Em 2015, a data é celebrada em meio a um quadro grave. Na década passada, enquanto o país reduzia a pobreza e diminuía a concentração de renda, os assassinatos de indígenas cresceram 269% entre 2003 e 2013. A situação piora quando se olha para o Congresso Nacional, onde grupos vinculados ao agronegócio e à mineração podem minar ainda mais os direitos indígenas
Por Maurício Santoro*
Em 2015, o Dia do Índio é celebrado em meio a preocupações graves. Na década passada, enquanto o país reduzia a pobreza e diminuía a concentração de renda, os assassinatos de indígenas cresceram 269% entre 2003 e 2013. Os temores com relação à sua proteção estão ainda mais agudos diante da nova formação do Congresso Nacional, onde grupos de interesse vinculados ao agronegócio e à mineração podem aprovar mudanças constitucionais que eliminam o importante arcabouço construído na Constituição Federal de 1988 sobre os direitos indígenas.
No coração desses riscos está uma conjuntura econômica que nos últimos anos levou à valorização global de diversas commodities e ao acirramento de conflitos por recursos naturais, vitimando índios, quilombolas, populações ribeirinhas e ativistas de direitos humanos. Cenário que, aliás, não é exclusivo do Brasil e afeta de maneira intensa também outros países da América Latina.
Ameaças no Congresso
A Constituição de 1988 determinou que todas as terras tradicionalmente ocupadas pelos povos indígenas deveriam ser demarcadas até 1993. Até hoje isso não ocorreu e registramos hoje altos índices de violência contra esta população, sobretudo na região Centro-Oeste do país. As principais razões para o atraso de mais de duas décadas são a escassez de recursos orçamentários e humanos do órgão público responsável (Funai) e frequentes processos judiciais que travam as disputas durante anos nos tribunais, criando um quadro de insegurança jurídica que favorece a violência. Os ataques à comunidade Guarani-Kaiowá de Apika´y, às marges da rodovia BR-163 no Mato Grosso do Sul, ilustram esse quadro de omissões e violações.
A proposta de emenda constitucional (PEC) 215 transfere a competência de demarcação das terras indígenas e quilombolas do Poder Executivo para o Congresso Nacional. Em qualquer democracia há, naturalmente, um espaço legítimo para barganhas partidárias no Legislativo, mas direitos fundamentais nunca devem ser considerados objetos desse tipo de acordo. Pode-se imaginar o que aconteceria com as populações tradicionais se o destino dos territórios que elas ocupam for decidido por políticos em grande medida financiados pelo agronegócio. O próprio presidente da Câmara dos Deputados se filiou à Frente Parlamentar Agropecuária dias antes de ser eleito para o cargo.
Outra pauta que interfere diretamente nos direitos dos indígenas é o debate sobre um novo Código de Mineração (PL 5807/13), que também é alvo de muitas críticas de organizações da sociedade civil. Ele coloca a atividade mineradora como a prioridade no uso do território e estabelece que terras indígenas e quilombolas só poderiam ser demarcadas com autorização da futura agência reguladora do setor de minas. O deputado que o propôs teve a campanha financiada pelas grandes empresas da área.
A Importância da Comissão da Verdade
Em meio aos riscos de retrocesso, vale destacar o importante passo dado pelo país, por meio do trabalho da Comissão Nacional da Verdade, que reconheceu as violações cometidas contra povos indígenas durante a ditadura. Seus pesquisadores conseguiram encontrar uma cópia do Relatório Figueiredo, investigação feita para o Ministério do Interior durante o regime autoritário, que documenta várias atrocidades cometidas por funcionários do Serviço de Proteção do Índio e por fazendeiros. O documento havia sido perdido há quase 50 anos.
O relatório final da Comissão da Verdade incluiu um capítulo sobre povos indígenas no qual há a estimativa de que até 8 mil índios tenham sido assassinados por agentes do Estado ditatorial. A cifra abarca povos inteiros, como os Waimiri-Atroari, atacados por estarem no caminho das obras da rodovia entre Manaus e Boa Vista.
Os esforços da Comissão da Verdade não encerraram essa história. Falta, por exemplo, conhecer os detalhes das violações (como a identidade individual das vítimas), oferecer reparações a suas comunidades e incorporá-las ao debate público mais amplo sobre verdade, memória e justiça.
Há um longo caminho pela frente. Mas em meio a tantas manifestações no Brasil dos últimos anos, vale lembrar que foram as mobilizações indígenas do 1º semestre de 2013 que retomaram a onda de grandes protestos.
(*) Maurício é cientista político e assessor de direitos humanos da Anistia Internacional
(Foto: Mídia NINJA)