Grupos religiosos têm travado duras batalhas com os movimentos LGBT e feminista para retirar dos planos nacional e municipais de educação as metas relacionadas ao combate à discriminação de gênero e orientação sexual. Estudiosos afirmam que pautar a questão no ambiente escolar é importante para desnaturalizar o machismo e LGBTfobia
Por Anna Beatriz Anjos e Leonardo Fuhrmann
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[caption id="attachment_71796" align="alignleft" width="300"] Votação final do PME de São Paulo, na última semana (Foto: Ennio Brauns)[/caption]O Plano Municipal de Educação da capital paulista foi aprovado nesta semana, depois de uma votação em dois turnos na qual duas expressões chamaram mais a atenção do que o restante do texto: “gênero” e “orientação sexual”. Assim como já havia acontecido na primeira votação, grupos religiosos e ligados aos direitos LGBTs disputaram espaço nas galerias do plenário e na rua em frente à Câmara Municipal por conta dessas três palavras. Mas o barulho não foi o mesmo, pelo menos na hora de sensibilizar os ouvidos dos vereadores que participaram da votação.
No primeiro turno, apenas Ricardo Young (PPS) e Tonhinho Vespoli (Psol) rejeitaram o substitutivo do texto de autoria do vereador Ricardo Nunes (PMDB), que excluía as duas expressões. Na segunda votação, Véspoli, Cláudio Fonseca (PPS), Netinho de Paula (PDT) e Juliana Cardoso (PT) rejeitaram o texto sem os termos. A derrota dos defensores dos direitos LGBT já estava desenhada desde o momento em que a bancada do PT, uma das maiores do Legislativo paulistano, decidiu não brigar pela manutenção dos termos que constavam na proposta original. O argumento de que era necessário garantir outros avanços presentes no texto foi reforçado pelo prefeito Fernando Haddad (PT), que já deu mostras de que não brigará pela inclusão da trinca de palavras. Ele repetiu outra justificativa anteriormente colocada por vereadores petistas, de que outras leis municipais e federais impedem qualquer tipo de constrangimento a gays, lésbicas, bissexuais, transexuais e travestis.
A vitória de grupos religiosos na principal cidade do país é só um capítulo da série de rejeições à inclusão oficial das três palavras nas diretrizes educacionais. O primeiro passo aconteceu quando as expressões foram retiradas do Plano Nacional de Educação (PNE) e tem se repetido nas votações dos planos municipais (PMEs) Brasil afora, em uma articulação que inclui diversas igrejas evangélicas, diferentes setores da Igreja Católica e grupos ultraconservadores como o Instituto Plínio Corrêa de Oliveira, de tendência católica, formado por seguidores do fundador da Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade (TFP).
No caso paulistano, a retirada das palavras teve Ricardo Nunes como protagonista. Vereador em primeiro mandato, o peemedebista soube transformar o tema em bandeira. Originário da zona sul da cidade, mandou fazer panfletos com frases dos arcebispos de São Paulo, dom Odilo Scherer, e de Santo Amaro, dom Fernando Figueiredo, contra algo que batizaram como “ideologia de gênero”. As manifestações de ambos juntas revelam, aliás, a dimensão que o assunto ganhou entre os católicos. Figueiredo é ligado a grupos conservadores dentro da Igreja, como os carismáticos, enquanto Scherer mantém um perfil mais discreto em temas políticos e é apontado como moderado.
O termo “ideologia de gênero” não foi empregado apenas pelos católicos: os evangélicos também o utilizaram em peso para atacar as metas de combate à discriminação de gênero e orientação sexual nos PMEs de vários lugares. Estudiosos da questão, entretanto, contestam a denominação, considerada por eles falaciosa.
A importância da discussão sobre gênero nas escolas [caption id="attachment_71797" align="alignright" width="225"] Dylan Vicente Alves Belo, transexual de 18 anos, abandonou a escola por conta do bullying de que era vítima (Reprodução/Facebook)[/caption]
Para compreendermos a função que cumpre a expressão, é imprescindível entendermos antes o que significa “gênero”. A cientista política Flávia Biroli, professora da Universidade de Brasília (UnB) e coordenadora da área temática de gênero da Associação Brasileira de Ciência Política (ABCP), desmistifica a ideia de que o conceito seria empregado para incentivar os estudantes a assumirem determinada orientação sexual, como é recorrente no senso comum. “O conceito de gênero se define a partir da compreensão de que as características associadas aos sexos biológicos não são naturais, e sim uma construção social. O que os estudos foram, de diferentes maneiras, mostrando ao longo do tempo é que não existe uma forma de ser mulher ou homem permanente na história em diferentes sociedades”, elucida. “Além dessa construção dual do feminino e do masculino, há a noção importante da heteronormatividade – a norma heterossexual – que se impõe, naturalizando aspectos da corporalidade e das identidades que, na verdade, não foram dados pela natureza.”
É preciso salientar que a concepção de gênero não supõe fatos infundados. “A noção de gênero não constrói uma realidade, mas capta a diversidade dos afetos e relações que existe de fato na vida das pessoas. Ela é um aperfeiçoamento da compreensão de como se dão as relações sociais no que diz respeito não apenas à sexualidade, mas à atribuição de características, de papéis e de funções das pessoas”, explana a cientista política. Ela ressalta ainda que inúmeros pesquisadores em incontáveis universidades do mundo estudam tal conceito e produzem conteúdo acadêmico sobre ele.
Nesse sentido, Biroli define “ideologia de gênero” como um “truque de má fé”. “Não se pode chamar de ‘ideologia’ um discurso de inclusão, como se o que existisse para além dele fosse a neutralidade. Esse ensino neutro não existe, o que existe é mobilizar categorias mais ou menos plurais e democráticas na construção do processo de ensino”, argumenta.
Contemplar a pluralidade de corpos, valores e afetividades é, inclusive, a principal meta das discussões sobre gênero e sexualidade nas salas de aula. Para Ivan Russeff, pós-doutor em Educação e professor da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP), a escola é o principal ambiente difusor de cultura na sociedade e uma das grandes responsáveis pela socialização dos indivíduos. Por isso, ela precisa pautar a diversidade. “Reconhecer o outro é um dos grandes eixos da escola para o século 21. É o chamado direito à convivência, e o aluno tem que ter esse direito atendido. A escola precisa ensiná-lo a conviver com diferenças étnicas, raciais, econômicas e de gênero”, explica. “Aprender na escola as questões de gênero e aprender, mais do que isso, a discuti-las, é um fator de humanização indispensável.”
Biroli avalia que o alvo dos grupos religiosos contrários à abordagem do tema é sobretudo a comunidade LGBT, vista por eles como incompatível à natureza humana, cuja normalidade é ditada pelos sexos biológicos. No entanto, a mira está apontada também para a ampliação dos direitos das mulheres. “Quando não discutimos diversidade e igualdade de gênero, assumimos uma tradição masculina de compreensão do ensino, do conhecimento, das características que seriam adequadas para a formação. Não tematizar a sexualidade significa ignorar também as violências contra as mulheres.”
Mestre em Educação com atuação no tratamento de temas relacionados à Saúde dentro da sala de aula, a pesquisadora Jeane Félix destaca a importância da questão de gênero na Educação para o combate ao machismo que oprime as mulheres no país. “O Brasil tem dados alarmante de violência doméstica, sem falar nas questões relacionadas aos direitos das mulheres que são garantidos por lei, mas não são cumpridos de fato nos locais de trabalho, educação e dentro da família, por exemplo”, diz. “Ao não trabalhar esses temas, escolas e universidade terão de se responsabilizar institucionalmente pelas consequências.” Um exemplo é o caso dos estupros cometidos dentro da Faculdade de Medicina da USP, que se tornaram tema de uma CPI na Assembleia Legislativa do estado. [caption id="attachment_71798" align="alignleft" width="198"] A transexual Luana Martins concluiu o ensino médio por meio de supletivo. Agora, quer estudar Direito (Reprodução/Facebook)[/caption]
Psicanalista e criadora do Grupo de Pais e Mães de Homossexuais (GPH) e do Projeto Purpurina voltado para adolescentes e jovens LGBT, Edith Modesto acredita que a família, citada pelos religiosos como vítima da “ideologia de gênero”, pode sair fortalecida com a discussão sobre gênero e diversidade no ambiente escolar. “É uma maneira de ampliar o conhecimento e passar conceitos éticos de respeito às diferenças para os estudantes: de respeito à mulher, valorização do papel de mãe e esposa e reforço da união familiar; conceitos de respeito às todo tipo de diferença”, diz.
Quando a escola é omissa em relação a esse debate, como propõem seus críticos, as consequências podem ser desastrosas para os alunos que não se encaixam nas definições de gênero e sexualidade engessadas e pré-estabelecidas como aceitáveis pela sociedade. “Existem hoje muitos estudos indicando como as formas de exclusão que acabam orientando os modelos de identidade nas escolas têm ligação direta com o fato de que determinadas alunas e alunos tenham maior dificuldade nesse período escolar, inclusive de rendimento”, aponta. "Se você tem um ensino que reflete as normas masculinas e heteronormativas, não assume a neutralidade, mas sim um código que é excludente. Trabalhar com a questão da diversidade sexual nas escolas significa criar um ambiente mais democrático no qual o rendimento escolar das pessoas que estão de outra forma sendo estigmatizadas possa ser melhorado, porque sua vivência passa a ser parte do processo de ensino.
Além de inserir metas relacionadas à promoção da igualdade entre gêneros nos currículos escolares e diretrizes educacionais do país, como tentaram fazer o PNE e os PMEs, é importante pensar na formação dos professores, que muitas vezes reproduzem em aula as formas de opressão cristalizadas na sociedade. “É preciso compor um programa de atualização docente em que essas discussões sejam postas. Os professores precisam ser submetidos a um processo de atuação contínua”, propõe Russeff.
Um exemplo da situação citada pelo professor é o programa gratuito de pós-graduação em Direitos Humanos direcionado aos educadores da rede de ensino da cidade de São Paulo. Entre os cursos oferecidos, está o de Gênero e Diversidade na Escola, que trata exatamente das reflexões que os setores religiosos querem banir.
Sentindo na pele
Educadora e integrante do GPH, Mércia Falcini afirma que a escola é um local onde se reproduz a cultura machista e LGBTfobia presente na sociedade. “No caso de um preconceito escancarado, muitas vezes o LGBT é forçado a abandonar os estudos, como acontece com muitos transexuais. Em outros casos, o jovem é excluído, escanteado, forçado a viver sozinho mesmo cercado de pessoas. Discutir gênero e sexualidade faz com que os agressores passem a entender suas vítimas e parem de mimetizar o que eles aprendem na sociedade e através da cultura. Além disso, esse debate traria luz e acolhimento aos LGBT que tanto sofrem primeiramente com a autoaceitação e posteriormente, com a aceitação da sociedade”, acredita. [caption id="attachment_71799" align="alignright" width="180"] Na escola, Allana Menezes Bionda não tinha o nome social respeitado pelo professor (Reprodução/Facebook)[/caption]
A gaúcha Larissa Martins Dobler conta que parou de frequentar o curso de Edificações da Unidade de Panambi do Instituto Federal Farroupilha, por causa de uma professora que se recusava a chamá-la pelo nome social. A jovem de 21 anos conta que começou a ir cada vez mais tensa para a escola em razão disso. Ela relata que já havia parado de estudar uma primeira vez aos 15 anos, também em razão da resistência dentro da escola a lhe tratarem como uma mulher. “Consegui o atestado de conclusão do ensino fundamental graças ao Enem, mas, mesmo assim, tive de esperar por mais de uma hora e preencher um formulário para atestar que eu era a mesma pessoa do meu RG”, recorda-se. Agora, ela se prepara novamente para o Enem para conseguir, por meio da prova, o documento que confirma a conclusão do Ensino Médio.
O nome social também não livrou a baiana Luana Martins de constrangimentos na escola. “Na lista de presença, tinha meu nome social e o antigo, mas um professor insistia em me chamar sempre pelo masculino”, diz. Como outras transexuais, ela acabou concluindo o Ensino Médio graças a um supletivo. Agora, aos 22 anos, ela pretende conseguir primeiro todos os documentos com o nome feminino antes de retomar os estudos – quer ser advogada.
A paulista Allana Menezes Bionda diz que os problemas para ela no ambiente escolar foram anteriores ao momento em que assumiu a transexualidade. Hoje aos 19 anos, conta que começou a fazer o tratamento hormonal no ano passado. Mesmo assim, chegou a ser agredida por outros alunos, que zombavam de seus trejeitos excessivamente femininos. “Eu tinha 11 anos quando isso aconteceu. Depois que eu passei, um garoto mais velho jogou um livro em mim e, quando me virei, quatro deles passaram a me agredir. Tive até de mudar de escola depois disso”, conta.
O jovem transexual Dylan Vicente Alves Belo, de 18 anos, começou o tratamento à base de testosterona no ano passado. Ele também deixou a escola em razão do bullying que sofria. “Tinha momentos em que não me sentia preparado nem para responder às perguntas que meus colegas faziam sobre mim mesmo. Como eu poderia gostar de mulher e não ser lésbica? Por que eu usava roupas de sapatão, como eles diziam, e não me vestia como as outras meninas. Todo adolescente já não se sente seguro com seu corpo, para a gente a situação é ainda mais complicada”, diz. [caption id="attachment_71800" align="alignleft" width="168"] Larissa Martins Dobler deixou de estudar por conta da transfobia que sofria na escola (Reprodução/Facebook)[/caption]
Embora os alunos sejam aparentemente um elo mais frágil da relação do ensino, educadores transexuais também relatam situações de exclusão. É o caso da professora de Física Camila Godói, de 43 anos, que entrou na Justiça para tentar recuperar dois empregos, em uma escola em Jundiaí e outra em Jacareí, ambas no interior paulista. Ela conta que foi demitida em razão da transfobia.
Apesar de manter a aparência masculina no ambiente escolar, as informações sobre a sua transexualidade estavam disponíveis em suas redes sociais. Formada em Engenharia, ela se dedica ao magistério há 20 anos. Agora teme que a repercussão do caso ameace o seu emprego em uma faculdade, onde também leciona. O Colégio Cristão de Jundiaí negou que a demissão tivesse relação com o gênero da professora.
Foi o segundo caso semelhante revelado neste ano. Antes, a professora Luiza Coppieters afirmou ter sido demitida do colégio Anglo Leonardo da Vinci, na Grande São Paulo, depois de ter tornado pública a sua condição de mulher transexual. Ela tem atualmente 35 anos, dava aulas de Filosofia na instituição desde 2009 e foi desligada das unidades Alphaville, em Barueri; Granja Viana, em Cotia; Osasco e Taboão da Serra. Além de transexual, Luiza também é lésbica. Ela recebeu a solidariedade pública de alunos e colegas. A alegação do colégio para a demissão foi motivação profissional.
(Foto de capa: Ennio Brauns)