O episódio do recrutamento de um ator negro para a primeira série brasileira da Netflix (3%) mostra que a coisa está ficando preta. Embora menos preta do que o necessário, a reação e a resistência estão mais complexas, fortes e ágeis
Por Cidinha da Silva*
O mundo real não nos permite dizer que o racismo esteja com os dias contados, mas a coisa está ficando preta. Embora menos preta do que o necessário, a reação e a resistência estão mais complexas, fortes e ágeis. Brotam como Poejo e Língua de vaca. De todos os cantos.
Um dos episódios mais recentes desassossegou a cronista. Não porque seja algo original, inusitado ou mais grave do que o resto, mas porque acontece diariamente, a toda hora, todo minuto. E o caminho que ela fazia tranquila, descalça no frugal da vida, passou a exigir botas e ferramentas para mover-se em solo lamacento, outra vez.
De que falamos entre tantos episódios diários na novela da discriminação racial que se desdobra em torno da vida dos negros no Brasil? Do Caso Netflix x Boutique Filmes x +Add Casting no recrutamento de um ator negro para a primeira série brasileira da Netflix – 3%.
Entenda o capítulo: A agência +Add Casting, doravante denominada recrutadora, era responsável por conseguir atores no perfil solicitado pela Boutique Filmes. Esta, por sua vez, deve ter atendido a uma exigência da Netflix de ter um ator negro no elenco principal. A empresa estadunidense que atende a mais de 50 milhões de expectadores de TV via internet, em dezenas de países, obedece a uma política de diversidade séria. Logo, não bastava ter João Miguel no elenco, excelente ator que preserva o sotaque nordestino nos papéis nacionais que desempenha. Era preciso que sua primeira série de ficção brasileira representasse, ainda que de forma tímida, 53% da população do país.
Pois bem, a recrutadora enviou uma mensagem eletrônica a grupos de atrizes e atores negros e outras associações próximas ao perfil de ator desejado pela Boutique Filmes, com a singela conclamação: “precisamos de um ator jovem, na faixa dos 20-25 anos, muito bonito. A direção gostaria que ele fosse negro, então o ideal seria ter um ator negro e muito bonito, mas conscientes do grau de dificuldade, faremos teste também com os bons atores, lindos, que não sejam negros.” Ai, tão doce.
Deu ruim! O pessoal que recebeu o e-mail, ao invés de se sentir grato, feliz e lisonjeado pela possibilidade de ter um dos seus escolhido para papel nobre no programa, reagiu ao racismo escancarado na convocatória e colocou a boca no trombone. Vida de gente negra nas artes cênicas não é mole, não, viu? Quando não é blackface explícito é blackface pressuposto, porque os negros, a não ser que se curvem, nunca atenderão mesmo às exigências racistas.
O bloco dos insurgentes tomou as avenidas da web e sambou na cara das empresas envolvidas. A Netflix, assustada, porque está submetida a uma política de diversidade, na qual posturas racistas geram danos à imagem da empresa e punições, cobrou responsabilidades da produtora. Afinal, sua primeira série brasileira não poderia nascer morta ou maculada pelo racismo à moda local. A produtora se eximiu de responsabilidades e as jogou para a recrutadora. O caso tramita nos tribunais do cyberespaço.
O bloco dos insurgentes, livre e leve, evolui na avenida e canta seguro o refrão: Acabou o amor, baby! Isso aqui já virou Palmares!
(*) Cidinha da Silva é escritora. Publicou, entre outros, Racismo no Brasil e afetos correlatos (Conversê, 2013) e Africanidades e relações raciais: insumos para políticas públicas na área do livro, leitura, literatura e bibliotecas no Brasil (FCP, 2014). Despacha diariamente em sua fanpage