As cotas sociais e o senso comum

Desde que surgiu a internet e os âncoras de TV e rádio ganharam expressão, a maneira dos jornais se diferenciarem foram... imitando-os. Coluna da Folha de S.Paulo sobre cotas é um exemplo disso

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Desde que surgiu a internet e os âncoras de TV e rádio ganharam expressão,  a maneira dos jornais se diferenciarem foram... imitando-os. As matérias passaram a ser bem curtas e o chamado colunismo fast-food a emular o senso comum. Coluna da Folha de S.Paulo sobre cotas é um exemplo disso Por Luis Nassif, no Jornal GGN Qual deveria ser  a diferença entre um jornal e um comentário de rede social? A profundidade da análise, é evidente. Supõe-se que, com mais capacidade financeira do que meros comentaristas de redes ou blogs, os jornais desenvolveriam capacidade maior de análise, sobrepondo-se ao festival de lugares comuns que invade as redes sociais. Mas não é assim. Desde que surgiu a Internet e os âncoras de TV e rádio ganharam expressão,  a maneira dos jornais se diferenciarem foram... imitando-os. As matérias passaram a ser bem curtas e o chamado colunismo fast-food a emular o senso comum. E tudo isso sem os recursos dos links e dos ALT TABS. É o caso da coluna de hoje na página 2 da Folha sobre as cotas na USP. Hoje em dia há um mundo de literatura sobre o tema. A começar dos estudos da Unicamp mostrando que o aluno de escola pública que entra na Universidade já passou por uma seleção natural no seu meio. Chega com um nível um pouco abaixo dos colegas de escolas privadas. Mas em pouco tempo supera a diferença, porque a Universidade não é apenas um meio de obtenção de diploma, mas a saída para superar a miséria ancestral da sua família. Entendido isso, vamos à joia do pensamento kameliano (de Ali Kamel, da Globo) inserida na página 2 da Folha. "A primeira é qual a forma mais eficiente de uma universidade pública promover justiça. A questão não é retórica, principalmente no caso da USP, sustentada por um dos impostos mais regressivos do país, o ICMS. Se na origem da iniquidade está a falta de desenvolvimento econômico e institucional –e não a seleção universitária–, a melhor forma de construir bem-estar talvez seja amplificar a produção de tecnologia, inovação, processos, reflexão, política pública e profissionais de qualidade". Trocar o balde sob a goteira deixa o chão seco, mas o furo permanece". Sofisma 1 - se é o imposto mais regressivo, significa que é  preponderantemente bancado pelos mais pobres. Portanto não procede o argumento de que, ao ampliar as cotas para os mais pobres, a USP esteja afrontando os princípios de equidade fiscal. Sofisma 2 - Cria um falso dilema entre aumentar as cotas ou amplificar a produção de tecnologia, inovação etc. As duas iniciativas são excludentes apenas para reforçar o argumento da colunista. Provavelmente se os cursos de jornalismo fossem mais exigentes, o raciocínio dos formandos não seria tão simplificadamente binário. "Outra incógnita é se é justo, de fato, o novo modelo de seleção. Sabemos quem vai perder sua vaga para negros, índios e estudantes de escola pública? E se forem desbotados pobres cuja família se sacrificou anos para pagar uma escola particular?" Sofisma 3 - É fantástico! Segundo a lógica, estudam nas escolas públicas apenas os desbotados pobres cujas famílias não se sacrificaram para pagar escola particular. A atual geração de jornalistas formou-se passando pela USP antes do advento das cotas. Será que sua formação amplificou "a produção de tecnologia, inovação, processos, reflexão, política pública e profissionais de qualidade"? Será que sofisticou sua capacidade de análise? Será que conseguiram entender o mundo de forma mais complexa, a ponto de conseguir avançar além do raciocínio binário? "Premiar a origem sobre o desempenho, ainda que de forma parcial, desvaloriza o empenho. Está claro o impacto dessa mensagem?" Sofisma 4 - está claro o impacto da mensagem: completa ignorância sobre os componentes da desigualdade. Qualquer pensador consistente - seja liberal, populista, marxista - sabe que a base da desigualdade está no acesso às oportunidades do ensino. Eles podem discordar em vários pontos (imposto sobre heranças, tributação do capital, políticas de transferência de renda) mas são unânimes em considerar a igualdade de oportunidades na educação como pilar de uma sociedade menos desigual. Além da obviedade de que o aluno de escola pública que conseguiu chegar à Universidade - ainda que à custa de cotas - disputou a vaga com milhares de outros alunos e passou, graças ao seu empenho. Está clara a mensagem? "Mais um ponto: se a universidade hoje já não é capaz de facilitar o progresso dos menos ricos com cursos noturnos, moradia, livros e refeições suficientes, como vai apoiar e fortalecer os novos ingressantes?" Sofisma 5 - através de artigos mais elaborados e críticos analisando a razão desse apoio não funcionar e exigindo melhorias no atendimento. É assim que as políticas são aprimoradas. Veja o caso da inclusão de crianças com deficiência na rede pública. Pensadores binários diziam: se a escola pública não consegue atender os sem deficiência, como atenderá os com deficiência? Aí veio o Ministério Público Federal e passou a exigir que as escolas se preparassem. Hoje em dia existem 800 mil crianças com deficiência sendo atendidas. Se a lógica binária prevalecesse, estariam ao léu. "Por fim –já que, entre tantas reformas importantes, resolveu-se mexer na seleção–: manter critérios do século 19 (que nem sempre avaliam o raciocínio, mas a memória) é a forma correta de atrair os alunos com maior potencial de melhorar o país?" Sofisma 6 - Mas uma vez o pensamento binário, "ou", "ou", para uma lógica que evidentemente, obviamente, é "e" "e". Não há nenhuma relação de causalidade entre o modelo de prova e as cotas. É um argumento tão irrelevante quanto dizer que "se o prédio da reitoria está mal cuidado, não pode haver cotas sociais". "Não há dúvida de que a USP tem boas intenções. Mas o inferno, dizem, está cheio delas –e o uso populista e inadequado de recursos escassos é uma das vias mais rápidas até lá". Sofisma 7  - Os recursos aplicados serão os mesmos, apenas alguns alunos serão diferentes. Os melhores alunos cotistas, os que mais se esforçaram, os mais promissores, tirarão as vagas dos piores alunos não cotistas, e se juntarão aos melhores alunos não cotistas. Tenho certeza de que um aluno de favela, se cursasse a Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, na qual me formei, traria uma experiência de vida que lhe permitiria desenvolver raciocínios muito mais consistentes do que alunos que entraram sem se esforçar, formaram-se sem fazer força, e escrevem sem pensar. De más intenções reforçadas por pensamentos binários, o jornalismo está cheio. http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/226144-a-usp-no-rumo-do-inferno.shtml Fotomontagem: Jornal GGN