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Duas semanas após a morte da ex-ministra da Igualdade Racial, a escritora Cidinha da Silva presta uma homenagem ao relembrar os momentos mais marcantes ao lado de Luiza, que se tornou uma referência em todo o país na luta contra o racismo
Por Cidinha da Silva*
Tenho aprendido que a morte, embora produza um destino comum, nunca é a mesma. Tem sentidos diferentes, de acordo com quem morre e da forma como morre.
No meu inventário afetivo de mortes, predominam jovens e crianças (o que deixa uma pessoa calejada) e mortes por doença, coisa que dói muito também. Não tive ainda a graça de acompanhar mortes por velhice, por esgotamento do contrato com a vida pela natural decorrência do tempo. Do tempo que se conta pelo relógio, não o tempo do espírito e seus acertos misteriosos com o infinito.
Luiza Bairros partiu para uma jornada maior, dia 12 de julho de 2016, levada por um câncer de pulmão. Mais um para meu inventário de perdas dolorosas. A singularidade dessa morte é que, mesmo alertada por amigas sobre a gravidade da situação, eu não contava que fosse acontecer e precisei ver o corpo inerte para crer. Para acreditar. Para me confortar imaginando que ela tenha dito ao tempo: “Deu, tempo! Já deu!”
Precisei estar lá porque Luiza Bairros, junto com Sueli Carneiro e Hélio Santos, são minhas referências de formação há 30 anos. Os pilares que me fizeram negra, plena de direitos e responsabilidades. Desde os 20 anos, essas três pessoas me fazem ser quem sou com amor, zelo, incentivo e puxões de orelha (menos do Hélio, que é mais permissivo).
Em meio a muita emoção, tristeza e incredulidade, duas falas calaram fundo em mim. A primeira foi de Iêda Leal, que nos disse: “Todos os que estão aqui (e acrescento as amigas de mais de 40 anos de convivência que não conseguiram reunir forças para se despedir) tiveram a oportunidade de conhecer uma Luiza Bairros”.
Sim! Luiza foi singular para cada uma de nós: Luiza-mãe; Luiza-irmã; Luiza-amiga; Luiza-mentora; Luiza-companheira de militância; Luiza-líder; Luiza-conselheira atenta; Luiza-pesquisadora; Luiza-gestora bem preparada; Luiza-ministra. Mas, uma coisa Luiza Bairros foi para todas nós. Foi espelho e inspiração para fazer bem feitas as mínimas e as grandes coisas.
O nome Luiza Bairros fica em nós como sinônimo de esmero, dedicação, seriedade, compromisso, consequência, solidariedade e amor pelo povo negro do Brasil, da Diáspora e da África. Em nome desse amor ela entregou a vida a uma causa, a luta diuturna contra o racismo e pela promoção da humanidade das pessoas negras.
Houve sempre um traço de afeto em sua permanência na Terra. São muitas as lembranças do seu jeito amoroso de cuidar das pessoas negras, conhecidas ou não. Lembro-me que certa feita fui vê-la num debate no Rio e conversávamos numa roda quando chegou uma garota universitária que parecia procurar por alguém.
Luiza se aproximou dela e perguntou “você é fulana de tal?” A moça respondeu afirmativamente. Luiza então se apresentou e disse que havia levado o livro para ela e tirou da bolsa um volume xerografado e encadernado. Conversaram um pouco, a estudante agradeceu, guardou o livro e foi embora.
Noutra oportunidade, estávamos nos Estados Unidos. Eu fazia mestrado e Luiza, o doutoramento no mesmo programa. Morávamos em cidades diferentes e eu a havia hospedado numa curta semana de férias. Eu havia estocado de Minas três caixinhas de goiabada cascão para me abastecer por um ano inteiro.
Luiza, quando viu o doce na geladeira, disse que queria uma caixa. Relutei em dar, argumentando que não era de meu conhecimento que gaúchas gostassem de goiabada. Ela disse que também não tinha essa informação. O certo é que ambas sabíamos das fomes que sentimos quando distantes da terrinha.
Como ficamos mais próximas, eu enchia a paciência de Luiza (por telefone) com minhas lamentações, inadaptações, culpas por minha mãe que sofria com um câncer de mama, iniciava a metástase nos pulmões e passava pela quarta pneumonia.
Um dia, já impaciente, ela me disse: “Guria, para mim é muito difícil ficar aqui também (ou seja, pare de falar das suas dores que isso também ativa as minhas), mas parece que para você é mais. Se é tão ruim assim, por que você não vai embora?” Era o que faltava para me libertar. Depois da “autorização” de Luiza, em menos de trinta dias estava de volta ao Brasil, para não mais retomar o mestrado nos EUA.
Em 2008, quando os institutos Nzinga e Pedra de Raio generosamente organizaram o lançamento do meu segundo livro - “Você me deixe, viu? Eu vou bater meu tambor!” - na Fundação Pedro Calmon, recebi dois presentes inesquecíveis.
O professor Bira, então presidente da Fundação, fez a gentileza de me receber e leu um conto de sua lavra, dedicando-o a mim. Luiza, por sua vez, foi convidada a comentar o livro e, como era de seu feitio, fez variadas perguntas à autora. Respondi a todas, creio. Num dado momento em que olhei para ela enquanto dizia não sei o quê, vi que estava chorando e embarguei a voz (não sabia que Luiza chorava).
Finda a mesa, dezenas de autógrafos, ela recomposta e lágrima alguma havia acontecido. Intrigada, contei o ocorrido a um velho Taata que lá estava e quis saber a opinião dele, que me disse como coisa óbvia: “Ora, não sabe como é essa gente de Xangô? É de alegria! Ela está feliz! Você cresceu!”. Era assim, Luiza! Ela se emocionava, genuinamente, com o crescimento da gente. Foi assim com as dezenas de mulheres negras que ela orientou e inspirou ao longo de quatro décadas.
Mais à frente, quando escrevi o “Racismo no Brasil e afetos correlatos”, pedi a ela que escrevesse a orelha, mesmo sabedora de suas múltiplas ocupações como ministra. Depois de algum tempo sem resposta, escrevi de novo, dizendo que precisava liberar o livro e que, se ela não pudesse escrever, não havia problema. Ela não disse que sim, nem que não. Apenas ponderou o quanto estava ocupada. Eu compreendi, agradeci e busquei outro 'orelhista'.
A segunda coisa muito marcante, ouvida no momento da despedida de Luiza, foi dita por Vilma Reis: “Luiza Bairros e sua geração de militantes negros inventaram um país para a gente existir”. É isso! Todas e todos nós, de distintos tempos, somos devedoras dessa geração que inventou um país para que a gente pudesse existir!
A despedida foi entre amigos, plena de declarações de afeto, sem discursos politiqueiros. Foi possível porque seus familiares tiveram a generosidade de fazer uma cerimônia longa, de três dias, por mais que isso fosse penoso para eles, para que várias pessoas que também a amaram muito pudessem se deslocar de vários lugares do país até Porto Alegre. E foram muitas as que não conseguiram ir porque não conseguiriam se despedir de uma pessoa tão íntima e especial.
Houve um momento religioso em que ela foi saudada como o são as autoridades que partem, as Iyás e os Babás. E que orixás, encantados, ancestrais vieram para também saudá-la e limpar o caminho de toda mágoa e dor.
Agora é o tempo do descanso, de aposentar o machado. O tempo da pedra silenciosa que se desfaz em barro. Tempo de volta à Terra. À água. Ao sal! Siga em paz, Luiza, tão querida. Zambi yá kwatesá!
* Cidinha da Silva é escritora. Publicou, entre outros, Racismo no Brasil e afetos correlatos (Conversê, 2013) e Africanidades e relações raciais: insumos para políticas públicas na área do livro, leitura, literatura e bibliotecas no Brasil (FCP, 2014). Despacha diariamente em sua fanpage
Foto: Tomaz Silva/ Agência Brasil