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O caso da menina de oito anos que canta e dança músicas com forte cunho erótico chama a atenção para a realidade de outros funkeiros mirins, que estão sendo alvo de investigação do Ministério Público e alertam para os prejuízos do estímulo a uma sexualidade precoce
Por Maíra Streit
Um vídeo tem chamado a atenção dos internautas nas últimas semanas. Nele, uma menina de apenas oito anos dança no palco durante um show de funk. De costas para a plateia, ela encena uma coreografia sensual. O homem que aparece ao lado, pedindo ao público para aplaudir a apresentação da “novinha”, como se refere à criança, é o próprio pai, Thiago de Abreu, conhecido como MC Belinho.
Em outros vídeos publicados na internet, vistos por milhões de pessoas, a pequena Melody aparece vestindo roupas curtas e enchimentos nos seios, e cantando letras consideradas inapropriadas à idade. Na música “Fale de Mim”, ela manda um recado para as “invejosas”. “Para todas as recalcadas, aí vai minha resposta: se é bonito ou se é feio, mas é f*** ser gostosa”.
A repercussão foi imediata e gerou críticas à exposição e ao estímulo à erotização infantil. Um abaixo-assinado no Avaaz alcançou quase 30 mil adesões em dez dias, pedindo "intervenção e investigação de tutela" ao Conselho Tutelar de São Paulo. A garota chegou a ter seu perfil retirado do Facebook após denúncias de conteúdo impróprio.
[caption id="attachment_64495" align="alignleft" width="300"] Ministério Público abre inquérito sobre 'sexualização' de MC Melody e outros funkeiros mirins (Foto: Reprodução)[/caption]
Com base em queixas e representações encaminhadas pela ouvidoria, o Ministério Público do Estado de São Paulo abriu um inquérito para investigação de "violação ao direito ao respeito e à dignidade de crianças e adolescentes", não só em relação à MC Melody, mas também a outros funkeiros mirins. O caso está sob responsabilidade da Promotoria de Justiça de Defesa dos Interesses Difusos e Coletivos da Infância e da Juventude da Capital.
Segundo o promotor Eduardo Dias de Souza Ferreira, o episódio envolvendo a menina acabou dando visibilidade a outras crianças e adolescentes que também seguiam uma carreira parecida. “Optamos por fazer um procedimento que cuidasse dos MCs mirins, com letras de forte apelo erótico, sexual, e coreografias nesse sentido. Isso ofende a Constituição e o ECA [Estatuto da Criança e do Adolescente]”, explica.
O inquérito, a que Fórum teve acesso, traz uma denúncia à empresa KL Produções, acusada de lançar os pequenos cantores com músicas de funk carregadas de termos depreciativos, apologia a drogas, crimes e prostituição. De acordo com o promotor, já existem profissionais especializados nesse segmento.
Por consequência do machismo presente na sociedade, há no trabalho dos meninos do funk um apelo sexual ainda maior do que no das meninas. "Como é bom transar com a p*** profissional. Vem f**** no clima quente, no calor de 30 graus", canta o MC Pedrinho, de 12 anos. Além dele, MC 2K, MC Bin Laden, MC Brinquedo e MC Pikachu também são alvo da investigação do Ministério Público paulista.
Sexualidade precoce
[caption id="attachment_64498" align="alignright" width="300"] Por consequência do machismo, há no trabalho dos meninos um apelo sexual ainda maior (Foto: Reprodução/YouTube)[/caption]
Para a psicóloga Sandra Santos, o incentivo à sexualidade precoce pode trazer uma série de prejuízos para o desenvolvimento saudável de crianças e adolescentes. “A gente sabe que esse período é extremamente importante para o desenvolvimento. É um período de descoberta e isso
vai acontecendo pouco a pouco, mas o contato com um ambiente vulnerabilizador faz com que essa criança desperte muito cedo para a sexualidade. Descobrir isso a partir da ótica do adulto tira dela essa inocência”, observa.
Analisando o vídeo da pequena Melody, Sandra avalia o assédio em torno da menina. “Imagino que possa estimular o assédio dos homens. Tudo isso é extremamente danoso e hostil. Um contato feito de uma forma inadequada, através de adultos que estimulam esse desejo”, afirma.
Os comentários vistos nas fotos e vídeos da garota ilustram o que explica a psicóloga. A maioria deles é feita por adultos, que usam termos como “delicinha” e “monumento de mulher” para se referir à cantora de oito anos. Há ainda xingamentos e outras ofensas que partem de alguns internautas mais exaltados.
Ameaçado de perder a guarda da filha, MC Belinho garantiu que Melody não faz apresentações profissionais [apesar disso, a página da cantora no Facebook divulga dois telefones de contato para shows]. Em um vídeo publicado para esclarecer as polêmicas em torno do caso, ele afirma que sustenta as duas filhas apenas com o que ganha como funkeiro e que não incentiva a criança com o objetivo de obter lucro pessoal, conforme foi acusado.
O pai alega que as denúncias são motivadas por preconceito ao funk e que a menina “não é obrigada” a fazer nada. Em tom de desabafo, MC Belinho chamou os críticos de “recalcados” e disse que agem dessa forma por não terem o sucesso conquistado por eles atualmente.
Porém, dias depois parece ter se arrependido das declarações e prometeu mudar o estilo adotado pela filha na carreira artística. Ele afirmou que, a partir de agora, a pequena deve aderir a um perfil mais ligado à música pop, como o da cantora Anitta, que ela tem como referência.
O promotor Eduardo Ferreira garante que o gênero musical não está em questão. “Não temos nada contra o funk. Se estivessem executando letras e coreografias adequadas para a idade, não teríamos problemas”, destaca.
Trabalho infantil
Para a secretária-executiva do Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI), Isa Oliveira, o cenário esconde não apenas a exposição e a hipersexualização de crianças e adolescentes, mas também a exploração da mão de obra infantil.
Ela afirma que, nesse tipo de atividade artística, a Justiça analisa as garantias de preservação da integridade física, psíquica e moral dos pequenos, assim como as limitações de horário e locais de apresentação. Embora alguns trabalhos sejam permitidos, Isa acredita que não é o caso dos exemplos citados pela reportagem.
“O que aparece e motiva muitas famílias é só o glamour e o rendimento econômico e esse prejuízo psicológico e emocional da criança fica oculto. Passada essa fase, é muito recorrente a situação de depressão, uso de álcool e drogas porque nem sempre se mantém o reconhecimento público”, ressalta.
Na opinião da especialista, o trabalho nessa idade negligencia a importância de uma etapa fundamental da vida. “Eles não estão tendo a oportunidade de conviver com seus pares, uma vivência que os enriquece do ponto de vista da socialização e da construção da cidadania”, conclui.
Foto de capa: Reprodução/Facebook