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Desde a consumação do golpe parlamentar, com sua devida legitimação nas urnas, o processo político no Brasil tem sido orquestrado por um conservadorismo que não tergiversa. Um Estado que - para garantia dos interesses de uma elite financeira e suas subsidiárias - lança ao sacrifício grandes contingentes de sua população, não pode prescindir de um aparato destinado à contenção física, política e jurídica dos excluídos pela nova ordem
Por Débora Medeiros*
No palco da luta política brasileira o Estado penal canta, dança e representa.
Não poderia ser diferente.
Desde a consumação do golpe parlamentar, com sua devida legitimação nas urnas, o processo político no Brasil tem sido orquestrado por um conservadorismo que não tergiversa. Ao Estado brasileiro, há longa data preso político do capital financeiro, agora caberá o papel de escravo. As frestas de possibilidade de indução de desenvolvimento e geração de bem estar social, embora fossem insuficientes no pacto político da Nova República, agora (tudo leva a crer) estarão irremediavelmente fechadas pelos próximos vinte anos.
E isso não é, e não será, sem consequências. Um Estado que - para garantia dos interesses de uma elite financeira e suas subsidiárias - lança ao sacrifício grandes contingentes de sua população, não pode prescindir de um aparato destinado à contenção física, política e jurídica dos excluídos pela nova ordem. E é este, precisamente, o momento em que tem de entrar em cena o Estado penal.
Aos fatos. Dia quatro de novembro: a polícia civil invade, sem mandado judicial, a Escola Nacional Florestan Fernandes, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), numa ação que envolveu o uso de armas letais. Cinco de novembro: o juiz Sérgio Moro, tornado paladino da moralidade pela punição dos colarinhos brancos, defende, em sua entrevista ao Estadão, a redução do foro privilegiado, questionando a estrutura limitada do Supremo para “atuar em tantos casos criminais”. Seis de novembro: encontrados, na zona rural de Mogi das Cruzes, os corpos de Jones, César, Jonathan, Caique e Robson, jovens negros da zona leste, desaparecidos desde o final do mês de outubro.
A coincidência temporal dos fatos não é obra do acaso, e tem muito a dizer sobre o golpe em curso na cena política e os rumos da esquerda brasileira. A atuação de um Estado penal no Brasil, inclusive como Estado de exceção, não é de hoje. E é necessário que seja melhor compreendida.
No processo que culminou com o golpe parlamentar, jogava como pivô um ator até então periférico na luta política. O complexo jurídico-policial (assim denominado pelo sociólogo Jessé Souza em sua Radiografia do Golpe) foi agente decisivo na consumação do golpe, mas os plenos poderes à Operação Lava Jato foram garantidos até os quarenta e cinco minutos do segundo tempo. O imobilismo diante do ataque, fruto da crença em um aparato de Estado neutro, técnico, nascido fora da luta política, concorreu para a desfecho do golpe que decapitou a Nova República.
E enquanto as ações seletivas de Moro seguem deslocando a luta política para a esfera jurídica e ameaçando atolar o Supremo Tribunal de processos criminais, há quem se diga de esquerda e não se envergonhe em dar vivas à Lava Jato. A ideologia jurídica parece ter feito, aqui, um ótimo trabalho de base.
Da mesma forma, a criminalização dos movimentos sociais, que o digam os movimentos de luta pela terra, não começou ontem. Sua manifestação ostensiva e pouco mediada contra o MST foi mais uma demonstração da capilaridade da narrativa de criminalização das forças antagonistas que uma novidade no cenário da luta política. O campo conservador foi eficaz na criação dos “inimigos”, e agora pode lhes declarar guerra à vontade.
E quanto aos corpos dos jovens negros?
Estes sim, e talvez mais do que qualquer outro fato político recente, tem muito a dizer.
É urgente compreender que o cotidiano das periferias (que a esquerda ainda não conseguiu mobilizar contra o golpe) é organizado pela presença diuturna da faceta mais bárbara do Estado Penal brasileiro. Nas periferias onde vivem jovens negros como Jones, César, Jonathan, Caique e Robson (cujos corpos foram encontrados próximos a cápsulas de armamentos de uso restrito das forças de segurança) o Estado de exceção é, há muito, a regra.
O Brasil teve, segundo o último Anuário Brasileiro de Segurança Pública, mais mortes violentas intencionais entre 2011 e 2015 que a Síria em guerra. A mesma fonte mostra-nos, ainda, os rostos das vítimas em 2015: 54% de jovens, 73% pretos e pardos. Os dados do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias, divulgados em abril deste ano, complementam o cenário: hoje existem mais de 600.000 brasileiros presos, sendo mais de 60% destes pretos e pardos.
Estamos, portanto, diante de um Estado que num contexto de golpe institucional criminaliza os antagonistas políticos e age abertamente contra movimentos sociais, mas que cotidianamente, em pleno funcionamento do dito Estado de Direito, já prendia e executava sumariamente os membros mais vulneráveis nas periferias da sociedade.
Cabe, aqui, perguntar: quanto de sua energia política o campo progressista, onde alguns se indignam com a “traição do povo” diante o golpe em curso, tem mobilizado para a compreensão desse cotidiano de exceção? Quais respostas tem dado, na vivência comunitária cotidiana, ao drama do povo negro na periferia, que agora necessita mobilizar politicamente? Esforços tem sido feitos para perceber os caminhos da atuação social e da mobilização afetiva das igrejas pentecostais nesse território, ou se tem somente acusado o povo das periferias de ignorância e alienação?
César, Jonathan, Caique e Robson tiveram seus corpos enterrados no último sábado, doze de novembro. É preciso, e é urgente, tirá-los das notas de rodapé das análises de conjuntura da esquerda brasileira.
Fora isso, o que há é somente a condenação à sina de uma esquerda sem povo.
*Débora Medeiros é médica e coordenadora do projeto A São Paulo que Queremos
Foto: NINJA