Escrito en
DIREITOS
el
Alvo principal das violações de direitos cometidas no processo de construção de barragens no Brasil, mulheres utilizam a ‘arpillera’ – uma técnica de bordado chilena – para contar histórias, entender sua realidade e fortalecer a luta por melhores condições de vida: “Passamos a ver na outra mulher uma forma de resistência”
Por Ivan Longo
No Chile ditatorial de Pinochet, nos anos 70, a técnica de bordado conhecida como ‘arpillera’ foi a maneira encontrada por um grupo de mulheres para denunciar as violações de direitos humanos do regime. Anos depois, o material produzido se tornou uma rica fonte de relatos e resgate à memória dos anos de chumbo. No Brasil, a técnica foi resgatada para os dias atuais e, da mesma forma que empoderava mulheres chilenas à medida em que contavam suas histórias, empodera também as brasileiras que perderam suas casas e foram alvo de inúmeros tipos de violações com a construção de barragens em todas as regiões do país.
[caption id="attachment_67347" align="aligncenter" width="578"] Apillera chilena do início da década de 80. (Acervo Kinderhilfe, Chile/Bonn, Alemanha)[/caption]
De 2013 para cá, o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) já realizou cerca de 100 oficinas de ‘arpilleras’ com mulheres. São mães, filhas, solteiras, casadas, jovens e adultas que, por meio da técnica de bordado, costuram as histórias, as violações a que foram submetidas e, por meio do compartilhamento das experiências, criaram um espaço seguro para entender sua realidade e, assim, fortalecer a resistência e a luta por direitos.
“Mais que a oficina em si, é na verdade um processo de formação, de debates sobre a realidade que essas mulheres vivem, de violação de direitos. Está servindo como um estímulo para as mulheres se reunirem, discutirem sobre os problemas que elas vivem, mas também transformar isso em uma possibilidade de construir pautas e lutas”, explicou Ivanei Dela Costa, da coordenação nacional do MAB.
[caption id="attachment_67348" align="aligncenter" width="611"] Mulheres atingidas pela barragem da hidrelétrica de Belo Monte em oficina de arpilleras. (Foto: MAB)[/caption]
Esse empoderamento se dá até mesmo pelo fato de que as mulheres atingidas por barragens, além de terem seus direitos violados por serem mulheres, também sempre ocuparam um papel secundário em todo o processo de retiradas de famílias com a construção de hidrelétricas. Com a oportunidade de, em grupo, contar suas histórias nos bordados, elas passaram a integrar o processo de diálogo e construção de demandas.
“Como historicamente nos foi negada a participação, muita coisa a gente nem conhecia. Agora, todas participam da luta por conhecer. As arpilleras nos propiciam isso”, disse a ribeirinha Tatiane Bezerra, uma das mulheres que participaram das oficinas de arpillera. Ela perdeu sua casa em 2003 com a construção da barragem do Castanhão, no Ceará.
Para a coordenadora Ivanei, a técnica das arpilleras, nesse sentido, até mesmo transgride o “papel” da costura, que sempre serviu para reforçar um lugar imposto às mulheres.
“Ao contar essas histórias nas peças, elas estão transgredindo o próprio papel da costura. Essa técnica serve como uma ferramenta para contribuir nesse processo de organização das mulheres atingidas”, analisou.
[caption id="attachment_67349" align="aligncenter" width="528"] As arpilleras das mulheres atingidas revelam violações de direitos. (Foto: MAB)[/caption]
Mais que histórias, denúncias costuradas
De acordo com uma estimativa da Comissão Mundial de Barragens, realizada em 2000, foram construídas no Brasil duas mil barragens que provocaram o despejo forçado de cerca de 1 milhão de pessoas; 70% delas não receberam nenhum tipo de indenização.
Pesquisa do Conselho Nacional de Direitos Humanos revela ainda que, nas regiões atingidas por barragens no país, há um padrão de violação de 16 direitos humanos. O principal alvo dessas violações: mulheres.
Como se não bastasse já perder a casa e o direito de plantar – já que a maioria das atingidas mora em zonas rurais e sobrevive da agricultura familiar -, as mulheres têm uma situação ainda mais grave com a chegada das empresas e das forças do estado: estupros, prostituição e violência doméstica são só algumas das marcas que o “desenvolvimento” traz a essas comunidades.
[caption id="attachment_67351" align="alignleft" width="308"] (Foto: MAB)[/caption]
“São mulheres atingidas, sofridas e humildes que, além de viver o problema da desigualdade social, tem isso agravado com a construção da hidrelétrica. Vem a empresa construir e as mulheres não são parte reconhecida nas negociações, se agrava o problema da violência, da prostituição. As mulheres são as que mais sofrem com essa situação”, contou Ivanei.
Tatiane, por exemplo, foi recomendada a sair de casa porque iam explodir uma dinamite na região e, quando voltou, sua moradia não tinha mais telhado. Para ela, as violações para com as mulheres atingidas refletem não só a integridade física, mas todo um tecido social.
“Os trabalhadores chegam nos pequenos povoados e começa, então, um processo muito grande de violações. Os laços começam a ser afetados com esse processo, cada família busca uma forma de sobreviver a todo esse contexto novo que chega na região. As escolas começam a fechar, os chamados chefes de família vão trabalhar na obra ou em outras regiões e há um rompimento do tecido social como um todo”, analisou.
[caption id="attachment_67352" align="aligncenter" width="555"] (Foto: MAB)[/caption]
Neste sentido, as arpilleras vem servindo como uma manifestação política. Tatiane, que passou por todas as violações e pode retratá-las com a agulha, explica: “A primeira coisa que a gente percebe é que, quando começamos a nos organizar, passamos a ver na outra mulher uma forma de resistência. Uma outra coisa que percebo é como esse processo de violação está presente em cada uma de nós e como isso nos dá fortaleza para a gente pensar para frente. Quando a gente começou a construir as arpilleiras no estado, começamos a discutir como era a comunidade, nossos problemas, nossos desafios. Colocando isso na arpillera a gente sente na pele como passamos por tudo isso e temos a capacidade de nos organizar; nos fortalecemos uma na outra”.
“Arpilleras: Bordando a resistência”
[caption id="attachment_67350" align="aligncenter" width="485"] Arte do cartunista Vitor Teixeira.[/caption]
Para ampliar ainda mais os horizontes da luta dessas mulheres e socializar o conhecimento adquirido, o Movimento dos Atingidos por Barragens está produzindo o documentário “Arpilleras: Bordando a resistência”, que retratará a vida, as histórias, a luta e as arpilleras de cinco mulheres atingidas, uma de cada região do país.
Para que o projeto fosse concretizado, o movimento colocou a ideia na plataforma de financiamento coletivo Catarse e, por meio das doações, atingiu, em dois meses, a meta de R$25 mil para produzir o filme ao longo do ano de 2015.
Confira abaixo o teaser do documentário.