, nas redes sociais, no trabalho, na escola, como sendo uma pessoa inferior, menor, oprimida, SUBJULGADA. Para mim, não importa o resultado, importa que tenham mulheres cada vez mais em todos espaços, sejam muçulmanas ou não muçulmanas. Que os próximos textos sobre mulheres muçulmanas não venham carregados de estereótipos da sua religião, mas sim que retratem a sua qualidade como esportista, como mais uma mulher a disputar um espaço no pódio olímpico. Que o único fato a ser observado na imagem é a invasão da jogadora alemã, ou não seria invasão? Por um mundo onde as mulheres muçulmanas não tenham medo de demonstrar a sua fé pelo uso do lenço, pois este não cobre pensamento, mas revela a fé de uma mulher. 1FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 1. A vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1988. Foto: REUTERS/Lucy Nicholson *Francirosy Campos Barbosa é antropóloga, pós-doutora pela Universidade de Oxford sob supervisão do professor Tariq Ramadan; docente na Universidade de São Paulo, coordenadora do GRACIAS (Grupo de antropologia em contextos islâmicos e árabes).