“Antes de começar a cultivar eu tinha decidido, por opção pessoal, parar de usar cannabis e fiquei dois anos sem usar nada pelos problemas de ter de comprar do tráfico, não gostava desta energia. Eu optei pelo cultivo caseiro de maconha pela necessidade de me proteger contra o tráfico de drogas”. As palavras são do terapeuta goiano de 38 anos que, no “universo canábico”, é conhecido como Cultivador de Estrelas.
Ele tomou a decisão de plantar maconha em casa para fins medicinais e “recreativos” há 15 anos e, com o tempo, se tornou muito mais que só um consumidor, mas também um ativista pela causa. Hoje, além de atuar como terapeuta, mantém um blog em que compartilha experiências e dá dicas para aqueles que querem se aventurar no mundo do plantio caseiro.
“Fins recreativos”, aliás, é um termo que os cultivadores e defensores da causa não gostam muito de utilizar. “O uso recreativo e o uso medicinal, para mim, não têm diferença pelo fato de a planta ser toda medicinal. A cannabis medicinal sempre vai estar atuando e curando, independente da intenção da pessoa, agindo na vida biopsicosocial daquela pessoa e em todas as células de seu corpo. A palavra 'recreativo' está massivamente sendo usada pela mídia proibicionista, farmácias e indústrias em uma forma de tentar confundir as pessoas, como se houvesse alguma diferença em quem consome a cannabis medicinal, dificultando as urgências da alteração da Lei que protegeria milhões de pessoas”, explica.
Cultivador de Estrelas nunca teve nenhum tipo de problema com a polícia em relação ao seu cultivo ou sua atuação como blogueiro e militante. Nem sempre, no entanto, as coisas funcionam assim. Na última quinta-feira (21), por exemplo, a Polícia Civil do Rio de Janeiro entrou na casa do advogado e ativista Ricardo Nemer e apreendeu suas poucas mudas de cannabis que estavam sendo mantidas em uma estufa. Assim como o Cultivador de Estrelas, Nemer fazia o plantio para seu uso pessoal, mas pode vir a responder ao processo como traficante e chegar até mesmo a ser preso, de acordo com a interpretação da Justiça. O caso do advogado é só mais um dentre tantos outros que começaram a vir à tona principalmente neste ano.
No Rio de Janeiro, somente em 2015, ao menos seis cultivadores caseiros foram detidos e tiveram suas plantas apreendidas em uma ofensiva da polícia. Pelo menos dois continuam presos. Um dos casos que ganharam notoriedade e contribuíram para que o debate sobre cultivo caseiro fosse intensificado foi o do músico André da Cruz Teixeira Leite, o Cert, da banda de rap Cone Crew Diretoria.
Por meio de uma denúncia, a Polícia Civil invadiu sua casa em março e apreendeu seis pés de maconha que mantinha para uso pessoal. Cert foi autuado por tráfico de drogas e permaneceu preso durante um mês, até ser liberado por falta de provas. A prisão culminou em uma intensa campanha pela sua liberdade e pelo direito de cultivar maconha para uso pessoal. A hashtag #VamosPlantarMaconha chegou aos Trending Topics do Twitter e o lema principal da Marcha da Maconha do Rio de Janeiro deste ano, realizada no último dia 8, foi “Liberdade aos cultivadores caseiros”.
Além de Cert, outro casos de prisão este ano chamaram a atenção, como o do professor que foi detido após chamar a polícia por conta de um roubo em sua casa e os PM’s encontrarem suas mudas. Há ainda o caso do rapaz que foi autuado por tráfico por importar sementes de cannabis para tratar do câncer de sua namorada.
Pela Lei de Drogas em vigor no país, no entanto, ninguém deveria ser preso simplesmente por plantar maconha para consumo próprio.
A legislação
A Lei de Drogas do país (Lei 11343) proíbe o uso de substâncias entorpecentes, “bem como o plantio, a cultura, a colheita e a exploração de vegetais e substratos dos quais possam ser extraídas ou produzidas drogas”. A lei, no entanto, estipula punições distintas para usuários e traficantes. De acordo com a legislação, “quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar”, ou ainda aquele que cultiva “pequena quantidade” para “uso próprio”, está sujeito a penas de advertência, prestação de serviços à comunidade e à medida educativa de comparecimento a programas ou cursos, sendo enquadrado no artigo 28.
Não há uma estipulação, no entanto, da quantidade de maconha que distingue traficante de usuário, cabendo ao juiz determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal. Os traficantes, por sua vez, são enquadrados no artigo 23 e podem ser condenados a pena de 5 a 15 anos de prisão, mais pagamento de multa.
Já que o cultivo caseiro para consumo pessoal não é passível de prisão, por que então tantos “growers” foram presos desde o início do ano?
“Na maioria dos casos, raramente há uma investigação prévia. Uma denúncia e uma quantidade razoável de plantas já basta para o delegado considerar aquela pessoa um traficante, mesmo sem provas de transações comerciais. A polícia está tropeçando nisso”, explicou Emilio Figueiredo, advogado com atuação na defesa de usuários medicinais e cultivadores para uso próprio.
Figueiredo atua como consultor jurídico no site Growroom – uma plataforma que reúne dicas sobre cultivo caseiro e “growers” que compartilham suas experiências – de maneira voluntária, pois acredita ser uma “injustiça” uma pessoa ser considerada traficante quando, na realidade, ao recorrer ao plantio caseiro, ela está “fugindo do tráfico”.
Nesse sentido, sua consultoria é prestada com o objetivo de abrandar ou até mesmo anular a pena do cultivador que é preso por tráfico. Para o advogado, esse tipo de criminalização é inconstitucional.
“O crime hoje de uso é um crime inconstitucional. Ao entrar na casa de um cultivador caseiro, apreender suas plantas e o criminalizar por isso, são violadas algumas garantias democráticas fundamentais: o direito fundamental à intimidade, o direito fundamental à dignidade humana, à saúde, à inviolabilidade do lar; a residência da pessoa não pode ser violada. Tem várias garantias individuais que, a partir do momento que o indivíduo está dentro da casa dele, cultivando para ele, para usar dentro da casa dele, são violadas quando uma criminalização entra naquela casa”, analisa.
Em meio à tendência mundial de uma mudança das legislações para com as drogas – tendo em vista experiências internacionais de regulamentação do consumo ou da venda, como no Uruguai, Estados Unidos ou Espanha – alguns parlamentares brasileiros vêm tentando encampar essa discussão.
No ano passado, o deputado federal Jean Wyllys (PSOL) e o senador Cristovam Buarque (PDT) apresentaram projetos de lei em relação à maconha. Ambos preveem a regulamentação do cultivo caseiro para consumo próprio. Não há nenhuma perspectiva ainda, no entanto, para que esses projetos sejam colocados em votação e nem mesmo para que eles sejam aprovados.
Que plantar maconha é proibido, todo mundo sabe. Que as chances de um projeto de regulamentação do consumo ou da venda ser aprovado nesse momento são mínimas também é de consenso geral. Por que, ainda assim, a prática do plantio caseiro, que ainda é ilegal, não para de crescer?
O “Growboom” brasileiro
Em apenas cinco anos, os usuários cadastrados no site Growroom saltaram de 30 mil para 60 mil. De acordo com a Polícia Federal, nos últimos dois anos foram feitas mais de 3 mil apreensões de sementes de maconha encomendadas do exterior, número recorde em toda a história do país.
Esses dados ajudam a ilustrar um pouco como o plantio caseiro de cannabis já é uma realidade bem concreta no país. Os milhares de “maconheiros” que sempre existiram, muitas vezes na condição de estar “dentro do armário”, estão aos poucos desafiando a legislação e se tornando mais que consumidores, mas produtores de sua própria planta.
Sérgio Vidal, antropólogo e pesquisador, presidente da Associação Multidisciplinar de Estudos sobre Maconha Medicinal, mantém também um blog com orientações para o cultivo caseiro. Ele ilustra esse aumento do interesse pelo plantio doméstico e pelo assunto por meio de sua experiência pessoal com o livro “Cannabis Medicinal: Introdução ao Cultivo”.
“Está havendo uma procura muito maior, sim. Eu posso ver isso até pelo meu livro que, em 5 anos, vendi quase 5 mil cópias, mesmo ficando um ano e meio sem vender. É um número muito grande por ser uma publicação independente, de um tema específico, técnico. Então, isso mostra que as pessoas têm se interessado mais pelo plantio mesmo”, afirmou.
Para o antropólogo, é justamente a repressão à venda e ao consumo e a intensificação do proibicionismo que motiva as pessoas a começar a plantar maconha em casa. Ele avalia que para o usuário, hoje em dia, seja mais fácil plantar do que comprar.
“É cada vez mais caro, há uma repressão intensa nas fronteiras. Há cinco anos, por exemplo, era muito mais difícil plantar, conseguir informações, ter acesso às sementes; enquanto para comprar era muito mais fácil e barato. Hoje em dia está cada vez mais difícil achar maconha para comprar, é caro e ruim. Ao mesmo tempo, plantar está cada vez mais fácil e acessível”, explica.
Júlio Delmanto, ativista do coletivo Desentorpecendo a Razão (DAR) e membro da Marcha da Maconha de São Paulo, vai além. Para ele, a cultura da maconha que tem se disseminado na internet é um fator fundamental que vem encorajando novos “growers” e fortalecendo movimentos.
“É um processo que deve ter uns dez anos. O Growroom tem muito a ver com isso, mas mais que isso é a cultura de internet. A Marcha da Maconha é isso: fruto da comunicação com outros movimentos pelo mundo via internet. Essa cultura de sair do armário e falar sobre maconha, sobre consumo, música, “cultura sommelier” da maconha. Isso se consolidou muito na internet e não só ajuda as pessoas a conhecerem mais, mas também traz mais conteúdo, mais conhecimento. A pessoa procura hoje no Google e tem muito mais condições de saber como plantar, como ela pode se defender e deixar claro que é só usuário e não traficante”, analisa.
Essa “cultura sommelier” da maconha que aflora na internet vem fazendo, cada vez mais, as pessoas conhecerem os riscos que correm ao recorrer à erva do tráfico, composta muitas vezes com substâncias químicas e prejudiciais à saúde e encontram, no cultivo caseiro, uma alternativa para adquirir autonomia, segurança e qualidade. Essa é a linha que segue o advogado e ativista Emílio.
“As pessoas estão plantando mais maconha graças ao ativismo, não só do Growroom, mas de todos que propagam uma nova política de drogas e que buscam construir sua realidade dentro de uma autonomia, ter auto-suficiência. Outra coisa fundamental é que a maconha do Brasil é a pior do mundo. Esse prensado paraguaio que a gente fuma é tudo, menos maconha. Acho que isso acaba jogando as pessoas para o cultivo. Além disso, tem a questão de buscar na ‘boca’: ou você toma um esculacho do traficante ou do policial. Se não tomar de nenhum dos dois, toma da própria maconha quando abre aquele pacotinho e vê aquilo que é uma matéria orgânica, fedorenta e que nem parece que um dia foi uma flor”, disse.
Esses foram justamente os motivos que levaram C* a investir no cultivo caseiro. Conhecida como Mulher Cacto entre os cultivadores, C* tem 33 anos e começou a plantar maconha em 2007, depois de participar de uma Cannabis Cup em Amsterdam, na Holanda. Lá ela adquiriu doze sementes que trouxe escondidas na bagagem quando voltou ao Brasil.
“A ideia surgiu quando vi no banheiro do apartamento de uma amiga o desenvolvimento de algumas plantas desde a semente até a flor, e se fixou assim que experimentei o resultado. Quem prova uma flor, fruto de cultivo caseiro, percebe imediatamente a enorme diferença quando comparada à maconha disponível no mercado nacional. Por isso, o desejo de produzir a própria erva para consumo individual passa a ser maior que o risco em cultivá-la”, contou.
Já G*, estudante paulista de 20 anos, não teve acesso às sementes da qualidade garantida como as de C*, adquiridas na Holanda. Cansado de ter que recorrer ao tráfico e se submeter à má qualidade da erva, há quatro meses ele simplesmente tentou plantar uma semente que encontrou em um pedaço de maconha prensado que havia pegado na “biqueira”. Deu certo.
“Eu já fazia o uso recreativo antes de começar a plantar e o interesse veio com a questão da qualidade. Eu saberia o que estaria fumando. Essas maconhas que se compra em biqueiras são de péssima qualidade, não dá para saber o que tem lá dentro e muitas vezes isso anula qualquer argumento de que a maconha possa ser benéfica para a saúde”, falou.
Cultivo caseiro: alternativa ou solução?
Na luta pela mudança da política de drogas no mundo, o cultivo caseiro é só uma das frentes defendidas. Regulamentação da venda, da produção para fins medicinais, da distribuição, do porte e das associações de cultivo são outras demandas, cada uma com suas particularidades e limites.
De um lado, estão aqueles que acreditam que é preciso legalizar a produção do mercado e, consequentemente, a distribuição e a venda. De outro, há os que enxergam o cultivo caseiro como a alternativa ideal como forma de não fomentar mais um mercado, seja ele legal ou ilegal.
Para Sergio Vidal, plantar maconha em casa é, atualmente, a medida mais eficiente para se reduzir os danos em relação à “guerra às drogas”.
“Com a regulamentação do cultivo caseiro, você admite que existem adultos na sociedade que optaram por fumar. E você está optando por não liberar a cadeia produtiva. Então, quando você fala em regulamentar o cultivo caseiro, é só a produção não comercial. Para além da questão do autoabastecimento, o cultivo carrega duas coisas: deixa de procurar o fornecedor, que pode ser um cara que venda só maconha mesmo, mas pode ser alguém que venda também outras drogas e que cometa outros crimes. Se deixa de alimentar um criminoso. Ao mesmo tempo, deixa de alimentar também uma eventual cadeia regulamentada. O cultivo caseiro, ele é peculiar porque não é trafico e nem capitalismo. Se uma pessoa decide fumar, em um país em que a venda é legalizada, ela tem duas opções: ou vai comprar do tráfico ou do produtor autorizado. Mas no caso de uma pessoa que planta o que consome, ela não recorre nem ao mercado legal nem ao mercado ilegal. Ela vai dizer que ela pode ser independente desse mercado legalizado”, defendeu.
De acordo com o antropólogo, o cultivo caseiro é atualmente a melhor opção como regulamentação, pois acaba com o financiamento do tráfico e anula a possibilidade do “oba-oba” que tanto falam, que é o que ocorre com cigarro e bebidas, drogas lícitas. “Aí você quebra toda a lógica empresarial”, completa.
Júlio Delmanto também apoia o cultivo caseiro, mas enxerga a prática apenas como um passo de todo um processo de legalização. Para o pesquisador, é possível se inspirar em modelos internacionais para que o cultivo seja regulamentado no Brasil, mas ele acredita que a demanda de usuários não seria totalmente atendida apenas com essa medida. A princípio, a regulamentação do cultivo para usuários que tem como objetivo os fins medicinais da planta já seria um importante passo.
“Apesar do interesse de quem está vendendo remédio, uma alternativa seria permitir que os pacientes cultivassem ou tivessem acesso a cooperativas. Esse é um passo que está bastante próximo, tem muita gente se organizando judicialmente e extra-judicialmente. Um segundo passo seria seguir o modelo uruguaio, não em tudo, mas ao menos nesse ponto que permite as cooperativas de usuários. Você estaria impedido de vender, de comprar, mas poderia se juntar com seus amigos para plantar em um ambiente controlado”, afirmou, ressaltando sua posição de que, apesar de louvável, o cultivo caseiro não pode ser considerado como "suficiente". “Me parece apenas um passo antes da legalização mesmo. Acho difícil que isso seja uma solução para uma demanda tão grande que é o mercado de drogas”, completou.
Cultivo caseiro no mundo
Atualmente, diversos países pelo mundo já permitem que as pessoas plantem maconha em casa para o consumo pessoal.
Na lei uruguaia aprovada no ano passado, ficou permitido que qualquer pessoa maior de idade possa cultivar até seis pés da planta, por residência, para consumo próprio ou ainda se associar a uma cooperativa. No Chile, o plantio doméstico também é legalizado. Em outros países, como Espanha, Holanda e Bélgica, a venda e distribuição não é totalmente legalizada, mas, como o usuário não é considerado um criminoso, as pessoas começaram a criar clubes sociais de cultivo e consumo e, aos poucos, foram conseguindo autorizações judiciais para plantar e consumir sem vender.
Somente no ano de 2015, três outros países passaram a reconhecer o cultivo doméstico de maconha como uma atividade legal. Em fevereiro, a cidade de Washington, nos Estados Unidos, legalizou a posse de até 56 gramas de cannabis e autorizou o cultivo de até seis plantas por pessoa. O Alasca, também nos EUA, autorizou o cultivo caseiro de até seis pés por residência na mesma semana e, na sequência, a Jamaica também descriminalizou o plantio doméstico de cinco pés por cidadão.
Enquanto no Brasil quase todas as semanas um novo cultivador é preso, Mulher Cacto espera, otimista, sua vez de poder plantar suas flores sem qualquer receio de ser enquadrada como traficante ou ter sua erva apreendida.
“Quanto mais se fala de cultivadores na mídia, mais o cultivo se populariza. Conheço muita gente que começou a plantar nessa década. Algumas pessoas têm muito prazer em consumir algo que elas mesmas se empenharam em produzir. É aquela máxima de colher o que se planta, semeando, regando, podando, curtindo, enfim... E o reflexo óbvio disso será a legalização e a regulamentação da maconha. Espero fazer parte do primeiro clube de cultivo legal no Brasil, e mais, espero que isso aconteça logo”.