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A vida e as escolhas de Adelir tornaram-se públicas e pessoas que desconhecem qualquer fato sobre o sistema obstétrico brasileiro não se furtam a julgá-la e condená-la como a louca do parto normal, irresponsável, leviana e até assassina
Por Thalita Pires, no Futepoca
Em uma decisão aparentemente inédita no Brasil, a Justiça obrigou uma grávida, Adelir Góes, a realizar uma cesariana contra sua vontade. O pedido foi realizado por duas médicas obstetras do Hospital Nossa Senhora dos Navegantes, no município de Torres (RS) e acatado pela juíza Liliane Mog da Silva. Adelir aceitou ser conduzida à cirurgia depois de ouvir que seu marido seria preso caso ela resistisse.
1 – Contexto – sistema obstétrico brasileiro, uma jabuticaba podre
Para entender de fato o que aconteceu, é preciso conhecer os meandros do sistema obstétrico brasileiro, líder mundial em número de cesarianas. Não é uma narrativa fácil pois envolve uma multiplicidade de atores, cada um com seus motivos e, principalmente, suas contradições. O que apresento agora é um resumo esquemático, usando o caso Adelir como guia, sem pretensão de esgotar o assunto.
Adelir, 29 anos, já havia passado por outras três gestações. Uma terminou em um aborto espontâneo e as outras duas em cirurgias cesarianas. Dada a fragilidade de Adelir no momento, as circunstâncias desses partos ainda não são conhecidas do grande público. Depois da segunda cesariana, ela ouviu do médico que uma terceira cirurgia seria muito arriscada. Engravidou novamente por um erro no uso da pílula.
O relato usual de mulheres que fizeram cesarianas mesmo querendo parto normal, no entanto, costuma ser bastante semelhante. O meu, inclusive. Ainda que não haja complicações aparentes, os obstetras começam a afirmar, normalmente a partir de 30 semanas de gestação, que um parto normal está saindo de cena, por motivos mil. Alguns dos mais comuns são cordão umbilical enrolado no pescoço (falso), cabeça muito grande do bebê, mais precisamente desproporção cefalo-pélvica (existente, porém diagnosticada apenas em pleno trabalho de parto), pouco líquido amniótico (pode vir a ser um problema, mas na maior parte dos casos o problema é resolvido com a ingestão de muito líquido, não com uma cirurgia), mais de 40 semanas de gestação (falso), idade materna avançada, a partir de 35 anos (falso), gestação de gêmeos (falso) e muitos outros, listados aqui.
No meu caso, a obstetra tentou jogar a ficha da desproporção cefalo-pélvica. Fiz cara de paisagem. Na minha cabeça, ficar em casa esperando o trabalho de parto evoluir resolveria minha situação. Com 38 semanas, a bomba: a ultrassonografia havia mostrado que minha placenta estava “envelhecida”, ou seja, passando poucos nutrientes para o bebê. Essa motivação para a cesariana eu não conhecia. Numa cidade nova, sem ter para quem pedir indicações de obstetras confiáveis (eu ainda confiava na minha) para uma segunda opinião, simplesmente chorei e aceitei. Depois descobri que esse motivo para a cirurgia é bastante duvidoso. Mas só depois. Há casos muitíssimo piores de coação para uma cesariana. Essa página do Facebook lista histórias de mulheres que passaram por isso.
As razões para essa situação são múltiplas e provavelmente não todas conhecidas. Entre elas estão a falha da formação de médicos, que não encaram, ainda na faculdade, o parto como um evento fisiológico, mas como um processo médico, sempre (foco no sempre) passível de intervenções. Outro problema é a forma como o pré-natal é feito, especialmente no sistema de saúde privado. A grávida escolhe um médico para acompanhá-la durante a gravidez e é esse médico que, via de regra, fará o seu parto. O problema desse esquema é a dificuldade de conciliação da agenda de consultório com trabalhos de parto longos. Desde o início das contrações, a mulher pode passar dias até entrar em franco trabalho de parto. Mesmo que o médico mobilize-se apenas quando as contrações passam a ser ritmadas e em intervalos curtos, o tempo até o parto propriamente dito não raro chega às 24 horas. Isso traz um problema quase insolúvel para o médico. Não falo aqui nem de ganância (existente, fato), mas de respeito com as outras pacientes. Se a cada parto o médico for obrigado a desmarcar toda a agenda, o sistema não anda.
Claro que a solução encontrada aqui no Brasil é a pior de todas: agendamento rotineiro de cesarianas fora do trabalho de parto, um desastre de proporções gigantescas. O que deveria acontecer era, em gestações saudáveis – a ampla maioria – um parto assistido por obstetrizes (profissional com ensino superior em Obstetrícia), enfermeiras especializadas ou mesmo obstetras de plantão. O obstetra do pré-natal apareceria apenas em partos de risco. Faltam também, nos hospitais, locais onde a mulher possa esperar a evolução do trabalho de parto. O que acontece hoje é que existe a hotelaria e o centro cirúrgico, mais nada. Alguns hospitais têm salas de parto humanizado, mas mesmo esses apresentam altos índices de cesarianas, mostrando que essa ideia ainda não foi absorvida pelo sistema obstétrico.
Um exemplo divertido de como o parto normal é encarado fora do Brasil é a representação dos nascimentos dos trigêmeos de Phoebe e da filha de Rachel, no seriado Friends. Ambas têm seus filhos de parto normal em situações que, no Brasil, seriam indicação inapelável para cesarianas: gestação múltipla, demora na evolução do trabalho de parto e bebê pélvico, ou seja, com as nádegas, e não a cabeça, para baixo. O episódio não deixa claro quantas horas Rachel espera pelo nascimento de Emma, mas aparentemente são mais de 24 horas. Apenas no momento do parto, a parteira/obstetriz descobre que o bebê está na posição errada e tudo o que diz é "você terá que fazer mais força". E tudo isso sem os gritos tão comuns nas representações de trabalho de parto na teledramaturgia brasileira. Infelizmente não encontrei a cena de Phoebe em trabalho de parto.
É bom lembrar que é apenas o início do trabalho de parto que indica que aquele bebê está pronto de verdade para nascer. Mesmo com 40 semanas de gestação é possível que os pulmões do feto não estejam amadurecidos. Pode não parecer, mas a natureza tem seus mecanismos. Se não há trabalho de parto ainda, algum motivo existe. Não consegui achar os dados epidemiológicos do país para mostrar aqui, mas esses dois estudos, um realizado em Cascavel (PR) e outro em Pelotas (RS) mostram que a prematuridade é o principal motivo de morte em bebês. E qual o motivo para o aumento da prematuridade? As cesarianas eletivas sem indicação médica. De acordo com o Ministério da Saúde, a chance de internação de crianças nascidas em parto vaginal é de 3%, enquanto as nascidas em cesarianas são internadas em 12% das vezes.
Eu poderia falar parágrafos sobre ética médica, problemas nos planos de saúde, falhas do SUS, representação social do parto normal, arrogância médica e outros fatores que influenciam o alto número de cesarianas no Brasil, mas acredito que meu ponto principal já esteja colocado. Vamos adiante.
2 – Disputas entre as visões da medicina
Como qualquer campo do saber, a medicina e a obstetrícia especificamente são palco de disputas. Seja dentro da academia, seja na prática dos hospitais, seja nos grupos de grávidas e mães, cada um quer usar os melhores argumentos a seu favor, aqueles que reforcem suas teses. Não há ingenuidade aqui. É evidente que os obstetras brasileiros são bastante competentes naquilo que se propõem a fazer. Eu não duvidaria que o Brasil seja o lugar que forma os melhores fazedores de cesarianas, afinal é praticamente só o que a maior parte deles sabe fazer.
Entretanto, a minha experiência e estudo (leio sobre o assunto há 3 anos sem parar) é que, enquanto os médicos ditos cesaristas e/ou intervencionistas costumam afirmar que tomam suas decisões baseadas na prática pessoal, os profissionais que atuam no movimento de humanização do parto apresentam o maior número de estudos científicos possíveis para mostrar que alguns procedimentos são equivocados. Isso é um pouco óbvio, já que quem domina o sistema não tem motivos para se importar em justificar seus atos. Quem busca o seu espaço acaba trabalhando em dobro para rebater ideias incrustadas no inconsciente coletivo.
A maior expoente dessa prática de rebater práticas tradicionais nos nosso partos é a obstetra Melania Amorim, que mantém o blog Estuda, Melania, Estuda!. Ela cita tantos estudos que dá pra se perder por lá. Recomendo para todos que queiram aprofundar-se no assunto.
Citar estudos sem fim garante que sua visão sobre o parto esteja “correta”, seja lá o que isso signifique? Não, mas eleva a discussão para outro nível. Passa-se do argumento de autoridade para uma discussão com base em fatos.
3 – O movimento nacional pela humanização do parto
Frente ao cenário calamitoso de cesarianas no Brasil, era de se esperar que houvesse um movimento de contraposição. O que começou com grupos desconexos de mulheres reclamando de suas cesarianas desnecessárias virou um movimento nacional articulado que vem conseguindo avanços importantes. A luta dessas mulheres é para que todas as gestantes recebam informação de qualidade durante o pré-natal (durante a vida na verdade) para que possa escolher a forma de parir que mais lhe aprouver. E também para que o sistema obstétrico esteja preparado para receber essa gestante em sua escolha, qualquer que seja ela. Sim, é verdade. Apesar de ser óbvio que as integrantes desse movimento rechacem a ideia de cesarianas marcadas com antecedência sem motivo médico, não passa pela cabeça de ninguém propor que essas cirurgias sejam proibidas (ok, deve passar pela cabeça de alguém, mas não é uma reivindicação do movimento).
Lutam, também, pelo fim da violência obstétrica, que atinge uma em cada quatro parturientes no país. A violência obstétrica vai desde agressões verbais (coisas do tipo: “para de gritar, na hora de fazer não gritou”), passa por o uso de procedimentos sem explicação ou mesmo com um pedido ativo para que não sejam realizados (episiotomia, o corte no períneo, é um caso clássico) e chega a procedimentos realizados de maneira violenta (há casos em que a episiotomia chegou até a coxa da paciente. Empurrar a barriga da gestante para "acelerar" o parto também é muito comum).
O assunto sempre foi debatido no SUS. As casas de parto públicas, 14 no total, existem desde 1999 e usam um modelo semelhante ao de países como Holanda, Japão e Nova Zelândia. Os partos são acompanhados por obstetrizes ou enfermeiras obstétricas e só há remoção para um hospital se houver alguma complicação. A pequena quantidade de casas de parto, no entanto, mostram que as intenções estão lá, mas na prática poucas mulheres têm acesso a elas.
Mas iniciativas isoladas estão se avolumando e tentando melhorar a vida das gestantes no país. Belo Horizonte conta com uma equipe de parto domiciliar – outra opção de baixo risco para gravidez sem intercorrências – bancada pelo SUS. Em São Paulo, virou lei que todas as parturientes devem dispor da possibilidade de receber anestesia durante o parto (essa vai pra quem acha que esse movimento prega apenas o parto natural, sem qualquer intervenção). Há outros avanços.
4 – O caso Adelir
Na minha opinião, discutir os meandros do caso Adelir é um desrespeito com a própria. Sua vida e suas escolhas tornaram-se públicos e pessoas que desconhecem qualquer fato sobre o sistema obstétrico brasileiro não se furtam a julgá-la e condená-la como a louca do parto normal, irresponsável, leviana e até assassina. É por conta desse julgamento feroz que escrevo sobre sua gravidez e suas decisões aqui.
Adelir estava com 40 ou 41 semanas de gravidez. Essa informação é imprecisa por natureza, já que não há método infalível para determinar o dia da fecundação. Em média, a gestação humana dura 40 semanas, mas na verdade esse período varia entre 38 e 42 semanas. Isso significa que Adelir estava dentro do tempo esperado para a duração da gravidez. Isso é confirmado pelo exame realizado no hospital Nossa Senhora dos Navegantes. No laudo lê-se que o desenvolvimento do feto era compatível com 40 semanas de gravidez. Mais uma vez afirmo que esse dado, em um exame realizado em gravidez avançada, é questionável, já que os fetos desenvolvem-se de maneira diferente uns dos outros. Mas era essa a informação disponível para a obstetra que a examinou, Joana de Araújo. Além de estar dentro do período normal de gestação, os exames de Adelir mostraram mãe e bebê em perfeito estado.
A ecografia teria mostrado o bebê em posição pélvica. O parto normal nessas condições apresenta um nível de risco mais elevado para o bebê do que se ele tivesse em posição cefálica. Por isso, a equipe médica deve explicar a situação à paciente, pesar riscos e benefícios de cada opção de parto e deixá-la decidir.
O complicador nesse quesito é o fato de que Adelir e sua doula, Stephany Hendz, acharam estranho o fato de o bebê estar em posição pélvica, uma vez que essa informação ainda não teria aparecido no pré-natal. É bastante raro que o feto faça esse movimento com a gravidez tão avançada. Por isso, tinham a intenção de fazer o exame em outro local. Pediram, inclusive, uma guia com o pedido médico para apresentar em uma clínica particular.
Outra alegação para a indicação de cesariana foi a de que ela já havia realizado duas cirurgias antes e seu útero poderia romper. É, poderia. Em um parto sem cesariana esse risco também existe. Com duas cesáreas, o risco, que já é baixo, aumenta cerca de 1%. Já o risco de uma terceira cesárea não foram explicados a ela.
Mesmo com mãe e bebê bem, Joana quis internar Adelir para a realização de uma cesariana. Adelir recusou. Para poder sair do hospital, foi obrigada a assinar um termo de responsabilidade, dizendo entender os riscos que sofria. Isso aconteceu na madrugada do dia 1° de abril.
Adelir e Stephany não conseguiram realizar um novo exame. Poucas horas depois, o trabalho de parto começou. Adelir passou o dia em casa, esperando as contrações ficarem ritmadas para ir ao hospital – não aquele que queria obrigá-la a fazer uma cesariana, mas outro, que tinha uma equipe humanizada. Quando ela já estava com contrações de cinco em cinco minutos, ou seja, perto do momento em que iria para o hospital, um oficial de justiça, acompanhado por policiais armados, apareceu com uma ambulância e um mandado judicial em mãos, obrigando Adelir a ser removida para o hospital. Adelir e o marido, junto com a doula, embarcaram na ambulância pedindo para serem levados para o hospital escolhido para o parto. Não foram atendidos. Ao chegar no hospital Nossa Senhora dos Navegantes, Adelir aceitou passar pela cirurgia, para evitar que seu marido fosse preso.
Adelir relatou os acontecimentos em um vídeo. Afirmou categoricamente que jamais teve em mente parir a qualquer custo, apenas gostaria que a cesariana fosse sua última opção. Ela estava ciente do que se passava com ela e com sua filha. Havia se informado. Mas nenhum representante o poder médico acreditou nela. Uma mulher humilde, que vive em uma casa na zona rural de Torres, ainda em construção pelo marido, não foi ouvida porque, falando daquele jeito, só poderia estar sendo enganada. Não sabia, coitada, dos riscos que corria. Quem diz isso não sou eu, mas o diretor do hospital, em entrevista ao Jornal Zero Hora. Ele afirma com todas as letras: “Sentimos que a mãe não tinha compreendido os riscos que estava correndo e fomos procurar apoio”. Foco no verbo utilizado. Sentimos. Tivemos um feeling. Olhamos para a paciente e vimos uma mulher que não poderia fazer escolhas informadas.
Alguns pontos importantes:
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há relatos de pais que foram enganados em relação à posição de seus filhos nas últimas semanas de gravidez para que aceitassem realizar cesarianas. Se Adelir não acreditou no exame que mostrou sua filha em posição pélvica, a responsabilidade é dos médicos sem ética que chegam ao ponto de mentir para seus pacientes. Adelir sabia, e saber foi seu pecado.
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é fato que o parto pélvico apresenta riscos maiores do que o cefálico, mas ele é uma opção viável. Cesarianas também têm riscos, como já mencionei acima. Cada mulher escolhe o risco que deseja correr. Partos ainda serão eventos de risco. Não há lugar no mundo em que a mortalidade materna seja 0. Parir é sempre um perigo. Como viver.
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a única conduta certa do hospital Nossa Senhora dos Navegantes foi assumir que não tem pessoal capacitado para realizar um parto pélvico. Esse tipo de parto deve ser realizado por uma equipe experiente, que já tenha feito o acompanhamento desse tipo de nascimento antes. Também por isso Adelir não queria voltar àquele hospital.
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a obstetra que queria internar Adelir imediatamente é totalmente responsável por esse caso, mas é também vítima. Ela não aprendeu a fazer outra coisa, nem na faculdade nem na prática diária. Não acredito que ela tivesse em mente qualquer coisa diferente que o bem estar de mãe e bebê. Mas ela errou.