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No dia 26 de julho, um homem invadiu um centro de cuidados às pessoas com deficiência, esfaqueou 19 e feriu outras 26 na pacata cidade de Sagamihara, no Japão. Foi o maior assassinato em massa no país desde a Segunda Guerra Mundial. Não houve grande clamor público, não houve #hashtag
Por Adriana Dias*
Em 26 de julho último, no Japão, um jovem de 26 anos de idade, Satoshi Uematsu, esfaqueou 19 pessoas à morte, e feriu outras 26 na pacata cidade de Sagamihara. Uma cidade de pouco menos que 700 mil habitantes. O ataque foi às pessoas com deficiência em uma casa de cuidados residenciais. Uematsu havia trabalhado ali anteriormente. Após o perverso abate, ele twittou: "Espero a paz mundial Beautiful Japan !!!!!!".
Então, entregou-se à polícia. O jornal The Guardian relatou que ele disse à polícia a seguir: "É melhor que as pessoas com deficiência desapareçam." O massacre se deu no 26º aniversário do Americans with Disabilities Act, que iniciou o grande debate de direitos para essas pessoas no mundo, levando a Convenção da ONU de Direitos das Pessoas com Deficiência. O dia foi escolhido, obviamente.
Ele trabalhou lá, como dito, conhecia o movimento das pessoas com deficiência. Conhecia os funcionários, os residentes, seus familiares. Acreditava ser capaz de matar 470 pessoas, em duas instituições, antes de se entregar. Disse que faria isso pela felicidade do mundo, sem prejudicar a equipe. Disse isso, por escrito, a parlamentares, antes. Fez por ódio. Apenas por ódio. Muito além do ableism, um crime de ódio que deixa a todos os seres humanos, verdadeiramente humanos, estarrecidos.
A natureza do crime mostra um crime meticulosamente arquitetado: amarrou um funcionário. “Não foi um crime impulsivo. Entrou na instituição, no escuro da noite, abriu uma porta de cada vez e esfaqueou pessoas que estavam a dormir, uma a uma. Não consigo acreditar na crueldade deste crime”, disse Yuji Kuroiwa, governador da região em que aconteceu o ataque. Naquele centro, viviam 150 pessoas, com idades entre 9 e 75 anos.
Uematsu tinha escrito ao governo japonês em fevereiro deste ano, delineando a sua intenção de matar. Ele foi hospitalizado involuntariamente por duas semanas, e libertado sem acusações. Parecia melhor, achavam. Sonhava com um mundo “livre” (botem milhões de aspas, please) de pessoas deficientes.
Parte de sua carta diz: Meu raciocínio é que eu posso ser capaz de revitalizar a economia mundial e eu penso que pode ser possível evitar III Guerra Mundial.
Imagino um mundo onde uma pessoa com deficiências múltiplas possam ser eutanasiados, por guardiões, quando é difícil para a pessoa realizar atividades familiares e sociais.
Eu acredito que ainda não exista uma resposta sobre o modo de vida para indivíduos com deficiências múltiplas. As pessoas com deficiência só podem criar miséria.
Acho que agora é a hora de realizar uma revolução e tomar a decisão inevitável, mas difícil, para o bem de toda a humanidade. Vamos no Japão dar o primeiro grande passo.
Foi o maior assassinato em massa no Japão desde a Segunda Guerra Mundial. Dezenove pessoas morreram. Não houve grande clamor público. Como um grande escritor da deficiência me escreveu em mensagem, não houve #hashtag.
Sam Connor, outro ativista do tema, também notou a imensa ausência na mídia mundial, e eu noto daqui a tupiniquim, descrevendo. "Na esteira de outros assassinatos em massa e crimes de ódio, em que houve efusões de luto público, mostras de solidariedade. Depois Japão. Talvez o único crime de ódio em massa onde o assassino havia sinalizado claramente a sua intenção de 'eutanásia' - não havia nada”.
Numa Reunião Brasileira de Antropologia - RBA, há cerca de uma década, eu falava sobre um ataque neonazi a uma escola de crianças com deficiência intelectual nos EUA. Um professor da plateia teve a insanidade de dizer que eu inventei David Lane, o líder neonazista que biografo na minha pesquisa de Doutorado, o ataque, tudo, apenas porque eu citei um ataque a uma escola que ele nunca ouviu falar.
Quantos ouviram sobre o ataque sobre o Japão? Quantos se lembrarão daqui a dez anos? O obscurantismo daquele professor e da mídia mundial diante do ataque do Japão se assemelham. A mídia muitas vezes retrata o cuidador violento como alguém bom, que não aguentou cuidar tantos anos a fio. A violência contra as pessoas com deficiência é uma realidade. Parece que quase justificável, misericordiosa, se for para dar fim numa vida doente. Ideia nada nova, infelizmente.
Vejamos: dados recentes do Senado australiano apontam que 70% das mulheres com deficiência são vítimas de encontros sexuais violentos, e um enorme 90% das mulheres com deficiência intelectual foram abusadas sexualmente, mais de dois terços dos que antes de completar 18 anos. Nada muito melhor que no resto do mundo.
Aqui no Brasil eu realizei um survey, em Campinas, mostrando que mulheres com deficiência física, como eu, ou cegas têm 2 vezes a possibilidade de uma mulher sem deficiência de ser violada sexualmente. Se for surda aumenta em 5 vezes a chance, e se tiver deficiência mental ou intelectual, 9 vezes. Os abusos sexuais das mulheres com deficiência intelectual, que chegam aos 90% dos australianos, se somam à esterilização forçada. É um absurdo, desconhecido, silenciado.
Os homens não escapam também: um dia antes do terrível massacre no Japão, policiais canadenses agrediram o autista somali-canadense Abdirahman Abdi, primeiramente com spray de pimenta, depois com espancamento. Ele morreu devido à agressão. Na Austrália, em muitas escolas, crianças com autismo de ambos os sexos são colocadas em gaiolas. GAIOLAS. Nos EUA, crianças com deficiência são costumeiramente vítimas de maus-tratos. Em especial, as negras.
Pessoas com deficiência são expostas a todos os tipos de violência, dentro e fora da família das relações de cuidados, de afetos, sociais, privadas de liberdades, esterilizadas compulsoriamente, atacadas em patrimônio, violadas em cidadania. Vivemos com medo. Não sem razão.
Sem hashtag e com medo.
Enquanto o ataque ao jornal francês "Charlie Hebdo", em Paris, tem quase 500 mil entradas no Google, justificáveis diante do horror, o ataque ao Japão tem um quinto disso, e uma parte APLAUDE o rapaz. Apenas 583 entradas falam do ableism do caso. É, no mínimo, “bom para pensar”.
Em 2006, nos EUA mediram crimes de ódio, e haviam crescido 8%. Por motivos religiosos, 19% . Contra gays e lésbicas, 18%. Contra judeus, 14%. Contra latinos, 14%. Um horror. Contra pessoas com deficiência mental, 96%. Aí, vira segredo de Estado. Ninguém fala. Antes que alguém questione a falta de fonte, é o relatório anual do FBI, ok? Inclusive está na web. Até o professor da RBA pode olhar com certa facilidade...
Pessoas com deficiência sempre viveram entre o crime de ódio e a violência. E o silenciamento disso.
As pessoas depois de tragédias como essa costumam apoiar as comunidades que foram atacadas, mas no caso das pessoas com deficiência tem sido até difícil encontrar a história na mídia, com uma análise minimamente crítica. O assassino não é um doente mental. Ele é uma pessoa com ódio. Ódio não é uma opinião, algo que se aprende, algo que passa pelo cognitivo, e depois se transforma em emoção, ódio é um processo. Vai ler Sartre por favor, em Reflexões sobre o racismo, e entenda de uma vez porque precisamos estudar raça para compreender deficiência. A eugenia não voltou. Ela nunca foi embora. A AKtionT4 do regime nazista foi um exemplo. Sagamihara é outro.
A questão aqui é entender como um crime de ódio se constrói. Não é fruto de doença mental. Não é um fato isolado. É um fato histórico, social, construído pela humanidade. As pessoas com deficiência mortas, desculpem-me os religiosos, não foram para um lugar melhor. Foram assassinadas. O ableism não é fruto do Japão, embora o Japão tenha uma história social de ableism hard. A humanidade tem um ableism que precisa ser lida, discutida, desconstruída. Leve a causa das pessoas com deficiência a sério. Elas fazem parte da diversidade humana. São pessoas. Devem ser empoderadas no trabalho, na vida, na sociedade. Não queremos piedade, queremos reparação.
Queremos reparação às famílias. Desde Acktion T4 até Sagamihara. E para todos os mortos com deficiência.
Com #hashtag e sem medo, precisamos falar de Sagamihara.
*Adriana Dias é coordenadora do Comitê "Deficiência e Acessibilidade" da Associação Brasileira de Antropologia, e coordenadora de pesquisa tanto no Instituto Baresi (que cria políticas públicas para pessoas com doenças raras) quanto na ONG ESSAS MULHERES (voltada à luta pelos direitos sexuais e reprodutivos e ao combate da violência que afeta mulheres com deficiência). É membro da American Anthropological Association,e foi membro da Associação Brasileira de Cibercultura e da Latin American Jewish Studies Association